30 julho 2024

«Doeu, ainda hoje dói»


(Foto: autor não identificado)

Já palmilhei tantas estradas, percorri tantos caminhos, hesitei naquela encruzilhada, perdi a direção do norte, mas cheguei sempre ao meu ninho, qual pássaro de arribação que se aventurou na vida.

Tenho histórias que nasceram das caminhadas, de amor, de ilusão, de alegrias e de paixão, de aventuras vividas que marcaram o meu coração, o meu corpo e a minha vida.

Seria de mau gosto, gravar num pequeno texto as personagens que me marcaram, ficam na minha memória, na nuvem que me rodeia, e na vida que vai passando.

Gravado nesta memória, a ferro e fogo, um percalço que hoje 21 de Julho de 1973, qual carrocel barulhento ainda soa naquele megafone — “mais uma corrida, mais uma viagem” — faz-me lembrar aquele dia em que o destino naquele trilho, tinha para mim guardado.

Numa minha caminhada por terras de Angola numa imposta missão dum regime que o 25 de Abril baniu, uma traiçoeira armadilha, “mina” a mais cruel e letal arma que se projeta na guerra, ao detonar espalhou a minha carne pelo chão e o meu sangue pintalgou o capim da picada.

Doeu, ainda hoje dói. Um par de horas esperando a salvação, subi ao céu num pássaro de ferro.

Apaguei, acordei. Foi triste saber que nunca mais correria naquele “pelado”, da minha terra nem sentiria a alegria do marcar um “golo” e abandonei‑me à vida.

Regressei ao ninho, vivo na mesma árvore, e contemplo a minha criação que me chama Pai e Avô. E continuo a amar aquela que ainda hoje me ampara quando tropeço.



Miguel Centeno, Deficiente das Forças Armadas


(Foto: autor não identificado)

28 julho 2024

A Vénus de Willendorf


Quatro perspetivas da escultura pré-histórica denominada "Vénus de Willendorf" (Fotos: Bjørn Christian Tørrissen)
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A chamada "Vénus de Willendorf" é uma pequena escultura pré-histórica de calcário oolítico e tingida com ocre, que representa uma mulher. Foi encontrada em 1908, perto da aldeia austríaca de Willendorf, nas margens do rio Danúbio, algumas dezenas de quilómetros a montante de Viena. Calcula-se que esta estatueta tenha sido esculpida há cerca de 29 500 anos.

A "Vénus de Willendorf" não será a mais antiga, mas é sem dúvida a mais famosa de todas as esculturas femininas do Paleolítico Superior, das cerca de duzentas que já foram encontradas até agora na Europa e na Sibéria. Esta "Vénus" encontra-se em Viena, mas não está num museu de arte. Está no Museu de História Natural (Naturhistorisches Museum), que fica situado mesmo em frente ao Museu de História da Arte (Kunsthistorisches Museum), que é o museu onde ela deveria estar. Acharão os responsáveis austríacos que uma escultura pré‑histórica não é arte?

Além do seu enorme valor artístico (que é inegável, apesar da sua rusticidade), a "Vénus de Willendorf" contém em si alguns enigmas. Desde logo, a matéria em que foi esculpida. Enquanto muitas das outras "Vénus" pré-históricas foram esculpidas em marfim, argila ou osso, a "Vénus de Willendorf" foi esculpida em calcário oolítico, que é uma rocha que não existe em Willendorf. A escultura deve ter sido trazida de um outro lugar, onde existia esse tipo de calcário, mas não se sabe ao certo de onde, nem porquê. Há quem pense que ela pode ter sido trazida do norte de Itália.

Outro enigma é a sua cabeça, quase toda coberta por algo que parece ser um penteado, ou então por uma espécie de coifa. Seja o que for que esta "Vénus" tenha na cabeça, a verdade é que ela está destituída de feições; o seu rosto não está representado. O que também não está representado são os seus pés.

A forma exagerada como alguns aspetos da sua anatomia se encontram esculpidos sugere que ela talvez represente uma qualquer deusa da fertilidade, ou então que retrate uma chefe de clã, por exemplo. Há indícios da existência de matriarcado em sociedades europeias pré-históricas e esta "Vénus" poderia representar uma matriarca. Também há quem sugira que esta escultura possa ter sido feita por uma mulher, que se quis representar a si própria. Como poderemos saber ao certo? Infelizmente, quem nos poderia dizer porquê e para quê foi feita esta obra de arte paleolítica já morreu há milhares de anos. Agora só podemos tentar adivinhar.

22 julho 2024

Abertura Tannhäuser de Wagner


Abertura da ópera em três atos Tannhäuser, do compositor alemão Richard Wagner (1813–1883), pela Orquestra Filarmónica de Berlim dirigida pelo maestro austríaco Herbert von Karajan (1908–1989)

20 julho 2024

Falcão Trigoso


Trigo e Oiro, óleo sobre tela de João Maria Falcão Trigoso (1879–1956). Museu de Lisboa, Lisboa

Falcão Trigoso, de seu nome completo João Maria de Jesus de Melo Falcão Trigoso, foi um pintor nascido em Lisboa no ano de 1879. O poeta João de Lemos (1819–1890), de quem ele era neto, estimulou-o a pintar, quando aos sete anos de idade lhe ofereceu a sua primeira paleta. Falcão Trigoso servia-se dela sempre que iniciava um novo quadro, em homenagem ao seu avô.

João Maria Falcão Trigoso formou-se em Pintura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, onde foi aluno de Simões de Almeida, Veloso Salgado e Carlos Reis. Foi diretor da Escola Técnica Vitorino Damásio, em Lagos, e das escolas Fonseca Benevides e António Arroio, em Lisboa. Foi um pintor naturalista, membro dos grupos Ar Livre e Silva Porto, impulsionados pelo seu mestre Carlos Reis, que advogava a pintura ao ar livre. Nestes termos, Falcão Trigoso foi sobretudo um pintor paisagista, sendo de destacar as obras que pintou no Algarve, nomeadamente as que retratam o litoral algarvio e as amendoeiras em flor. Faleceu em Lisboa no ano de 1956.

17 julho 2024

O senhor Rossi na praia


Il signor Rossi al mare, curta-metragem de desenhos animados, feita em 1964 pelo cartunista italiano Bruno Bozzetto

15 julho 2024

O concerto para violino de Sibelius


Concerto para Violino e Orquestra em Ré Menor, op. 47, do compositor finlandês de língua sueca Jean Sibelius (1865–1957), pelo violinista russo Viktor Tretyakov e a Orquestra Sinfónica da Academia Estatal da União Soviética dirigida pelo maestro russo Vladimir Verbitsky

13 julho 2024

A nudez segundo a Bíblia


(Foto de autor desconhecido)

Já que estamos numa estação do ano que convida a despir, vejamos o que dizem algumas passagens da Bíblia a respeito da nudez e do seu encobrimento.

Génesis 1
[31] E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom: e foi a tarde e a manhã o dia sexto.

Génesis 2
[25] E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam.

Génesis 3
[7] Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.

Êxodo 22
[26] Se tomares em penhor o vestido do teu próximo, lho restituirás antes do pôr do sol, [27] Porque aquela é a sua cobertura, e o vestido da sua pele; em que se deitaria? Será, pois, que, quando clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso.

1 Samuel 19
[23] Então foi para Naioth, em Ramá: e o mesmo espírito de Deus veio sobre ele, e ia profetizando, até chegar a Naioth, em Ramá. [24] E ele também despiu os seus vestidos, e ele também profetizou diante de Samuel, e esteve nu, por terra, todo aquele dia e toda aquela noite; pelo que se diz: Está também Saul entre os profetas?

2 Samuel 6
[14] E David saltava com todas as suas forças diante do Senhor: e estava David cingido de um éfod de linho.

O rei David dançando diante da Arca da Aliança (Desenho de autor desconhecido)

2 Samuel 6
[20] E, voltando David para abençoar a sua casa, Mical, a filha de Saul, saiu a encontrar-se com David, e disse: Quão honrado foi o rei de Israel, descobrindo-se hoje aos olhos das servas dos seus servos, como, sem pejo, se descobre qualquer dos vadios. [21] Disse, porém, David a Mical: Perante o Senhor, que me escolheu a mim antes do que a teu pai e a toda a sua casa, mandando-me que fosse chefe sobre o povo do Senhor, sobre Israel; perante o Senhor me tenho alegrado. [22] E ainda mais do que isto me envilecerei, e me humilharei aos meus olhos: e das servas, de quem falaste, delas serei honrado.

Isaías 20
[2] Falou o Senhor, pelo mesmo tempo, pelo ministério de Isaías, filho de Amós, dizendo: Vai, solta o cilício dos teus lombos, e descalça os sapatos dos teus pés. E assim o fez, indo nu e descalço. [3] Então disse o Senhor: Assim como o meu servo Isaías andou três anos nu e descalço, por sinal e prodígio sobre o Egipto e sobre a Etiópia, [4] Assim, o rei da Assíria levará em cativeiro os presos do Egipto, e os exilados da Etiópia, tanto moços como velhos, nus e descalços, e com as nádegas descobertas, para vergonha do Egipto.

Miqueias 1
[8] Por isso, lamentarei, e uivarei, andarei despojado e nu: farei lamentação como de dragões e pranto como de avestruzes.

Mateus 6
[25] Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos, quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestido? [26] Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? [27] E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? [28] E, quanto ao vestido, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem: não trabalham, nem fiam; [29] E eu vos digo que, nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. [30] Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé? [31] Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? [32] (Porque, todas estas coisas os gentios procuram.) De certo vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; [33] Mas, buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. [34] Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.

Mateus 21
[8] E muitíssima gente estendia os seus vestidos pelo caminho, e outros cortavam ramos de árvores, e os espalhavam pelo caminho.

Mateus 25
[41] Então dirá, também, aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e os seus anjos; [42] Porque tive fome, e não me destes de comer, tive sede, e não me destes de beber; [43] Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.

Marcos 14
[51] E um certo mancebo o seguia, envolto num lençol sobre o corpo nu. E lançaram-lhe a mão. [52] Mas ele, largando o lençol, fugiu nu.

Lucas 12
[22] E disse aos seus discípulos: Portanto vos digo: Não estejais apreensivos pela vossa vida, sobre o que comereis; nem pelo corpo, sobre o que vestireis. [23] Mais é a vida do que o sustento, e o corpo mais do que o vestido. [24] Considerai os corvos, que nem semeiam, nem segam, nem têm despensa nem celeiro, e Deus os alimenta; quanto mais valeis vós do que as aves?

Lucas 12
[27] Considerai os lírios, como eles crescem; não trabalham, nem fiam; e digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. [28] E, se Deus assim veste a erva, que hoje está no campo, e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?

João 21
[7] Então, aquele discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor. E, quando Simão Pedro ouviu que era o Senhor, cingiu-se com a túnica (porque estava nu) e lançou-se ao mar.

Romanos 13
[14] Mas, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não tenhais cuidado da carne nas suas concupiscências.

Romanos 14
[14] Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de si mesmo imunda, a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda.

(Foto de autor desconhecido, encontrada num site naturista cristão)

2 Coríntios 5
[2] E por isso, também, gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação, que é do céu; [3] Se, todavia, estando vestidos, não formos achados nus. [4] Porque também, nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos, carregados, não porque queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida.

Gálatas 5
[16] Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne.

Colossenses 2
[18] Ninguém vos domine a seu bel-prazer, com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu, estando debalde inchado na sua carnal compreensão, [19] E não ligado à cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus. [20] Se, pois, estais mortos com Cristo, quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, [21] Tais como: não toques, não proves, não manuseies? [22] As quais coisas todas perecem, pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; [23] As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum, senão para a satisfação da carne.

1 Timóteo 2
[9] Que, do mesmo modo, as mulheres se ataviem em traje honesto, com pudor e modéstia, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos preciosos, [10] Mas (como convém a mulheres que fazem profissão de servir a Deus) com boas obras.

1 Timóteo 4
[4] Porque toda a criatura de Deus é boa, e não há nada que rejeitar, sendo recebido com ações de graças, [5] Porque pela palavra de Deus e pela oração é santificada.

(Foto de autor desconhecido)

Tito 1
[15] Todas as coisas são puras para os puros, mas nada é puro para os contaminados e infiéis, antes o seu entendimento e consciência estão contaminados.

Apocalipse 3
[17] Como dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu, [18] Aconselho-te que de mim compres ouro, provado no fogo, para que te enriqueças, e vestidos brancos, para que te vistas, e não apareça a vergonha da tua nudez, e que unjas os teus olhos com colírio, para que vejas.

Apocalipse 19
[6] E ouvi como que a voz de uma grande multidão, e como que a voz de muitas águas, e como que a voz de grandes trovões, que dizia: Aleluia! pois já o Senhor Deus Todo-Poderoso reina. [7] Regozijemo‑nos, e alegremo-nos, e demos-lhe glória; porque vindas são as bodas do Cordeiro, e já a sua esposa se aprontou. [8] E foi-lhe dado que se vestisse de linho fino, puro e resplandecente, porque o linho fino são as justiças dos santos. [9] E disse‑me: Escreve: Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro. E disse‑me: Estas são as verdadeiras palavras de Deus.

Bíblia Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida, edição da Sociedade Bíblica de Portugal


(Foto de autor desconhecido)

11 julho 2024

Adeus, Odessa


Proshchay Odessa, uma canção judaica dedicada à cidade ucraniana de Odessa, interpretada por Olga Mieleszczuk em língua yiddish, acompanhada por Lisa Gutkin em violino, Ittai Bimun em clarinete e Uri Sharlin em acordeão. O yiddish é um idioma de raíz germânica e contendo vocábulos hebraicos, aramaicos e eslavos, falado pelos judeus da Europa Central e Oriental

09 julho 2024

João Hogan


Casario, c. 1952, óleo sobre tela de João Hogan (1914–1988). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Autorretrato, 1959, óleo sobre tela de João Hogan (1914–1988). Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
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Paisagem, 1972, óleo sobre tela de João Hogan (1914–1988). Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
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João Navarro Hogan foi um pintor e gravador de ascendência irlandesa, nascido em Lisboa em 1914. Enquanto trabalhava numa marcenaria, João Hogan inscreveu-se no curso noturno de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Abandonou o curso ao fim de um ano, mas passou a estudar pouco tempo depois com os pintores Mário Augusto e Frederico Ayres, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, também em Lisboa.

Como pintor, João Hogan foi sobretudo um paisagista, apesar de ter pintado alguns autorretratos. No princípio da sua carreira, revelou afinidades com os grandes pintores naturalistas, como Silva Porto, José Malhoa ou Columbano, mas depressa criou um estilo próprio e original, muito mais telúrico e por vezes quase abstrato. Recusou alinhar por quaisquer "escolas" de pintura suas contemporâneas, que considerava serem modas passageiras.

Como gravador, talvez por influência do seu mestre William Hayter, João Hogan mostrou ser um artista próximo do surrealismo, produzindo gravuras cheias de sonho e de fantasia, reveladoras de uma grande criatividade. Podemos, por isso, dizer que houve dois Hogans diferentes num só: o Hogan pintor e o Hogan gravador.

Ao longo de toda a sua vida, João Hogan realizou inúmeras exposições e recebeu muitos prémios no país e no estrangeiro, plenamente merecidos. Faleceu em Lisboa no ano de 1988.

03 julho 2024

As pirâmides do Sudão


Algumas pirâmides existentes em Meroé, Sudão (Foto: Martin Gray)
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Contrariamente ao que se poderia supor, a maior concentração de pirâmides do mundo não fica no Egito, nem no México, nem na Guatemala. Fica no Sudão, país que está neste preciso momento mergulhado numa terrível guerra fratricida, com muitos milhares de mortos e milhões de deslocados, perante a mais completa indiferença da comunidade internacional. Ao que chegou um país que foi berço de uma das mais antigas civilizações da humanidade!

A Núbia é uma região desértica, que é atravessada pelo rio Nilo, está situada no norte do Sudão e ainda abrange um pouco do Egito, até à Primeira Catarata do Nilo, em Assuão. Tal como no caso do Egito, a Núbia só é habitada porque o Nilo lhe dá vida. Se o rio não existisse, a Núbia e o Egito seriam desertos completamente inabitáveis, a não ser nos poucos oásis existentes. É o Nilo que sustenta muitas dezenas de milhões de pessoas, que vivem e trabalham ao longo das suas margens e no seu amplo delta. É preciso, no entanto, salientar que o Nilo só consegue chegar ao Mediterrâneo porque um seu afluente, chamado Nilo Azul, lhe acrescenta a sua própria água junto a Cartum, a capital do Sudão, trazida dos planaltos da Etiópia. Se não recebesse a água do Nilo Azul, o Nilo propriamente dito, também chamado Nilo Branco, ter-se-ia evaporado e infiltrado por completo nas areias do deserto, antes de conseguir chegar ao mar.


A confluência do Nilo Azul (à esquerda) com o Nilo Branco (à direita). A cidade que se vê ao fundo é Cartum, a capital do Sudão (Foto: David Degner)
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Toda a gente sabe que o rio Nilo foi o berço de uma das mais antigas e mais requintadas civilizações de toda a história, a civilização egípcia. Convencionou-se que esta civilização teve o seu início por volta do ano 3100 A.C., quando se consumou a unificação política do Egito, que incluiu também a Núbia, tendo sido Narmer o seu primeiro faraó. A existência independente do Antigo Egito durou cerca de três mil anos, até à sua conquista pelos romanos, quando Cleópatra era rainha. Não faltam, contudo, indícios da existência no Egito de uma cultura avançada ainda mais antiga, que terá nascido por volta do ano 5500 A.C.

É consensual, também, a afirmação segundo a qual a civilização egípcia deveu a sua existência à agricultura, que era praticada em campos irrigados pelas periódicas cheias do Nilo, as quais traziam o fertilíssimo nateiro vindo da região dos Grandes Lagos, no coração de África, e das terras altas da Etiópia. Poderemos, então, deduzir que a civilização egípcia teve o seu berço na região do delta do Nilo, onde o rio se espraia, deposita a sua carga fertilizante e desagua no Mediterrâneo. Também podemos concluir que a cultura egípcia "saltou" do delta para a ilha de Creta, dando origem a uma nova civilização, a civilização minóica. Provavelmente, a Grécia Antiga não teria sido o que foi, se a civilização do Egito não tivesse existido.

Ficou acima afirmado que o Nilo atravessa inóspitos desertos antes de chegar à sua foz. Isso é o que acontece agora, mas nem sempre foi assim. Quando a antiga civilização egípcia nasceu, as regiões da Núbia e do Egito, que o Nilo atravessa, não eram desérticas, mas sim cobertas por uma savana percorrida por cursos de água, cujos leitos estão agora secos. Nela viveriam pessoas, que se dedicariam à caça e à apanha de frutos e raízes comestíveis, assim como à pastorícia.


Santuário do faraó núbio Aspelta (c. 600 A.C. – c. 580 A.C.). Ashmolean Museum, Oxford, Reino Unido (Foto: Mary Harrsch)
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Na Núbia, o Nilo não é navegável, salvo para as deslocações de âmbito local, por causa das sete cataratas que o rio tem na região. Porém, naqueles remotos tempos, as cataratas deviam poder ser contornadas com facilidade através da savana envolvente. A comunicação entre o Egito e a Núbia existiu de facto e marcou de forma perene as culturas respetivas. A cultura egípcia chegou à Núbia e misturou-se com a cultura local e, inversamente, a cultura núbia chegou ao Egito e misturou-se com a cultura local. Até houve faraós núbios reinando sobre o Egito. A cultura núbia não foi uma mera continuação da cultura egípcia; tinha características próprias, que se misturaram com as do Egito. Houve uma influência mútua entre ambas as culturas.

Estátuas de faraós núbios, também chamados faraós negros, que reinaram sobre o Egito durante a 25.ª Dinastia (744 A.C – 656 A.C.), a partir da cidade núbia de Napata. Museu de Kerma, Kerma, Sudão (Foto: Jac Strijbos8)
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Os vestígios arquitetónicos da antiga civilização núbia são muitos e variados, desde que surgiram na região as primeiras aldeias permanentemente habitadas por volta de 6000 A.C. e que, por conseguinte, eram coevas da cidade mais antiga do mundo, que é Jericó, na Palestina.

À medida que os séculos se foram sucedendo, os núbios foram erguendo cidades, onde construiram templos, palácios e sepulturas para os seus mortos. Exemplo disto é a antiga cidade de Kerma, fundada há cerca de 5500 anos, pelo menos, e que no ano 1700 A.C. devia ter 10 000 habitantes. Kerma foi um centro urbano desenvolvido, com templos e bairros residenciais, e onde foram encontrados artefactos que são diferentes dos do Egito, tanto no tema como na composição.

Vestígios da antiga cidade de Kerma (c. 2500 A.C. – c. 1500 A.C), Sudão (Foto: Lassi)
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As construções antigas que mais se destacam na paisagem da Núbia são as pirâmides. Estas pirâmides não são tão grandes como as do Egito e são mais "bicudas" do que elas. Há duas vezes mais pirâmides na Núbia do que no Egito. As pirâmides núbias têm uma base quadrada, como as suas congéneres egípcias, mas as suas faces laterais são mais inclinadas do que as destas. Os núbios deram um "toque" local às suas próprias pirâmides.

Tal como sucedeu com as do Egito, as pirâmides da Núbia foram construídas para servirem de sepultura a reis, rainhas e destacados dignitários. Só na antiga cidade de Meroé, que floresceu entre 590 A.C. e 350 D.C., existem mais de 200 pirâmides. E há mais pirâmides ao longo das margens núbias do Nilo.


Vista aérea de algumas pirâmides de Meroé, Sudão (Foto: B N Chagny)
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Se olharmos para as fotografias das pirâmides de Meroé, notaremos que muitas estão em ruínas. Importa dizer que essas pirâmides não se desmoronaram sozinhas; foram demolidas de propósito. Um caçador de tesouros italiano, chamado Giuseppe Ferlini, empreendeu a destruição de mais de 40 pirâmides em 1834, para saquear os tesouros que nelas estavam. Costuma-se dizer que «o crime não compensa», mas este crime compensou, e muito. Ferlini apoderou-se de um grande número de artefactos, que levou para a Europa a fim de os vender. Muitos dos potenciais compradores não os quiseram, duvidando da sua autenticidade, porque achavam que tão extraordinárias preciosidades não poderiam ter sido feitas pelas mãos de negros. O racismo é uma merda. Apesar das reticências que encontrou, Ferlini conseguiu vender o produto do seu roubo e os objetos que pilhou estão agora em vários museus, sobretudo em Munique e em Berlim.

Jóias da rainha Amanishakheto encontradas na sua pirâmide em Meroé, Sudão (Foto: Einsamer Schütze)
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Cabeça de um núbio, esculpida em mármore por um artista desconhecido, algures entre os anos 120 A.C. e 100 A.C. Brooklyn Museum, Nova Iorque, Estados Unidos da América (Foto: XXGfHXx)
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