30 março 2016

Pesadelo

A guerra é um pesadelo
que te ocupa a cabeça toda a noite
com cadáveres caminhando destroçados
pelos interstícios do sono
e bombas que rebentam e espalham
fel e pregos
em todas as cartilagens,
e uma procissão de fístulas
deixando a sua baba pestilenta
pelo peito, pela boca, pelos joelhos.

A guerra é um pesadelo
onde as pombas choram
e os cavalos uivam com horror
ao ver as patas arrancadas a fugir do corpo.

A guerra é um pesadelo
onde as prostitutas implodem
na mais cruel virgindade
e a criança voa,
cirurgicamente fragmentada,
como uma romã perdida do seu ser.

E quando a noite se esvai e a manhã chega
para te abraçar com os seus olhos
trémulos de água
e um cheiro branco a pão,
descobres que o pesadelo
e a guerra
e os homens que fazem a guerra
continuam a espalhar a sua sementeira negra
pelas searas mais perdidas
deste mundo.

José Fanha, in Poesia, Lápis de Memórias, Coimbra, 2012


Crianças fugindo de um bombardeamento aéreo com napalm à aldeia de Trang Bang, Vietname, em 8 de junho de 1972. A menina, com nove anos de idade e chamada Phan Thị Kim Phúc, sofreu sérias queimaduras nas suas costas e braços, mas sobreviveu, tendo sido submetida a 17 cirurgias. Esta fotografia valeu ao seu autor diversos prémios (Foto: Huynh Cong Ut, mais conhecido como Nick Ut, da agência Associated Press)

27 março 2016

Domingo de Páscoa


Cantata Heut triumphieret Gottes Sohn (Hoje triunfa o Filho de Deus), BuxWV 43, de Dietrich Buxtehude (1637–1707), por Barbara Schlick (soprano), Monika Frimmer (soprano), Michael Chance (contratenor), René Jacobs (contratenor), Christoph Prégardien (tenor), Peter Kooy (baixo), Coro de Rapazes de Hannover (com Heinz Hennig como mestre do coro) e a Orquestra Barroca de Amsterdão. Direção de Ton Koopman


Ressurreição, óleo sobre madeira de Diogo de Contreiras (pintor maneirista ativo entre 1521 e 1562), também chamado Mestre de São Quintino. Coleção particular

25 março 2016

Stabat Mater Dolorosa


Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi (1710–1736), pelas cantoras Margaret Marshall (soprano) e Lucia Valentini Terrani (contralto), Leslie Pearson em órgão e a Orquestra Sinfónica de Londres. Direção de Claudio Abbado


Stabat Mater Dolorosa é um poema do séc. XIII, escrito em latim e dedicado a Maria, mãe de Jesus. Tem como tema o sofrimento de Maria perante a crucificação do seu filho. A autoria deste poema é geralmente atribuída ao frade franciscano Jacopo da Todi (ca. 1230 – 1306), mas há também quem a atribua ao papa Inocêncio III (1160 ou 1161 – 1216). Muitos e diversos compositores ocidentais puseram este poema em música: Palestrina, Vivaldi, Haydn, Rossini, Dvořák, Pärt, etc. A versão musical mais famosa deste poema (e, das que eu conheço, para mim a mais bela) é a do compositor barroco italiano Giovanni Battista Pergolesi. Este Stabat Mater deve ter sido a última obra que Pergolesi compôs na sua curtíssima vida (morreu com 26 anos). Ele não musicou o poema na sua totalidade mas, ainda assim, pôs em música uma boa percentagem dele.

Há várias versões para o poema. A versão que se segue, no original em latim e com tradução em português, parece ter sido a que Pergolesi musicou em grande parte. Os versos que ele não musicou encontram-se entre parêntesis.

Stabat mater dolorosa
juxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius.

Em pé, a Mãe dolorosa,
chorando junto à cruz
da qual pendia seu Filho.

Cuius animam gementem,
contristatam et dolentem
pertransivit gladius.

Cuja alma gemente,
entristecida e dolorida
por causa da espada que a atravessava.

O quam tristis et afflicta
fuit illa benedicta,
mater Unigeniti!

Oh, quão triste e aflita
ela estava, a mãe bendita
do Unigénito!

Quæ mœrebat et dolebat,
pia Mater, dum videbat
nati pœnas inclyti.

Como suspirava e gemia,
Mãe Piedosa, ao ver
os sofrimentos de seu divino Filho.

Quis est homo qui non fleret,
matrem Christi si videret
in tanto supplicio?

Que homem não choraria,
se visse a Mãe de Cristo
em tamanho suplício?

(Quis non posset contristari
Christi Matrem contemplari
dolentem cum Filio?)

(Quem não se entristeceria
ao contemplar a Mãe de Cristo
dolorida com seu filho?)

(Pro peccatis suæ gentis
vidit Iesum in tormentis,
et flagellis subditum.)

(Pelos pecados de seu povo
viu Jesus em tormentos,
e submetido a flagelos.)

Vidit suum dulcem Natum
moriendo desolatum,
dum emisit spiritum.

Viu seu doce filho
morrendo desolado
quando entregou o seu espírito.

Eia, Mater, fons amoris
me sentire vim doloris
fac, ut tecum lugeam.

Eia, mãe, fonte de amor
faz-me sentir tanto as dores
que eu possa chorar contigo.

Fac, ut ardeat cor meum
in amando Christum Deum
ut sibi complaceam.

Faz que arda o meu coração
de amor por Cristo Deus
para se compadecer.

Sancta Mater, istud agas,
crucifixi fige plagas
cordi meo valide.

Santa Mãe, faz isto,
que as chagas do crucificado
sejam fortemente impressas em meu coração.

(Tui Nati vulnerati,
tam dignati pro me pati,
pœnas mecum divide.)

(As feridas de teu filho,
que por mim padeceu penas,
divide comigo.)

(Fac me tecum pie flere,
crucifixo condolere,
donec ego vixero.)

(Faz-me contigo piedosamente chorar,
sofrer com o crucificado,
enquanto eu viver.)

(Juxta Crucem tecum stare,
et me tibi sociare
in planctu desidero.)

(Quero estar contigo junto à cruz,
e de boa vontade desejo associar-me
ao teu pranto.)

(Virgo virginum præclara,
mihi iam non sis amara,
fac me tecum plangere.)

(Virgem das virgens preclara,
não sejas amarga comigo,
faz-me contigo chorar.)

Fac, ut portem Christi mortem,
passionis fac consortem,
et plagas recolere.

Faz que eu traga a morte de Cristo,
participe da sua paixão
e venere as suas chagas.

(Fac me plagis vulnerari,
fac me Cruce inebriari,
et cruore Filii.)

(Faz-me ferido pelas chagas,
embriagado pela cruz,
e pelo sangue do teu Filho.)

Inflammatus et accensus,
per te, Virgo, sim defensus
in die iudicii.

Inflamado e abrasado,
que eu seja defendido por ti ó Virgem,
no dia do Juízo.

(Christe, cum sit hinc exire,
da per Matrem me venire
ad palmam victoriæ.)

(Cristo, quando do mundo eu partir,
fazei-me chegar por vossa Mãe
a palma da vitória.)

Quando corpus morietur,
fac, ut animæ donetur
paradisi gloria. Amen.

Quando o meu corpo morrer,
faz que minha alma alcance
a glória do paraíso. Amen.

(Tradução adaptada de The Ultimate Stabat Mater Site)


Nossa Senhora da Piedade, escultura em granito de autor anónimo, Igreja de Sant'Iago, Belmonte (Foto: Alvaro).

Esta Pietà, tão bela na sua comovente rusticidade, emocionou profundamente o ateu José Saramago (Foto: Anna Baiao)

24 março 2016

Quinta-Feira Santa

A Última Ceia, óleo sobre madeira de carvalho do Báltico atribuído a Gregório Lopes (ca. 1490–1550), Igreja de São João Batista, Tomar



Lamentações, de João Lourenço Rebelo (1610–1665), também chamado João Soares Rebelo, pelo Ensemble Huelgas, da Bélgica, dirigido por Paul van Nevel

20 março 2016

Com a Sinfonia Pastoral de Beethoven, celebremos a chegada da primavera


Sinfonia nº 6 em Fá Maior, opus 68 de Ludwig van Beethoven (1770–1827), também chamada Sinfonia Pastoral, pela West-Eastern Divan Orchestra, que é uma orquestra constituída por músicos árabes e israelitas tocando lado a lado, sob a batuta do judeu Daniel Barenboim, fundador da orquestra. Esta sinfonia tem cinco andamentos:
1º andamento — Allegro ma non troppo (Despertar de sentimentos alegres aquando da chegada ao campo);
2º andamento — Andante molto mosso (Cena à beira de um regato);
3º andamento — Allegro (Dança campestre);
4º andamento — Allegro (A tempestade);
5º andamento — Allegretto (Hino de ação de graças dos pastores após a tempestade)

13 março 2016

Uma cadeira de soba

(Foto: Brooklyn Museum, Nova Iorque, Estados Unidos da América)


Soba é o nome que em Angola se dá a um chefe tradicional. É o mesmo que régulo.

Esta cadeira é mais do que uma vulgar peça de mobiliário. É um símbolo de poder. Talvez eu lhe devesse chamar trono. É obra de um anónimo escultor quioco (cokwe) do séc. XIX. Os quiocos (tucokwe) são uma etnia que vive no leste de Angola (sobretudo no nordeste) e nas regiões vizinhas da República Democrática do Congo e da Zâmbia.

As figuras que estão esculpidas nesta cadeira terão, certamente, um significado determinado. Elas não devem ter sido feitas apenas para ornamentação, à exceção, provavelmente, dos desenhos geométricos.

O rosto estilizado que encima o espaldar representa talvez o próprio soba (mwanangana), não como um retrato (ainda que muito estilizado) do próprio, mas através da evocação da figura do herói mítico fundador do povo lunda-quioco, o caçador luba Cibinda Ilunga, de quem emanava o poder que o soba detinha. Os baixos-relevos que se veem no espaldar parecem ter igualmente um significado simbólico, que me parece ser evidente mas que desconheço completamente. As figuras femininas que estão representadas nas pernas da frente da cadeira poderão representar antepassadas ilustres do soba, pois a sucessão entre os quiocos (e os bantus em geral) é matrilinear. As restantes figuras esculpidas em baixo poderão evocar, eventualmente, provérbios e outras expressões da sabedoria quioca, quer dizer, ensinamentos que o soba não deverá esquecer no exercício do seu cargo. Tudo isto são suposições minhas. Não sendo um entendido no assunto, só posso conjeturar com base em casos semelhantes que já encontrei.


(Foto: Brooklyn Museum, Nova Iorque, Estados Unidos da América)


A serpente espiralada que se vê nas costas da cadeira parece ter claramente um significado simbólico. Ela não está ali por acaso, com toda a certeza. O mesmo se poderá dizer dos baixos-relevos que estão mais abaixo. Das figuras que estão esculpidas ao fundo na parte de trás da cadeira, a da esquerda está a tocar um tchingufo (cingufu), que é um instrumento de percussão de forma trapezoidal, que pode ser usado como acompanhamento musical, mas que no passado era também usado para transmitir mensagens a grande distância. Na fotografia que se segue podemos ver um tchingufo a sério. Ao longo do lado mais comprido do trapézio que enforma o tchingufo existe uma fenda, por onde sai o som do instrumento.


Um tchingufo (Foto: Musée Royal de l'Afrique Centrale, Tervuren, Bélgica)

07 março 2016

Morreu Nikolaus Harnoncourt, um grande maestro


Masterclass dada por Nikolaus Harnoncourt no Festival de Salzburgo de 2009, com a Orquestra Sinfónica Juvenil Simão Bolívar da Venezuela, em que o grande maestro austríaco e a grande orquestra sul-americana fazem um ensaio público da 5ª Sinfonia de Beethoven. Vídeo legendado em espanhol

01 março 2016

Março

Março, iluminura do livro Les Très Riches Heures du Duc de Berry