30 junho 2023

O esplendor do barroco na música de Portugal


Te Deum, obra escrita entre 1742 e 1750 por Francisco António de Almeida, compositor português nascido por volta de 1702, na cidade de Lisboa, e provavelmente morto pelo terramoto de 1755, também em Lisboa. Interpretação de Orlanda Velez Isidro (soprano), Noa Frenkel (contralto), Marcel Beekman (tenor), Hugo Oliveira (barítono), agrupamento vocal Capella Joanina, agrupamento instrumental Flores de Mvsica e orquestra barroca Concerto Ibérico, da Beira Interior. Direção de João Paulo Janeiro

27 junho 2023

Fusão entre natureza e criação


Evocações d'água, 1992, instalação de Alberto Carneiro (1937–2017)

Escultura de Alberto Carneiro (1937–2017)

A Floresta de sonho, instalação de Alberto Carneiro (1937–2017)

Escultura de Alberto Carneiro (1937–2017)

A escultura nasce nesse momento em que o ser e o estar da obra se unificam na matéria: ser de tempo, estar de espaço nas prefigurações da matéria que o gesto transforma. Um corpo habita outro corpo e tudo acontece. Mas, a criação poética não se pode explicar: ela é um enigma, sempre uma vertigem. Sei apenas que o meu corpo é o corpo árvore, o corpo rocha, o corpo rio, o corpo terra transfigurado em obra. Transporto significados e dou-lhes múltiplos sentidos no suceder das metamorfoses. Aquilo que me parece nunca é: toco nas coisas e elas escapam-me no preciso momento em que as nomeio. Sei apenas que estas esculturas têm a ver com o meu corpo, com tudo o que ele sabe do universo, física, mental e subtilmente. (…)


Alberto Carneiro (1937–2017)

21 junho 2023

Música refrescante


Oh, Carol, por Neil Sedaka

Non ho l'età, por Gigliolla Cinquetti

The loco-motion, por Little Eva

Diana, por Paul Anka

She loves you, por The Beatles

Viva la pappa col pomodoro, por Rita Pavone

18 junho 2023

Garcia Fernandes


Anjo Gabriel, painel do lado esquerdo do tríptico Aparição de Cristo a Nossa Senhora, 1531, óleo sobre madeira de Garcia Fernandes (activo em 1514–1565). Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra, Portugal

Aparição de Cristo, painel central do tríptico Aparição de Cristo a Nossa Senhora, 1531, óleo sobre madeira de Garcia Fernandes (activo em 1514–1565). Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra, Portugal

Nossa Senhora, painel do lado direito do tríptico Aparição de Cristo a Nossa Senhora, 1531, óleo sobre madeira de Garcia Fernandes (activo em 1514–1565). Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra, Portugal

Casamento de D. Manuel I, 1531, óleo sobre madeira de Garcia Fernandes (activo em 1514–1565). Museu de S. Roque, Lisboa, Portugal

Desembarque em Lisboa, um dos quatro painéis conhecidos do políptico Os Santos Mártires de Lisboa (Veríssimo, Máxima e Júlia), c. 1530, óleo sobre madeira de Garcia Fernandes (activo em 1514–1565). Museu de Carlos Machado, Ponta Delgada, Açores, Portugal

Garcia Fernandes foi um dos mais destacados pintores portugueses do Renascimento, fazendo parte do notável grupo de artistas a que se convencionou chamar "Escola de Lisboa", que incluiu outros grandes mestres como Jorge Afonso, Gregório Lopes, Cristóvão de Figueiredo, etc.

Tanto a "Escola de Lisboa" como a "Escola de Viseu" (Grão Vasco, Gaspar Vaz, etc.), a "Escola de Coimbra" (Vicente Gil, etc.) e a "Escola de Évora" (Frei Carlos, etc.) não teriam existido se não tivesse vindo para Portugal um pintor flamengo chamado (em português) Francisco Henriques, a que se juntaram outros flamengos. A Arte portuguesa tem uma enorme dívida de gratidão a Francisco Henriques e, em geral, à própria Flandres, que foi berço dos extraordinários artistas que introduziram o Renascimento na pintura em Portugal.

13 junho 2023

Poema do Alegre Desespero


Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre
que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)

com muitos faraós,
todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,

e o Estrabão, o Artaxerxes,
e o Xenofonte, e o Heráclito,
e o desfiladeiro das Termópilas,
e a mulher do Péricles,
e a retirada dos dez mil,

e os reis de barbas encaracoladas
que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro,
e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,

e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.

Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?


António Gedeão (1906–1997)


Estátua funerária de madeira de ébano policroma, Egito, Médio Império, XI dinastia (c. 2000 a. C.). Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

08 junho 2023

O dentista


Fotografia incluída numa das cartas enviadas de Angola por António Lobo Antunes. Da esquerda para a direita: padre Honório, António Lobo Antunes, menina Paula, tenente-coronel Joaquim Hernandez Saldanha Palhoto, capitão Basto, Dr. Graça e alferes Santa Bárbara

Durante bastante tempo colocaram-me numa companhia nas Terras do Fim do Mundo, junto à fronteira com a Zâmbia, num cu de Judas chamado Chiúme, o mais isolado, miserável e pobre que se pode imaginar, porque o MPLA entrava por ali Angola dentro na ideia de cercar o planalto do Huambo. Vivíamos em tendas e barracas quase sem população nenhuma em torno, apenas umas cinquenta ou sessenta pessoas ainda mais miseráveis que nós, com um soba velho que passava o tempo às voltas com uma máquina de costura pré‑histórica, em pedaços, a tentar coser-nos os camuflados sempre com rasgões, que eu ajudava a compor entregando-lhe bocados de adesivo muito mais eficazes que o seu aparelho mirabolante, cuja agulha caprichosa furava tudo menos o que devia. Portanto éramos um bando de almas penadas

(quatro pelotões de atiradores)

mandadas conter os guerrilheiros numa agitação absurda e constante, e mais um morto aqui, e mais um morto acolá, mal alimentados, mal instalados, cheios de cansaço e revolta. De longe em longe o Comando enviava o capelão a amansar-nos a alma com umas missinhas, às vezes ao jantar

(jantar às seis horas porque quase noite já e, a seguir, chatices bélicas)

onde os quatro oficiais que éramos comiam quase merda numa quase cabana, o nosso vocabulário tornava-se mais pesado, às vezes tanto que eu aconselhava o padre

— Vá até lá fora um bocadinho que a conversa não está para saias

mandava-o recolher porque nunca se sabia quando a metralhadora deles, quando os morteiros deles, essas coisas assim que se usavam por aqueles sítios, começavam a existir num estalar de pipocas. Bom. As coisas iam andando, a coxear claro, até que os rapazes começaram a ter problemas com os dentes. As dores de dentes tão maçadoras, às vezes quase mais que um bocadinho, e o problema estava em que não havia dentista, mas como eu era um rapaz decidido resolvi a questão. Chamei um dos mecânicos

(os mecânicos eram tratados por Rodas)

mandei vir uma cadeira para o doente se sentar, um pedaço de lençol para o amarrarem à cadeira, uma tira no peito, outra na barriga, outra nos tornozelos a fim de evitar pontapés, uma última nos pulsos destinada a obviar possíveis azevias na pantufa, chamei o atirador com menos pontaria, expliquei-lhe

— Daqui em diante és dentista

entreguei-lhe uma turquês e proporcionei-lhe o curso após uma aula teórica densa e complexa:

— Estás a ver esta tenaz? É canja: apontas o instrumento à boca, apanhas o que estiver a chatear, puxas para fora e acabam-se os incómodos. Se por acaso o doente protestar enfias-lhe o joelho nas costelas, que é como se faz lá em Portugal e aquilo cai-te logo na mãozinha que é uma beleza.

Pedi uma bata velha a um maqueiro

— E andas com isto vestido porque a partir de agora és doutor

o Rodas, a partir daí, além de Rodas ficou doutor também e a tenaz tornou-se a sua companhia favorita. Só houve um problema: os restantes camaradas começaram a afastar-se dele mas as dores de dentes desataram a diminuir de forma considerável, para além do dentista se haver transformado de súbito num solitário porque, incompreensivelmente, os restantes heróis quase não lhe falavam, o que entristecia o doutor embora eu lhe aclarasse as meninges argumentando que a solidão era o destino dos génios mas que depois de defunto seria admiradíssimo, perspectiva que, não sei porquê, feitios, não me pareceu tê-lo alegrado muito. Quem o veio salvar da melancolia, na qual principiavam a notar-se impulsos suicidas, foi o capelão, enviado pelo Comando para nos encher a alma de Avé Marias libertadoras. O capelão, que desembarcou da avioneta agarrado à bochecha, disse-me logo

— Trago um problema num molar que não vejo nada

informei-o

— Descanse que daqui a dez minutos está porreirinho da Silva, tenho cá um dentista do caneco à sua espera.

Chamou-se o doutor, que veio de tenaz em punho, pedi ao capelão que se sentasse na cadeira, amarrámo-lo como um chouriço, solicitei com bons modos ao santo sacerdote

— Abra a boca e reze

solicitei ao Rodas

— E tu vê lá se me fazes isso como deve ser

o Rodas para o padre, cheio de delicadezas uma vez que os verdadeiros cientistas são uma joia de pessoas

— Abra a boca senhor prior

com o capelão a olhar-me aterrado, sem poder falar porque a tenaz lhe enchia a boca enquanto o dentista puxava, esmagando o joelho naquilo que, a pouco e pouco, ia deixando de ser o torax. Mas o facto é que o dente saiu. Não sei qual, espero que aquele que doía

(sou um homem de Fé)

mas saiu. Posso jurar, tive-o na mão. Só não percebo o motivo que fez com que o santo homem nunca mais nos aparecesse. Tornei a vê-lo ao mudarmos para a Baixa do Cassanje, mas não pude conversar com a bondosa criatura visto que desatou logo a fugir. É triste que haja pessoas mal agradecidas.



António Lobo Antunes. Crónica publicada na revista Visão, n.º 1336, de 11 de outubro de 2018

02 junho 2023

As quatro encarnações de um médico


Quando um doente precisa de ser salvo, o médico é Deus

Enquanto o doente é tratado, o médico é um anjo

Quando o doente melhora, o médico é apenas um homem

Quando, após a cura do doente, requer o pagamento dos serviços prestados, o médico é Satanás

Esta série de quatro gravuras, feitas em 1587 segundo uma técnica chamada intaglio, é da autoria de Hendrick Goltzius (1558–1617), pintor e gravador neerlandês, e representa as formas sob as quais um médico era visto pela sociedade do seu tempo e, talvez, de todos os tempos.