30 junho 2023
27 junho 2023
Fusão entre natureza e criação
“
A escultura nasce nesse momento em que o ser e o estar da obra se unificam na matéria: ser de tempo, estar de espaço nas prefigurações da matéria que o gesto transforma. Um corpo habita outro corpo e tudo acontece. Mas, a criação poética não se pode explicar: ela é um enigma, sempre uma vertigem. Sei apenas que o meu corpo é o corpo árvore, o corpo rocha, o corpo rio, o corpo terra transfigurado em obra. Transporto significados e dou-lhes múltiplos sentidos no suceder das metamorfoses. Aquilo que me parece nunca é: toco nas coisas e elas escapam-me no preciso momento em que as nomeio. Sei apenas que estas esculturas têm a ver com o meu corpo, com tudo o que ele sabe do universo, física, mental e subtilmente. (…)”
Alberto Carneiro (1937–2017)
21 junho 2023
Música refrescante
18 junho 2023
Garcia Fernandes
Tanto a "Escola de Lisboa" como a "Escola de Viseu" (Grão Vasco, Gaspar Vaz, etc.), a "Escola de Coimbra" (Vicente Gil, etc.) e a "Escola de Évora" (Frei Carlos, etc.) não teriam existido se não tivesse vindo para Portugal um pintor flamengo chamado (em português) Francisco Henriques, a que se juntaram outros flamengos. A Arte portuguesa tem uma enorme dívida de gratidão a Francisco Henriques e, em geral, à própria Flandres, que foi berço dos extraordinários artistas que introduziram o Renascimento na pintura em Portugal.
13 junho 2023
Poema do Alegre Desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre
que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós,
todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes,
e o Xenofonte, e o Heráclito,
e o desfiladeiro das Termópilas,
e a mulher do Péricles,
e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas
que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro,
e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio
e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
António Gedeão (1906–1997)
08 junho 2023
O dentista
Durante bastante tempo colocaram-me numa companhia nas Terras do Fim do Mundo, junto à fronteira com a Zâmbia, num cu de Judas chamado Chiúme, o mais isolado, miserável e pobre que se pode imaginar, porque o MPLA entrava por ali Angola dentro na ideia de cercar o planalto do Huambo. Vivíamos em tendas e barracas quase sem população nenhuma em torno, apenas umas cinquenta ou sessenta pessoas ainda mais miseráveis que nós, com um soba velho que passava o tempo às voltas com uma máquina de costura pré‑histórica, em pedaços, a tentar coser-nos os camuflados sempre com rasgões, que eu ajudava a compor entregando-lhe bocados de adesivo muito mais eficazes que o seu aparelho mirabolante, cuja agulha caprichosa furava tudo menos o que devia. Portanto éramos um bando de almas penadas”(quatro pelotões de atiradores)
mandadas conter os guerrilheiros numa agitação absurda e constante, e mais um morto aqui, e mais um morto acolá, mal alimentados, mal instalados, cheios de cansaço e revolta. De longe em longe o Comando enviava o capelão a amansar-nos a alma com umas missinhas, às vezes ao jantar
(jantar às seis horas porque quase noite já e, a seguir, chatices bélicas)
onde os quatro oficiais que éramos comiam quase merda numa quase cabana, o nosso vocabulário tornava-se mais pesado, às vezes tanto que eu aconselhava o padre
— Vá até lá fora um bocadinho que a conversa não está para saias
mandava-o recolher porque nunca se sabia quando a metralhadora deles, quando os morteiros deles, essas coisas assim que se usavam por aqueles sítios, começavam a existir num estalar de pipocas. Bom. As coisas iam andando, a coxear claro, até que os rapazes começaram a ter problemas com os dentes. As dores de dentes tão maçadoras, às vezes quase mais que um bocadinho, e o problema estava em que não havia dentista, mas como eu era um rapaz decidido resolvi a questão. Chamei um dos mecânicos
(os mecânicos eram tratados por Rodas)
mandei vir uma cadeira para o doente se sentar, um pedaço de lençol para o amarrarem à cadeira, uma tira no peito, outra na barriga, outra nos tornozelos a fim de evitar pontapés, uma última nos pulsos destinada a obviar possíveis azevias na pantufa, chamei o atirador com menos pontaria, expliquei-lhe
— Daqui em diante és dentista
entreguei-lhe uma turquês e proporcionei-lhe o curso após uma aula teórica densa e complexa:
— Estás a ver esta tenaz? É canja: apontas o instrumento à boca, apanhas o que estiver a chatear, puxas para fora e acabam-se os incómodos. Se por acaso o doente protestar enfias-lhe o joelho nas costelas, que é como se faz lá em Portugal e aquilo cai-te logo na mãozinha que é uma beleza.
Pedi uma bata velha a um maqueiro
— E andas com isto vestido porque a partir de agora és doutor
o Rodas, a partir daí, além de Rodas ficou doutor também e a tenaz tornou-se a sua companhia favorita. Só houve um problema: os restantes camaradas começaram a afastar-se dele mas as dores de dentes desataram a diminuir de forma considerável, para além do dentista se haver transformado de súbito num solitário porque, incompreensivelmente, os restantes heróis quase não lhe falavam, o que entristecia o doutor embora eu lhe aclarasse as meninges argumentando que a solidão era o destino dos génios mas que depois de defunto seria admiradíssimo, perspectiva que, não sei porquê, feitios, não me pareceu tê-lo alegrado muito. Quem o veio salvar da melancolia, na qual principiavam a notar-se impulsos suicidas, foi o capelão, enviado pelo Comando para nos encher a alma de Avé Marias libertadoras. O capelão, que desembarcou da avioneta agarrado à bochecha, disse-me logo
— Trago um problema num molar que não vejo nada
informei-o
— Descanse que daqui a dez minutos está porreirinho da Silva, tenho cá um dentista do caneco à sua espera.
Chamou-se o doutor, que veio de tenaz em punho, pedi ao capelão que se sentasse na cadeira, amarrámo-lo como um chouriço, solicitei com bons modos ao santo sacerdote
— Abra a boca e reze
solicitei ao Rodas
— E tu vê lá se me fazes isso como deve ser
o Rodas para o padre, cheio de delicadezas uma vez que os verdadeiros cientistas são uma joia de pessoas
— Abra a boca senhor prior
com o capelão a olhar-me aterrado, sem poder falar porque a tenaz lhe enchia a boca enquanto o dentista puxava, esmagando o joelho naquilo que, a pouco e pouco, ia deixando de ser o torax. Mas o facto é que o dente saiu. Não sei qual, espero que aquele que doía
(sou um homem de Fé)
mas saiu. Posso jurar, tive-o na mão. Só não percebo o motivo que fez com que o santo homem nunca mais nos aparecesse. Tornei a vê-lo ao mudarmos para a Baixa do Cassanje, mas não pude conversar com a bondosa criatura visto que desatou logo a fugir. É triste que haja pessoas mal agradecidas.
António Lobo Antunes. Crónica publicada na revista Visão, n.º 1336, de 11 de outubro de 2018
02 junho 2023
As quatro encarnações de um médico
Esta série de quatro gravuras, feitas em 1587 segundo uma técnica chamada intaglio, é da autoria de Hendrick Goltzius (1558–1617), pintor e gravador neerlandês, e representa as formas sob as quais um médico era visto pela sociedade do seu tempo e, talvez, de todos os tempos.