30 abril 2023
25 abril 2023
Como foi o 25 de Abril no Porto
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O PORTO DEMOROU ALGUM TEMPO A APERCEBER-SE DO QUE SE PASSAVA”
Só muito lentamente o Porto se foi apercebendo da invulgaridade da situação. De facto, embora desde bastante cedo o «Movimento das Forças Armadas» difundisse comunicados, a esmagadora maioria das pessoas que, ontem de manhã, se deslocavam para os empregos só começaram a verificar que algo de anormal se passava quando, em diversos pontos da cidade, depararam com tropas e viaturas militares estrategicamente colocadas. Depois, a novidade correu rapidamente — e, a meio da manhã, era geral a ansiedade por notícias e a avidez de informações. De qualquer modo, a vida da cidade processou-se sempre normalmente sem qualquer sobressalto.
As tropas revoltosas começaram a convergir para a capital do Norte a partir das três horas da madrugada. Uma companhia (140 homens) do Batalhão de Caçadores n.º 9, de Viana do Castelo, chegou aos limites da cidade cerca das 7 horas — e logo passou a controlar as ligações para Braga e Viana do Castelo, dominando também o aeroporto de Pedras Rubras.
Militares mandavam parar os veículos e revistavam as malas. Um oficial esclareceu-nos: «Procuramos uma coisa e, provavelmente, outras. Nada mais lhe posso dizer».
Elementos da mesma unidade, sob o comando de um major, ocuparam também toda a zona circundante do aeroporto.
— Estamos aqui, apenas para manter a segurança — declarou-nos aquele oficial — e pretendemos que tudo continue a decorrer normalmente.
O ambiente era de calma total e os soldados, em fatos de campanha, com mochilas e bornais, descansavam nos seus postos, comendo sanduiches. Soubemos que as tropas logo que chegaram procederam ao desarme das forças policiais do aeroporto, identificando, simultaneamente, os funcionários.
Quase em sincronização, todas as outras entradas da cidade caíam também sob controlo das forças revoltosas. Nas pontes de D. Luís e da Arrábida, pelotões comandados por capitães, em fato de combate, de granadas à cinta, controlavam a situação e mantinham discreta vigilância.
Tropas de Lamego prendem general
Entretanto, tropas do C. I. O. E., de Lamego, haviam chegado também, ao princípio da manhã, ao centro do Porto. Uma das suas primeiras iniciativas foi prender o sr. general Martins Soares, comandante da Região, e o 2.º comandante, sr. brigadeiro Oliveira Barreto. Depois, alguns dos seus veículos, onde se lia em letras bem gordas «Aqui Comandos !», encaminharam-se para o Sul, enquanto um pelotão, chefiado por oficiais do Porto, ocupava o estúdio do Rádio Clube Português, na Rua do Tenente Valadim. O grupo que avançou para Gaia e cercou e ocupou as instalações daquela emissora, em Miramar, entrincheirou-se nas dunas. Este grupo de Comandos devia embarcar amanhã para a Guiné.No centro da cidade, o aparato bélico foi mais acentuado até cerca das 9 horas e meia da manhã. Transportes de tropas e autometralhadoras «Panhard» encontravam-se na Avenida dos Aliados e na Praça do Município e um canhão esteve, durante algum tempo, apontado para a Câmara Municipal. Depois, este dispositivo retirou. Na Praça da República, diante e em torno do Quartel-General tropas armadas patrulhavam e um major dirigia as operações no local.
Todo este movimento se desenvolvia com àvontade e fluidez. Não havia gestos febris. Tudo parecia metodicamente feito. Os militares envolvidos no movimento conservaram sempre grande mutismo e, quando abordados pelos repórteres, urbanamente escusavam-se a fornecer quaisquer informações.
G. N. R. afirma: «Não é nada connosco»
Entretanto, sabia-se que toda a guarnição militar do Porto tinha aderido à revolta, registando-se saídas de tropas, com objectivos indeterminados, dos quartéis do Centro de Instrução de Condutores-Auto, ao Palácio de Cristal, e do Regimento de Cavalaria n.º 6, em Serpa Pinto. Na primeira daquelas unidades, havia sacos de areia nos parapeitos.Todas as unidades conservaram, no entanto, os portões rigorosamente fechados e, dentro, os militares apresentavam-se anormalmente armados.
Nos quartéis da G.N.R. da Belavista e do Carmo, a situação era idêntica: tudo cerrado. A reportagem JN tentou averiguar se houvera movimentos desta força militarizada e foi respondido que não. Um oficial do último daqueles quartéis, interrogado sobre a situação, respondeu: «O que se está a passar não é nada connosco».
Por outro lado, o sr. coronel Santos Júnior, comandante da P.S.P. do Porto, declarou-nos também, de manhã, que homens sob as suas ordens apenas faziam o policiamento normal.
A população seguia atentamente os comunicados, ouvindo rádios nos cafés e estabelecimentos, ou de «transistor» colado à orelha. Todavia, inesperadamente, por volta das 10 horas, o Rádio Clube Português emissora que, desde a primeira hora, foi o porta-voz do movimento, deixava de se ouvir no Porto. A explicação surgiu pouco depois: a Chenop cortara-lhe a corrente, assumindo toda a responsabilidade da atitude. Soube-se, posteriormente, que o responsável pelo corte foi o sr. eng.º Manuel Vieira.
Da parte da tarde, o movimento já aparecia à cidade como irreversível. Nos quartéis, a situação continuava extremamente calma, embora, segundo alguns militares, contasse que forças da G.N.R. preparavam uma contra-revolução Esses mesmo militares consideravam, porém, que, em face da amplitude já assumida pelo movimento, qualquer tentativa do género estava condenada ao malogro.
Manifestação de apoio aos militares
A população começou então a concentrar-se na Praça da Liberdade e organizou uma manifestação de apoio ao Movimento que subia e descia constantemente a avenida. Surgiu polícia para dispersar, surgiram elementos militares procurando solucionar a situação. Todavia os ânimos exaltaram-se, a Câmara foi apedrejada, houve tiros — e pessoas feridas foram levadas para o Hospital de Santo António, onde, entretanto, enfermeiros e enfermeiras começaram a dar sangue, como medida de prevenção.Por outro lado, as forças de Comandos que se encontravam no Rádio Clube Português, deixaram um pelotão de guarda às instalações e, a meio da tarde, marcharam para a Chenop a fim de reporem o abastecimento de energia eléctrica àquela estação. Pouco depois das 19 horas, esta situação foi normalizada.
Entretanto, na Praça da Liberdade a situação atingia, pelo fim da tarde, grande tensão — e surgiram, nessa altura, comunicados, através da Rádio, de três em três minutos, pedindo à população portuense que recolhesse a casa, evitando recontros com a P. S. P..
As autoridades administrativas do Porto mantiveram-se silenciosas durante todo o dia de ontem. Soubemos que o governador civil, sr. conselheiro Valente Leal, ao fim da tarde partiu para Lisboa. Por outro lado, o presidente da Câmara, sr. eng.º Nuno Vasconcelos Porto, declarou-nos, cerca do meio-dia de ontem:
— Pelas funções que desempenhamos, tudo decorre normalmente. Não há qualquer problema. E porque a situação é normal, tenho trabalhado, durante toda a manhã, no despacho do expediente.
Funcionamento normal dos tribunais
Apesar de ser já conhecida a acção das Forças Armadas, os tribunais do Porto — cíveis, criminais, do Trabalho e todos os outros — funcionaram normalmente, se bem que no Palácio da Justiça o movimento tivesse sido muito reduzido, não se realizando julgamentos de processos cíveis.Por sua vez, no Tribunal Militar do Porto, efectuaram-se julgamentos, mas foi impedida a entrada a todos quantos pretenderam assistir às audiências, incluindo um oficial superior.
Também todas as repartições públicas funcionaram sem qualquer alteração, encerrando à hora habitual.
INTERROMPIDAS AS AULAS EM MUITAS ESCOLAS
Em consequência dos acontecimentos e correspondendo aos apelos do «Movimento das Forças Armadas», a feição da cidade do Porto a partir do meio da tarde, foi-se alterando, com os estabelecimentos a encerrar progressivamente. Ao cair da noite, as ruas da cidade foram-se despovoando e, por volta das 22 horas, o Porto mais parecia uma pacata aldeia do interior, sem viva alma nas artérias.Para isso contribuiram não só os apelos da Rádio mas também os furgões do Exército que, a partir das 21 horas, com altifalantes no tejadilho, percorreram a cidade aconselhando as pessoas a recolher a casa e a não sairem antes das 8 horas de hoje.
A P. S. P., entretanto, desapareceu totalmente das ruas, sendo substituídas por patrulhas motorizadas do Exército, que eram ovacionadas sempre que passassem por um grupo de pessoas.
Os acontecimentos como é natural, tiveram repercussão no funcionamento dos vários estabelecimentos de ensino. Embora nos primeiros períodos de aulas se não tivesse, praticamente registado qualquer anormalidade do serviço, o certo é que à medida que as horas iam decorrendo a situação começou a alterar-se.
Com efeito, em quase todas as escolas, acabaram por ser interrompidas as aulas seja por determinação dos respectivos directores, seja pela falta de comparência de alunos. Poucos foram, portanto, os estabelecimentos de ensino que mantiveram uma actividade susceptível de ser considerada normal.
S. JOÃO ESPONTÂNEO NA PRAÇA DA LIBERDADE
A população do Porto cumpriu, de um modo geral, as recomendações insistentes das forças revoltosas para que se mantivesse durante a noite em suas casas. As ruas do Porto, a partir das 21 horas, tinham um aspecto de expectante calma, às vezes quebrada pela corrida ruidosa de um automóvel buzinando ou de um grupo de jovens gritando alto. Não se viam transportes públicos. De vez em quando passavam, a grande velocidade, automóveis cheios de gente e, aparentemente sem destino, demoravam-se às voltas a praças e avenidas.No entanto, na Baixa, por toda a Avenida dos Aliados e Praça da Liberdade, patrulhadas por forças da Polícia Militar e do Regimento de Artilharia Pesada n.º 2, uma multidão vitoriava os soldados e gritava estribilhos de «Vitória! Vitória!»
Uma espécie de S. João espontâneo cresceu na Baixa. Correrias, abraços, buzinas de automóveis; os «Unimogs» que passavam com soldados eram praticamente assaltados pela multidão; rádios-portáteis lançavam para o ar estridentes marchas militares; comunicados eram escutados em grupos compactos reunidos em torno dos aparelhos e o «Viva Portugal!» finnal sublinhado por aclamações da multidão. Grupos de jovens trabalhadores e estudantes divulgavam comunicados; entretanto, soldados e oficiais pediam às pessoas para dispersarem e recolherem às residências. Os automobilistas eram também abordados para alterarem o seu percurso e dispersarem pelas ruas circundantes.
Cerca da meia-noite, no entanto, a festa continuava.
Jornal de Notícias, 26 de abril de 1974
23 abril 2023
Resistir
Dobrar na boca o frio da espora
Calcar o passo sobre lume
Abrir o pão a golpes de machado
Soltar pelo flanco os cavalos do espanto
Fazer do corpo um barco e navegar a pedra
Regressar devagar ao corpo morno
Beber um outro vinho pisado por um astro
Possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor.
Joaquim Pessoa (1948–2023), in Paiol de Pólen
21 abril 2023
Frei Carlos
Do notável pintor quinhentista Frei Carlos, sabe-se que professou no antigo convento do Espinheiro (agora convertido em hotel de luxo), da ordem de São Jerónimo, nos arredores de Évora, em abril de 1517. Quando professou, terá ele declarado: “Eu Frei Carlos de Lisboa flamengo faço profissão…” Deduz-se daqui que Frei Carlos terá nascido em Lisboa, no seio de uma família flamenga. Deve ter estudado na Flandres, talvez em Bruges ou Antuérpia, e a seguir regressou a Portugal. Foi no convento do Espinheiro que ele produziu a maior parte das suas obras, desde grandes retábulos até pequenos quadros devocionais, mas sempre com o característico "toque" flamengo. Deve ter falecido por volta de 1540, ano em que foi tomada a decisão sobre o destino a dar ao espólio por ele deixado.
17 abril 2023
A Crise de Coimbra em 1969 pelo desenho
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Em bicos de pés, do alto do seu poleiro televisivo, o Senhor Ministro recitava a velha história: «Neste momento sabe-se que já convergiram para Coimbra conhecidos elementos de agitação». E pomposo, saboreando antecipadamente o efeito que sobre a Academia e o País as suas palavras iriam ter, promete firmemente uma certeza: «A de que a ordem vai ser restabelecida na Universidade de Coimbra».Sabe-se a resposta dos estudantes. Mas essa comunicação ao País origina uma inovação nas lutas estudantis, que meteria a ridículo o Senhor Ministro e o seu discurso. De facto, talvez ainda recebesse os parabéns pela sua firmeza, um cartaz, depois reproduzido em desenho, colocava em erecta coluna, balançando preso por uma linha precária, prestes a ser cortada, a figura legendada «Hermano I, o Firme».
Que o discurso agradou a alguns, é um facto. Também está documentado: um carneiro, sentado num tacho, sentencia: «Eu cá gostei do discurso». Um outro desenho dava cabal razão ao Senhor Ministro. Com efeito, com a legenda «Neste momento sabe-se que já convergiram para Coimbra conhecidos elementos de agitação», ali estavam bem retratados: um polícia de choque e um cão.
Partia-se assim para um tipo de luta que, através do ridículo, pela apreensão directa («uma imagem vale mais que mil palavras») viria a ser um instrumento denunciador de uma situação anormal. O desenho testemunha a brutal repressão, os inquéritos, as coacções de todo o tipo, que procuram obrigar os estudantes a traírem-se a si próprios, indo a exames, a autêntica ocupação militar de Coimbra por quantas polícias existiam.
A sua larguíssima difusão, não só em Coimbra mas por todo o país, leva a cada canto uma imagem fiel do sistema repressivo então vivido, granjeando, ao mesmo tempo, a simpatia da população pela luta estudantil e desmascarando a tal primavera anunciada, que à vista de todos, na repressão e no aparato policial, mostrava bem a sua verdadeira face.
Mas, se por um lado a imagem servia de denúncia de uma situação, era também um meio de angariação de fundos para a luta. Claro que, como sempre os donos do poder tinham dito, repetiam agora que o dinheiro vinha de longínquas paragens, porventura trazido pelos tais «conhecidos agitadores».
Os diversos comunicados, de que eram feitas repetidas tiragens, obviamente custavam dinheiro e, a partir do momento em que dezenas de estudantes começaram a ser presos, diariamente, através da Secção Social, cada um recebia a prova da solidariedade dos seus colegas: um saco onde, mais do que as sandes, os bolos, os sumos ou o tabaco, sentiam a presença da Academia, que todos os dias lhe ia dizer, dessa forma, que a luta era de todos, que a Academia estava unida contra a repressão que sobre eles se abatia.
Ligado aos desenhos, ocorre-me um episódio do qual, apesar do natural retraimento por nele estar envolvido, aqui queria dar testemunho. Aquando da inauguração do Edifício das Matemáticas, em 17 de Abril, não estavam ainda pintados os frescos hoje existentes no átrio.
Em Junho ou Julho, Almada Negreiros — e isso mostra a importância que a luta estudantil assumira — não deixou de ir à Associação Académica perguntar se os estudantes não viam inconveniente em que ele então os pintasse. Na altura, foram-lhe oferecidos alguns dos muitos desenhos que documentavam a crise. Alguém disse que eu era o autor de uns tantos, tendo Almada dito, dirigindo-se a mim:
— «Então somos colegas!»
— «Ah sim? — respondi sorrindo — também anda em Direito?»
A boa disposição geral levou-me a vencer uma natural timidez, ousando pedir-lhe que me fizesse um desenho. E é assim que, das muitas recordações da Crise de 1969, tenho numa parede, com dedicatória e tudo, um auto-retrato, com roupagens de Arlequim, do «meu colega» Almada Negreiros.
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Carlos Santarém Andrade (1941–2023). Texto do catálogo da exposição "Coimbra 69", que teve lugar na Biblioteca-Museu República e Resistência, em Lisboa, em 1999