Desmontando e reconstruindo a ideia de lusofonia
Excerto da intervenção de Mia Couto na conferência internacional promovida pela RTP sobre "O Serviço Público de Rádio e Televisão no Contexto Internacional: A Experiência Portuguesa". O texto de onde retirei esta citação é da responsabilidade do semanário Savana, de Maputo, e pode ser lido aqui.
(...)
«Quando a lusofonia foi proclamada como um projecto supranacional houve interrogações que foram levantadas. Eu mesmo questionei o sentido desse projecto numa realidade plural em que parte dos seus cidadãos não fala português ou fala português como segunda língua. Evidentemente que eu me posicionava tendo, sobretudo, em conta a realidade do meu país. Não seria justo inventarmos um patamar de cidadania que excluía, à partida, mais de metade dos moçambicanos. A verdade é esta: apenas uma das nações de Moçambique já vive na lusofonia. Apenas parte dos moçambicanos já se reconhecem como falando e sendo falados pela língua portuguesa. Mas também é verdade que toda a grande nação moçambicana encontra no português a sua língua de construção, o idioma que a projecta num corpo unitário e que a torna capaz de viver na modernidade.
(...)
O lugar e o papel da língua portuguesa como idioma oficial em Moçambique foram debatidos, em 1962, no primeiro congresso da Frente de Libertação de Moçambique realizado na clandestinidade perto de Dar-es-Salaam. A maior parte das actas -- incluindo a decisão de adoptar o português como língua oficial -- foram redigidas em inglês. Os quadros com maior formação escolar tinham estudado nos países vizinhos. O português foi adoptado não como uma herança mas como talvez a mais valiosa ferramenta para forjar a unidade da futura nação. Se a adopção do português foi um acto de soberania, já a criação da lusofonia não resultou de iniciativa própria de Moçambique. O projecto lusófono surgiu, afinal, pouco tempo depois daquilo que em Portugal se chamou de "descolonização". Detenho-me na palavra "descolonização" porque ela é um exemplo claro de divergentes modos de ler o passado. O termo "descolonização" é emblemático do que Bernard Shaw disse do inglês: podemos ter uma língua comum para melhor nos desentendermos. Ainda hoje, para muitos portugueses, o que aconteceu em África foi que Portugal, com o 25 de Abril, aceitou, enfim, descolonizar, os territórios africanos. Ora, parece a nós, africanos, que é preciso acertar o sujeito do verbo. Não foi Portugal que descolonizou os países africanos. A descolonização só pode ser feita pelos próprios colonizados. E nós, todos nós, sem excepção, éramos colonizados. Descolonizámo-nos uns aos outros, uns e outros. Parece um detalhe, coisa de uma simples palavra. E as palavras traduzem modos de pensar. E esse passado que nos feriu a todos não pode ser superado apenas com apelos ao esquecimento. Não é de esquecer o passado que necessitamos. Mas de o entender. De qualquer modo, para Moçambique, o projecto da lusofonia surgiu pouco depois da ruptura colonial. Era natural que houvessem dúvidas. E parecia óbvio que os países africanos não se podiam reclamar da lusofonia do mesmo modo dos portugueses e brasileiros. A maior parte dos africanos ama as suas outras línguas maternas e esperava (e ainda espera) que esses idiomas não sejam votados ao esquecimento ou arrumados naquilo que se chama o património tradicional. Estamos, pois, perante um processo que necessitou de vencer inércias e superar desconfianças. A falta de confiança, porém, não estava reservada apenas à antiga potência colonizadora. Havia suspeições de parte a parte. Vale a pena recordar aqui uma espécie de "tesourinho deprimente" da nossa história recente. Todos nos lembramos como certos sectores da política portuguesa entraram em pânico com a adesão de Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os moçambicanos haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso? As reacções de algumas facções foram de tal modo excessivas que só podiam ser explicadas por um sentimento de perda de um antigo império. A exemplo da síndrome do marido traído que, não reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se pergunta: com quem é que ela anda agora?
(...)
Na realidade, as autoridades moçambicanas não mudaram a sua política linguística e o português permaneceu na sua condição de língua oficial e unificadora. Fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O Governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que séculos de colonização. Mas não o fez por causa de um projecto chamado "lusofonia". Nem o fez para demonstrar nada aos outros ou para lançar culpas ao antigo colonizador. Fê-lo pelo seu próprio interesse nacional, pela defesa da coesão interna, pela construção da sua própria interioridade. Há poucos dias a televisão moçambicana contou a história de dois jovens aliciados na província de Nampula para virem trabalhar em Maputo. Era um triste exemplo das novas redes de trabalho escravo. Os jovens foram, sem o saber, transferidos para a Suazilândia onde foram mantidos numa espécie de cativeiro. Os contactos com a gente local estavam limitados: os jovens falavam apenas a sua língua (e-makua) e não entendiam uma palavra de seswati. Até que um dia, junto ao rio onde lavavam roupa, escutaram um grupo de jovens falando em português. Foi então que entenderam onde estavam e, ali mesmo em português, planearam a sua fuga para Moçambique. Este episódio parece isolado e circunstancial, mas ele traduz o quanto a língua portuguesa nos serve como cartão de identidade numa realidade linguística tão dispersa e fragmentada. Esta é a ironia da História e do modo como ela baralha os destinos: sabemos quem somos e onde estamos por via de um idioma que, antes, parecia ser dos outros e vinha de fora.
(...)
Temos um modo estranho de lidar com a realidade, como se o real fosse um contrabando a transportar para territórios que não são nossos. Um dos territórios a que nos habituamos que não fosse nunca nosso é o futuro. Os outros, de outras línguas, parecem sentir-se mais à vontade nesse lado de lá do tempo. Tanto nos disseram que éramos pequenos para ter presente que acabamos por encarar o futuro com suspeição. Contentamo-nos com viver de desbotadas memórias de um passado longínquo: É verdade que não podemos criar história fora do passado. Mas não podemos é fazer do passado a nossa História. Falo da dificuldade de nos projectarmos no Tempo porque aquilo que nos traz aqui hoje -- a lusofonia -- existe no futuro para ser pensado ontem e produzido hoje. A lusofonia é algo estranho, pois é um ser que existe para nascer. A lusofonia é qualquer coisa que é já nosso, mas que parece ainda não nos pertencer a todos por igual. De uma criatura assim seria mais fácil dizer mal e lançar suspeições. O projecto da lusofonia tem essa enorme desvantagem de ser preciso fazer qualquer coisa e de nos empurrar para fora desse invisível muro onde descansamos existências e lançamos culpas sobre os outros.
(...) será no que fizermos que nos converteremos realmente numa comunidade capaz de propor discursos inovadores e introduzir mudanças. Dizemos que a língua portuguesa não é apenas dos portugueses. E acreditamos que isso seja a manifestação de uma intenção política, de uma vontade adoptada. Mas não se trata de intenção ou vontade. Trata-se de uma questão histórica: há séculos que a língua portuguesa é também africana. O que seria do idioma português se não tivesse beneficiado das contribuições linguísticas dos árabes que ocuparam e viveram na Península Ibérica? Esses árabes ajudaram a tecer este grande tapete onde se deitam as nossas almas. Esses árabes são africanos, tanto como nós, os que habitamos mais a Sul. Há séculos que o idioma lusitano é um filho mestiço de namoros feitos entre as duas margens do Mediterrâneo.
E mesmo se nos quisermos abster à influência das línguas bantus nascidas depois do tempo das caravelas: há quanto tempo palavras como minhoca, cambada e candonga e tantas outras se instalaram na língua portuguesa? Pois eu vos digo, tomando apenas um exemplo: a palavra minhoca instalou-se no século XVI e hoje a maior parte dos portugueses nem sequer suspeita da sua origem longínqua. Meus amigos, a verdade é a seguinte: a lusofonia não começou hoje. A nossa língua comum foi construída por laços antigos, tão antigos que por vezes lhes perdemos o rasto. De uma vez por todas, superemos receios e fantasmas. De uma vez por todas namoremos o futuro para que ele se enamore de nós.»
Mia Couto, escritor moçambicano.
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«Quando a lusofonia foi proclamada como um projecto supranacional houve interrogações que foram levantadas. Eu mesmo questionei o sentido desse projecto numa realidade plural em que parte dos seus cidadãos não fala português ou fala português como segunda língua. Evidentemente que eu me posicionava tendo, sobretudo, em conta a realidade do meu país. Não seria justo inventarmos um patamar de cidadania que excluía, à partida, mais de metade dos moçambicanos. A verdade é esta: apenas uma das nações de Moçambique já vive na lusofonia. Apenas parte dos moçambicanos já se reconhecem como falando e sendo falados pela língua portuguesa. Mas também é verdade que toda a grande nação moçambicana encontra no português a sua língua de construção, o idioma que a projecta num corpo unitário e que a torna capaz de viver na modernidade.
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O lugar e o papel da língua portuguesa como idioma oficial em Moçambique foram debatidos, em 1962, no primeiro congresso da Frente de Libertação de Moçambique realizado na clandestinidade perto de Dar-es-Salaam. A maior parte das actas -- incluindo a decisão de adoptar o português como língua oficial -- foram redigidas em inglês. Os quadros com maior formação escolar tinham estudado nos países vizinhos. O português foi adoptado não como uma herança mas como talvez a mais valiosa ferramenta para forjar a unidade da futura nação. Se a adopção do português foi um acto de soberania, já a criação da lusofonia não resultou de iniciativa própria de Moçambique. O projecto lusófono surgiu, afinal, pouco tempo depois daquilo que em Portugal se chamou de "descolonização". Detenho-me na palavra "descolonização" porque ela é um exemplo claro de divergentes modos de ler o passado. O termo "descolonização" é emblemático do que Bernard Shaw disse do inglês: podemos ter uma língua comum para melhor nos desentendermos. Ainda hoje, para muitos portugueses, o que aconteceu em África foi que Portugal, com o 25 de Abril, aceitou, enfim, descolonizar, os territórios africanos. Ora, parece a nós, africanos, que é preciso acertar o sujeito do verbo. Não foi Portugal que descolonizou os países africanos. A descolonização só pode ser feita pelos próprios colonizados. E nós, todos nós, sem excepção, éramos colonizados. Descolonizámo-nos uns aos outros, uns e outros. Parece um detalhe, coisa de uma simples palavra. E as palavras traduzem modos de pensar. E esse passado que nos feriu a todos não pode ser superado apenas com apelos ao esquecimento. Não é de esquecer o passado que necessitamos. Mas de o entender. De qualquer modo, para Moçambique, o projecto da lusofonia surgiu pouco depois da ruptura colonial. Era natural que houvessem dúvidas. E parecia óbvio que os países africanos não se podiam reclamar da lusofonia do mesmo modo dos portugueses e brasileiros. A maior parte dos africanos ama as suas outras línguas maternas e esperava (e ainda espera) que esses idiomas não sejam votados ao esquecimento ou arrumados naquilo que se chama o património tradicional. Estamos, pois, perante um processo que necessitou de vencer inércias e superar desconfianças. A falta de confiança, porém, não estava reservada apenas à antiga potência colonizadora. Havia suspeições de parte a parte. Vale a pena recordar aqui uma espécie de "tesourinho deprimente" da nossa história recente. Todos nos lembramos como certos sectores da política portuguesa entraram em pânico com a adesão de Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os moçambicanos haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso? As reacções de algumas facções foram de tal modo excessivas que só podiam ser explicadas por um sentimento de perda de um antigo império. A exemplo da síndrome do marido traído que, não reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se pergunta: com quem é que ela anda agora?
(...)
Na realidade, as autoridades moçambicanas não mudaram a sua política linguística e o português permaneceu na sua condição de língua oficial e unificadora. Fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O Governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que séculos de colonização. Mas não o fez por causa de um projecto chamado "lusofonia". Nem o fez para demonstrar nada aos outros ou para lançar culpas ao antigo colonizador. Fê-lo pelo seu próprio interesse nacional, pela defesa da coesão interna, pela construção da sua própria interioridade. Há poucos dias a televisão moçambicana contou a história de dois jovens aliciados na província de Nampula para virem trabalhar em Maputo. Era um triste exemplo das novas redes de trabalho escravo. Os jovens foram, sem o saber, transferidos para a Suazilândia onde foram mantidos numa espécie de cativeiro. Os contactos com a gente local estavam limitados: os jovens falavam apenas a sua língua (e-makua) e não entendiam uma palavra de seswati. Até que um dia, junto ao rio onde lavavam roupa, escutaram um grupo de jovens falando em português. Foi então que entenderam onde estavam e, ali mesmo em português, planearam a sua fuga para Moçambique. Este episódio parece isolado e circunstancial, mas ele traduz o quanto a língua portuguesa nos serve como cartão de identidade numa realidade linguística tão dispersa e fragmentada. Esta é a ironia da História e do modo como ela baralha os destinos: sabemos quem somos e onde estamos por via de um idioma que, antes, parecia ser dos outros e vinha de fora.
(...)
Temos um modo estranho de lidar com a realidade, como se o real fosse um contrabando a transportar para territórios que não são nossos. Um dos territórios a que nos habituamos que não fosse nunca nosso é o futuro. Os outros, de outras línguas, parecem sentir-se mais à vontade nesse lado de lá do tempo. Tanto nos disseram que éramos pequenos para ter presente que acabamos por encarar o futuro com suspeição. Contentamo-nos com viver de desbotadas memórias de um passado longínquo: É verdade que não podemos criar história fora do passado. Mas não podemos é fazer do passado a nossa História. Falo da dificuldade de nos projectarmos no Tempo porque aquilo que nos traz aqui hoje -- a lusofonia -- existe no futuro para ser pensado ontem e produzido hoje. A lusofonia é algo estranho, pois é um ser que existe para nascer. A lusofonia é qualquer coisa que é já nosso, mas que parece ainda não nos pertencer a todos por igual. De uma criatura assim seria mais fácil dizer mal e lançar suspeições. O projecto da lusofonia tem essa enorme desvantagem de ser preciso fazer qualquer coisa e de nos empurrar para fora desse invisível muro onde descansamos existências e lançamos culpas sobre os outros.
(...) será no que fizermos que nos converteremos realmente numa comunidade capaz de propor discursos inovadores e introduzir mudanças. Dizemos que a língua portuguesa não é apenas dos portugueses. E acreditamos que isso seja a manifestação de uma intenção política, de uma vontade adoptada. Mas não se trata de intenção ou vontade. Trata-se de uma questão histórica: há séculos que a língua portuguesa é também africana. O que seria do idioma português se não tivesse beneficiado das contribuições linguísticas dos árabes que ocuparam e viveram na Península Ibérica? Esses árabes ajudaram a tecer este grande tapete onde se deitam as nossas almas. Esses árabes são africanos, tanto como nós, os que habitamos mais a Sul. Há séculos que o idioma lusitano é um filho mestiço de namoros feitos entre as duas margens do Mediterrâneo.
E mesmo se nos quisermos abster à influência das línguas bantus nascidas depois do tempo das caravelas: há quanto tempo palavras como minhoca, cambada e candonga e tantas outras se instalaram na língua portuguesa? Pois eu vos digo, tomando apenas um exemplo: a palavra minhoca instalou-se no século XVI e hoje a maior parte dos portugueses nem sequer suspeita da sua origem longínqua. Meus amigos, a verdade é a seguinte: a lusofonia não começou hoje. A nossa língua comum foi construída por laços antigos, tão antigos que por vezes lhes perdemos o rasto. De uma vez por todas, superemos receios e fantasmas. De uma vez por todas namoremos o futuro para que ele se enamore de nós.»
Mia Couto, escritor moçambicano.