"Lição para a sociedade civilizada"
LIÇÃO PARA A SOCIEDADE CIVILIZADA
(...) Durante a longa permanência entre os índios, a única contribuição que talvez lhes tenhamos dado, foi mostrar aos civilizados que o índio brasileiro não é um selvagem agressivo e destruidor. Nós trouxemos a notícia de que eles constituem uma sociedade tranqüila, alegre. Ali, ninguém manda em ninguém. O velho é dono da história; o índio, dono da aldeia e a criança, dona do mundo. Nesse tempo todo em que vivemos perto deles, nunca assistimos a uma discussão, a uma desavença na aldeia ou a uma briga de marido e mulher. Se a criança faz alguma coisa que o pai desaprova, ele não a repreende. Apenas a tira de onde está e a leva para outro lugar. É admirável, também, o respeito que os pequenos têm pela natureza, valor que adquirem observando o comportamento dos mais velhos.
O chefe, ou cacique, é o líder cultural da aldeia. Ele goza de muitas prerrogativas, mas deve observar uma série de restrições: não pode falar alto, nem rir ou fazer gestos bruscos, por exemplo. Sua função não é impor regulamentos nem determinar tarefas, mas estabelecer uma ligação entre a comunidade e os pajés que se reúnem todas as tardes para conversar, fumar e deliberar sobre o bom andamento da tribo. O cacique não participa da conversa. Apenas ouve o que está sendo dito e na manhã seguinte, segurando o arco numa das mãos, dirige-se ao povo que se junta diante de sua maloca para escutar as recomendações dos pajés e, em seguida, colocá-las em prática. Supostamente os pajés nunca erram porque não têm outra preocupação além de ficar zelando pelo bem-estar da comunidade. (...)
LAÇOS AFETIVOS
(...) As mães são extremamente carinhosas. As crianças índias não aprendem a engatinhar porque saem do colo materno já podendo caminhar. A menina é criada sempre junto da mãe e o menino, assim que aprende a andar, passa a seguir os passos do pai, observando tudo o que ele faz e tentando imitá-lo porque intui que um dia será um homem com obrigações dentro da aldeia.
Nunca ouvi um indiozinho dizer não para pai e mãe e nem os pais dizerem não para os filhos. Apesar dessa aparente falta de limites, a criança não desenvolve maus comportamentos porque cresce copiando a conduta dos adultos.
As relações conjugais são serenas. Não há brigas entre marido e mulher. Se algum desentendimento surge, a queixa é levada para o pajé e o problema acaba sendo resolvido a contento. O homem pode ter até três mulheres. Se a primeira concordar, ele pode casar-se com a segunda e, se as duas estiverem de acordo, ele pode desposar a terceira. Elas, em geral, não se opõem porque o trabalho da primeira esposa passa a ser realizado pelas outras companheiras. Ela não carrega mais água, não arruma mais a maloca nem se levanta para comer porque é servida na rede. O marido, com um gesto, indica qual das outras duas deve armar a rede debaixo da rede dele. Essa fica responsável por manter o fogo aceso durante a noite toda porque o índio é muito friorento. Fazer o fogo, entretanto, é função do homem. Ele pega uma haste de urucum e a fricciona num pedaço de pau até sair a primeira fumacinha sob o olhar atento do curumim que se põe a soprar e a colocar folhinhas secas para dar força à chama.
A convivência entre os índios é marcada por comportamentos bastante pitorescos. Um homem volta da pesca trazendo uma fieira de peixes. Quando entra no pátio da aldeia, se ouve alguém gritar, registra quem foi porque na hora em que a comida estiver pronta, o primeiro pedaço será oferecido para o índio que gritou. Por isso, ele fica na espreita, escondido, e só corre para casa se não vê ninguém por perto. Sujeitos pouco precavidos, às vezes, têm que reservar quatro ou cinco porções para os companheiros que os viram passar com os peixes. E tudo é feito naturalmente, sorrindo, sem rixas nem desavenças. Pacíficos no interior da aldeia, eles se tornam agressivos quando vêem ameaçada de ocupação uma área importante para sua tribo. A beligerância só se manifesta quando interesses territoriais estão em jogo.
É um mundo diferente, habitado por gente que respeita tradições que o homem civilizado custa a entender. (...)
Orlando Villas Bôas
GLOSSÁRIO
Pajés - pessoas de destaque em uma tribo indígenas. Em muitas tribos são considerados curandeiros, tidos por muitos como portadores de poderes ocultos ou orientadores espirituais. Assim como os Xamãs, podem assumir o papel de médicos, sacerdotes ou fazem o uso de plantas para fins medicinais ou invocação de entidades. Normalmente o conhecimento da utilização da planta correta para cada caso ou situação, é passado de geração em geração, trazendo assim uma responsabilidade para o último Pajé da tribo.
Maloca - grande choça coberta de palmas secas, us. como habitação por várias famílias índias, esp. sul-americanas.
Urucum - arvoreta da família das bixáceas (Bixa orellana), que chega a atingir até 6 metros de altura, nativa na América tropical.
Curumim - palavra de origem tupi que designa, de modo geral, as crianças indígenas.
As imagens são de Eraldo Peres e documentam momentos do kwarup (conjunto de cerimónias fúnebres) realizado em 2003 pelos índios Kuikuro do Alto Xingu, no estado de Mato Grosso, em homenagem ao indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas (na foto ao lado), que falecera algum tempo antes.
Comentários: 5
Lindo.
Fiquei emocionada.
Olá Denudado!
Já tem um tempo estou de olho no seu blog, adorei!
Este artigo de hoje me lembrou um livro ótimo que tive que ler para fazer vestibular, mas nunca mais esqueci! "Nove noites" de Bernardo Carvalho conta sobre a rotina de uma tribo e um mistério acerca da morte de um atropólogo, muito legal!
Lembrei também que Darci Ribeiro disse em "O povo brasileiro" que as tribos indígenas não só influenciaram na formação do Brasil como "fez" a identidade do povo brasileiro. Leitura indispensável tbm!
Adorei, viu? Seu blog está na minha lista de blogs interessantes, se puder me visitar tbm, ficaria super feliz!
Abraço
Maria Muadié,
Há cerca de 2 anos, talvez, vi no Discovery Channel, ou noutro canal de TV semelhante, um documentário sobre os índios Zo'é do Pará. No filme, foram mostrados diversos aspectos da vida desses índios, como a caça, a pesca, algumas cerimónias, etc. Foi mostrado, inclusivamente, o caso de uma mulher que tinha dois maridos, os quais, pelo menos aparentemente, eram muito amigos um do outro...
O que mais me impressionou nesse filme foi a forma extraordinariamente carinhosa e respeitosa como era tratada uma anciã. Nada, naquela mulher de pele enrugada e seios mirrados, transmitia a sensação de decadência ou de velhice. Aquela anciã era permanentemente objecto de cuidados por parte dos outros membros da aldeia. Faziam-lhe carícias no rosto, prodigalizavam-lhe sorrisos, levavam-lhe comida, untavam-lhe o corpo com uma substância que aliviava as dores nas articulações, etc. Apesar da idade, aquela velha índia era feliz no meio dos seus familiares e vizinhos, que só lhe faziam bem. O contraste com o tratamento que é dispensado pela nossa própria sociedade aos idosos (que são chutados para lares onde só lhes resta esperarem pela chegada da sua morte) não podia ser mais chocante. Afinal, quem é civilizado e quem é selvagem?
Marília Silva Tavares,
Seja bem-vinda a este espaço e muito obrigado pelas suas amáveis palavras.
Aqui em Portugal, há muita gente que pensa que os índios no Brasil foram quase exterminados, como aconteceu nos Estados Unidos e no Canadá. Embora não se possam negar os muitos massacres que aconteceram ao longo dos tempos, há muito sangue indígena misturado com outros sangues nas veias dos brasileiros, não é verdade? Afinal, não é por acaso que o nome dos Tupiniquim é sinónimo de brasileiro.
Um abraço e volte sempre.
Olá!
Seu texto, as fotos lembrou-me também o livro de Darci Ribeiro: O povo brasileiro.
É uma leitura obrigatória para todos nós, neste Brasil tão triste nestes dias!
abraços
Marta
Marta Bellini,
Obriagdo, também, pela sua intervenção. Permita-me que cite uma passagem do livro que refere, "O Povo Brasileiro", de Darci Ribeiro:
«Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre marcados pelo exercício da brutalidade sobre aqueles homens, mulheres e crianças. Esta é a mais terrível de nossas heranças. Mas nossa crescente indignação contra esta herança maldita nos dará forças para, amanhã, conter os possessos e criar aqui, neste país, uma sociedade solidária.»
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