30 outubro 2015

Citação

Santa Maria da Feira, por ocasião de uma sessão fotográfica realizada por Spencer Tunick no dia 13 de setembro de 2003 (Foto: Spencer Tunick )

Passámos a ser criaturas vestidas, de corpo e alma. E, como a alma corresponde sempre ao corpo, um traje espiritual estabeleceu-se. Passámos a ter a alma essencialmente vestida, assim como passámos — homens, corpos — à categoria de animais vestidos.

Não é só o facto de que o nosso traje se torna uma parte de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa qualidade não ter quase nenhuma relação com os elementos da elegância natural do corpo nem com o dos seus movimentos.

Fernando Pessoa, sob o heterónimo Bernardo Soares, Livro do Desassossego

24 outubro 2015

Emboscada

Corpos que se arrastam
e se consomem
na suja lama das picadas
e nos estilhaços das granadas
que explodem.
— Os rebentamentos
são o compasso
tétrico
da sinfonia “Morte”!
—O fogo intenso
cruzado
é o ritmo macabro
no patético bailado.
— Um homem tomba
Ei-lo que jaz
inerte, morto,
vencido!
— Outro homem grita
vendo cair a seu lado
um companheiro soldado:
“Ah grandes filhos da puta!”
“ Mataram o meu amigo!”
(E um rosto de sangue manchado)

“Cambada de terroristas!”
“Hei-de matar-vos a todos!”
(E um cheiro a sangue queimado)

— E as lágrimas amargas de raiva
rasgam sulcos vermelhos
num sujo rosto de pólvora!
É uma guerra que se declara:
Não por um povo oprimido
nem por uma Nação ofendida!
Mas por um homem ferido
num labirinto perdido
entre uma morte e uma vida!

—Transforma-se o oprimido
em instrumento opressor.
Nasce num peito uma guerra!
E, lá longe…
Na sua terra
o abutre, o carrasco,
o nazi,
a peste,
enchendo o ventre de carne
escreve:
“DITOSA PÁTRIA QUE TAIS FILHOS DESTE”!

António Calvinho, Trinta Facadas de Raiva, Associação dos Deficientes das Forças Armadas, Lisboa


Coluna militar portuguesa no norte de Angola, no tempo da guerra colonial (Foto de autor desconhecido)

22 outubro 2015

Um autorretrato inovador

Autorretrato, óleo sobre painel convexo de Parmigianino, c. 1524 (Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria)

Era uma vez um jovem pintor que estava desempregado. Em vez de elaborar um curriculum vitæ, coisa que no seu tempo não se usava, resolveu fazer um autorretrato, que provassse as suas qualidades profissionais aos seus potenciais empregadores. Este jovem, porém, não era um pintor qualquer. Achou que, se fizesse um autorretrato tecnicamente mais difícil, conseguiria um emprego mais rapidamente e mais bem remunerado. Assim, o jovem resolveu pintar-se refletido num espelho convexo. E assim nasceu uma nova corrente artística. Ao apresentar uma imagem distorcida de si próprio, este jovem rompeu com os preceitos do Renascimento e com o seu naturalismo. Este autorretrato marca o nascimento do Maneirismo.

O jovem de que estou a falar chamava-se Girolamo Francesco Maria Mazzola, mas é mais conhecido como Parmigianino, por ter nascido na cidade de Parma, na Itália. Nasceu em 1503 e morreu em 1540, apenas com 37 anos de idade. O seu autorretrato é de reduzidas dimensões, tendo apenas 24,4 cm de diâmetro, e no entanto é considerado uma das obras mais importantes que estão no principal museu de arte de Viena, o sumptuoso Kunsthistorisches Museum (Museu de História da Arte), em pleno centro monumental da capital austríaca.

O grande público que visita o museu mal olha para aquele quadrinho, aparentemente tão insignificante em comparação com as obras de outros grandes mestres da pintura europeia que também lá estão, como Ticiano, Brueghel, Rubens e outros mais. A própria decoração interior do museu, que é esmagadora no seu imenso luxo, faz parecer ainda mais pequenino e insignificante aquele quadrinho. Injustamente, porém. O autorretrato de Parmigianino merecia estar exposto em lugar de destaque, que chamasse a atenção dos visitantes para ele.

15 outubro 2015

Um rap de Luaty Beirão, preso político angolano em greve de fome



Aconselho uma visita ao blog de Luaty Beirão, chamado Música, alimento pr'alma. Há lá muito que ouvir, e com qualidade. Não tem só rap.

12 outubro 2015

O galo de Barcelos

Tradicionalmente feito de barro e pintado com cores vibrantes, o galo de Barcelos tornou-se um símbolo de Portugal (Foto: Valadj)


Barcelos, situada na margem direita do rio Cávado, na ridente e luminosa província do Minho, é uma cidade pequena mas muito bonita. É certamente uma das cidades mais bonitas de Portugal.

Todos os portugueses, sem qualquer exceção, conhecem a inconfundível figura do galo de Barcelos. Quase não há casa portuguesa que não tenha pelo menos um galo de Barcelos com certeza. A minha também tem um. É um galo muito pequenino, que já se partiu e foi colado, e que se encontra em cima de uma estante cheia de livros.

Associada à figura do galo de Barcelos, existe uma curiosa lenda. A lenda também é muito conhecida mas, mesmo assim, passo a contá-la, reproduzindo a narrativa que está publicada no sítio do Município de Barcelos.

A curiosa lenda do galo está associada ao cruzeiro medieval que faz parte do espólio do Museu Arqueológico da cidade. Segundo esta lenda, os habitantes do burgo andavam alarmados com um crime e, mais ainda, com o facto de não se ter descoberto o criminoso que o cometera. Certo dia, apareceu um galego que se tornou suspeito. As autoridades resolveram prendê-lo e, apesar dos seus juramentos de inocência, ninguém acreditou nele. Ninguém acreditava que o galego se dirigisse a S. Tiago de Compostela, em cumprimento de uma promessa, sem que fosse fervoroso devoto do santo que, em Compostela, se venerava, nem de S. Paulo e de Nossa Senhora. Por isso, foi condenado à forca. Antes de ser enforcado, pediu que o levassem à presença do juiz que o condenara. Concedida a autorização, levaram-no à residência do magistrado que, nesse momento, se banqueteava com alguns amigos. O galego voltou a afirmar a sua inocência e, perante a incredulidade dos presentes, apontou para um galo assado que estava sobre a mesa, exclamando: “É tão certo eu estar inocente, como certo é esse galo cantar quando me enforcarem”. Risos e comentários não se fizeram esperar mas, pelo sim pelo não, ninguém tocou no galo. O que parecia impossível tornou-se, porém, realidade! Quando o peregrino estava a ser enforcado, o galo assado ergueu-se na mesa e cantou. Já ninguém duvidava das afirmações de inocência do condenado. O juiz correu à forca e viu, com espanto, o pobre homem de corda ao pescoço. Todavia, o nó lasso impedia o estrangulamento. Imediatamente solto foi mandado em paz. Passados anos voltou a Barcelos e fez erguer o monumento em louvor a S. Tiago e à Virgem.

Em http://www.cm-barcelos.pt/visitar-barcelos/barcelos/lenda-do-galo


O Cruzeiro do Senhor do Galo, em Barcelos, alusivo à lenda do galo. A lenda atribui a feitura deste rústico cruzeiro ao galego que se salvou da forca. Na verdade, é um cruzeiro de origem popular, datado da primeira metade do séc. XVIII. À direita, na foto, veem-se as ruínas do antigo paço dos condes de Barcelos (mais tarde feitos, igualmente, duques de Bragança) e em último plano ergue-se a igreja matriz de Barcelos. (Foto: David Samuel Santos)

05 outubro 2015

In memoriam Adalberto Gourgel (1968–2015)


Eu não conheci Adalberto Gourgel pesssoalmente. Apenas soube dele através do Facebook. Assim que o descobri, logo me apaixonei pelas fotografias espantosas sobre Angola e o seu povo que naquela rede social ele partilhava.

Eu não conheci Adalberto Gourgel pessoalmente. Sei apenas o que ele escreveu sobre si próprio no Facebook: que nasceu em Luanda em 8 de janeiro de 1968, foi técnico de manutenção sénior na TAAG – Linhas Aérea de Angola, e vivia numa relação (com Selma Fernandes, que, aliás, também é fotógrafa de primeiríssima água).

Eu não conheci Adalberto Gourgel pessoalmente. Sei que faleceu no dia 2 de agosto de 2015, na sequência de um acidente de viação ocorrido no mês anterior na província do Kwanza Sul. A sua companheira Selma Fernandes, que seguia viagem com ele, também ficou ferida, mas conseguiu sobreviver. Já deu sinais de vida na sua página no Facebook.

Eu não conheci Adalberto Gourgel pessoalmente. Sei que ele e Selma se dedicaram de alma e coração à causa dos albinos de Angola, especialmente às crianças, fundando o GVAPAA – Grupo Voluntário de Apoio a Pessoas com Albinismo em Angola.

Eu não conheci Adalberto Gourgel pessoalmente. Apenas me emociono até às lágrimas sempre que vejo as suas fotografias, que ele partilhou no Facebook e outras redes sociais (nomeadamente Google+, Instagram e Panoramio), e que retratam uma Angola profunda, intensamente africana e autêntica, uma Angola que parece estar a anos-luz de distância da sua "elite" governante cleptocrata, fútil e desprovida de princípios morais. Adalberto Gourgel mostra-nos, nas fotografias que nos deixou, o verdadeiro povo angolano, um povo espoliado e sofrido, mas que sempre, sempre, sabe manter a sua dignidade. Nem o mais feroz esbulho consegue apagar a nobreza do povo de Angola.

Eu não conheci Adalberto Gourgel, mas estou-lhe infinitamente grato por ter partilhado comigo a sua imensa sensibilidade e humanidade. Obrigado por teres existido, Adalberto Gourgel. Até sempre.


A seguir, mostro algumas das fotografias que Adalberto Gourgel nos deixou. Muitas mais se podem ver em https://www.facebook.com/adalberto.gourgel, https://plus.google.com/110324045697489901959/photos, http://www.panoramio.com/user/1735329 e https://instagram.com/gourgeladalberto/.

Selma Fernandes, a companheira que o amou e foi amada por ele, é também uma notável fotógrafa. Não deixe de ver as belíssimas e profundamente humanas fotografias que Selma tem na sua página no Facebook: https://www.facebook.com/selma.yona.

O GVAPAA, que Adalberto e Selma fundaram, também tem uma página no Facebook. Se puder, contribua com protetores solares, chapéus, vestuário de mangas compridas, óculos escuros e tudo o mais que possa proteger os albinos dos escaldões e do brilho do sol africano. O endereço da página é https://www.facebook.com/Gvapaa-Grupo-Voluntário-de-Apoio-a-Pessoas-com-Albinismo-em-Angola-313807645421064/.