26 março 2021

Cristóvão Lopes



Retrato de D. João III, de Cristóvão Lopes (1516–1594), c. 1545, óleo sobre madeira, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

«Filho de peixe sabe nadar», diz o provérbio. Neste caso o provérbio aplica-se, pois o pintor quinhentista Cristóvão Lopes foi filho de Gregório Lopes (c. 1490 – 1550), que foi um dos mais extraordinários pintores portugueses de todos os tempos.

É verdade que Cristóvão Lopes não teve a centelha de génio que o seu pai possuiu, pelo menos a avaliar pelas obras que dele chegaram até aos nossos dias, mas de qualquer modo também foi um excelente artista, não sendo nada despiciendos os vários retratos que ele fez, nomeadamente do rei D. João III e de sua mulher, D. Catarina de Áustria.


Retrato da Rainha D. Catarina de Áustria, de Cristóvão Lopes (1516–1594), c. 1550, óleo sobre madeira, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

21 março 2021

As mãos pressentem a leveza rubra do lume

As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada

Al Berto (1948–1997)
(Foto: Getty)

19 março 2021

Música de Fr. Áureo Castro


Algumas peças musicais de Frei Áureo Castro, compositor português nascido na ilha do Pico em 1917 e falecido em Macau em 1992: Danças da Siu Mui Mui para piano, Nostalgia para piano, Sonatina n.º 1 para piano e Chian Kun Yu, Miao Fa, que é um arranjo para coro a capella de obra homónima do compositor chinês Chiang Wen Ye, por alunos da Academia de Música S. Pio X, de Macau, e Grupo Coral Polifónico de Macau

16 março 2021

O príncipe que foi correr sua ventura


(Foto de autor desconhecido)

Havia numa terra um rei que tinha um filho, que não fazia senão pedir-lhe para ir correr o mundo; o rei por fim não pôde mais ter mão, e deu-lhe um grande saco de dinheiro para a partida. Depois de ter andado muito, foi dar a uma estalagem onde encontrou um outro viajante. Conversaram, mas o viajante perguntou ao príncipe se não gostava de jogar; daí a instante já estavam ferrados ao jogo. O viajante ganhou-lhe o saco de dinheiro, e não tendo mais que lhe ganhar, propôs-lbe que jogassem mais uma vez, e no caso do príncipe ganhar tornava a dar-lhe o saco de dinheiro, e no caso de perder o príncipe ficaria preso por três anos naquela casa, e o serviria como criado por mais outros três. O príncipe aceitou a proposta, jogou e perdeu. O viajante tomou conta dele, prendeu-o em uma loja, e deu-lhe pão e água de um dia para três anos.

O príncipe chorava a sua má cabeça; ao fim de três anos vieram soltá-lo, e ele pôs-se a caminho para ir para casa do viajante, que era rei, servi-lo como criado. Depois de ter andado muito, encontrou uma mulher com uma criancinha ao colo a chorar com fome. O príncipe ainda levava o resto de uma codinha de pão e um escorropicho de água e deu tudo à mulher. Ela em agradecimento disse-lhe:

— Olhe, santinho, vá você sempre andando, e quando lhe vier um cheiro muito grande, é porque está perto de um jardim que está no caminho; entre para dentro, e vá-se esconder ao pé do tanque. Então hão de vir três pombas tomar banho, e à última que se despir tire-lhe o vestido de penas e não lho torne a dar senão em troca de três cousas que ela lhe der.

Aconteceu tudo como a mulher lhe tinha dito; apanhou o vestido de penas da pombinha, e ela para o tornar a ter deu-lhe um anel, um colar e uma pena, dizendo-lhe:

— Quando te vires em alguma aflição e disseres: — «Valha-me aqui a pomba», hei de te acudir; eu sou a filha do rei que vás servir, que tem uma grande raiva a teu pai; e que te ganhou tudo ao jogo para dar cabo de ti.

O príncipe apresentou-se em casa do rei, que lhe deu logo esta ordem:

— Toma este trigo, este milho e esta cevada para semeares, contanto que eu amanhã coma pão destas três qualidades.

O príncipe ficou espantado, mas o rei não quis saber de explicações; foi ele para o seu quarto todo atrapalhado da sua vida, e pega na pena dizendo:

— Valha-me aqui a pomba!

A pomba apareceu, e ficou sabendo tudo; e ao outro dia trouxe-lhe as três qualidades de pão para o príncipe ir entregar ao rei. Quando o rei viu cumpridas as suas ordens, disse-lhe:

— Pois bem; já que foste capaz disto, vai agora ao fundo do mar buscar o anel que a minha filha mais velha lá perdeu.

Voltou o príncipe para o quarto e tornou a chamar pela pombinha; ela acudiu:

— Olha, amanhã vai para a praia e leva uma bacia e uma faca e mete-te num barco.

Assim fez; a pomba meteu-se com ele no barco e foi por esses mares fora. Já tinham andado muito, quando ela disse que lhe cortasse a cabeça, de modo que não caísse uma gota de sangue no chão, e a atirasse para o mar. Seguiu tudo à risca. Passado pouco tempo saiu do mar uma pomba com um anel no bico, largou-o na mão do príncipe e foi lavar-se no sangue que estava na bacia; tornou-se na cabeça de uma bela donzela e depois tornou a desaparecer. O príncipe foi entregar o anel ao rei, que ficou mais desesperado, e lembrou-se de lhe dar um maior trabalho:

— Hoje de tarde hás de sair no meu poldro, para o ensinares.

O príncipe foi para o seu quarto e tornou a chamar pela pombinha, que lhe respondeu:

— Olha, o meu pai quer ver se te mata por algum feitio; porque o poldro é ele mesmo, o selim é minha mãe, minhas irmãs são os estribos, e eu sou o freio. Não te esqueças de levar um bom cacete porque podes consolar-te com uma carga de pau neles.

O príncipe montou no poldro, moeu-o com pancadas, e tais coisas fez que quando recolheu a casa e foi dar parte ao rei que o poldro estava manso, achou o rei de cama todo em panos de vinagre, a rainha feita numa salada, as filhas derreadas, menos a mais nova. Nessa noite foi ela ter com o príncipe e disse-lhe:

— Agora, que estão todos doentes é que é boa ocasião de fugirmos; vai à cavalariça e apronta o cavalo mais magro que lá achares.

O príncipe caiu na asneira de aprontar o mais gordo. Quando se puseram a caminho, e ela viu o cavalo gordo ficou muito contrariada, porque este cavalo andava como o vento, e o magro andava como o pensamento. Mas sempre fugiram. De noite o rei precisou da filha para o virar, e chamou por ela; nada. A rainha, que era refinada bruxa, pescou logo que a filha tinha fugido com o príncipe, e disse ao marido que saltasse já fora da cama e que os fosse apanhar. O rei levantou-se a gemer com dores, foi á cavalariça e quando viu o cavalo magro ficou seguro de pilhá-los. Montou e partiu. A filha, que ia sempre desconfiada que dessem pela falta dela, avistou de longe o pai, e de repente transformou o cavalo em uma ermida, a si em uma santa e o príncipe em um ermitão.

Chegou o rei ao pé da capelinha, e perguntou se não tinha visto passar por ali uma menina com um cavaleiro. O ermitão levantou os olhos do chão e disse que por ali não passara viva alma. O rei foi-se embora aborrecido, e foi dizer à mulher que só tinha encontrado uma ermida com uma santa e um ermitão.

— Pois eram eles, disse a velha desesperada; se me tivesses trazido um bocadinho do vestido da santa ou um bocadinho de caliça da parede, tinha-os agora aqui em meu poder.

E tornou a fazer partir o velho no cavalo mais ligeiro que o pensamento. O velho foi avistado ainda de longe pela filha, que fez do cavalo um terreno, de si uma roseira carregadinha de rosas, e do príncipe o hortelão. Repetiu-se a mesma coisa; o velho virou para trás, mas a velha bruxa azoinava-o:

— Se me tivesses trazido uma rosa dessa roseira, ou um punhadinho de terra, já cá os tinha em meu poder. Mas deixa estar, que desta vez vou eu também.

Quando a menina avistou a mãe sentiu um grande medo, porque sabia o poder que tinha; apenas teve tempo de fazer do cavalo um poço fundo, de si fez uma eiró, e do príncipe um cágado. A velha chegou à borda do poço, e conheceu-os logo. Perguntou à filha se não estava arrependida, e se quizesse voltar para casa que lhe perdoava. A eiró dizia com o rabo que não. A velha disse ao marido que atirasse uma bota ao poço para trazer uma gota de água, porque só com isso ficava com poder para agarrar a filha. Quando o rei tirava a bota cheia de água, o cágado saltou para dentro dela e entornou-a toda; com a outra bota deu-se o mesmo caso.

Então a rainha muito zangada rogou ao cágado a praga que ele se esquecesse da princesa. Continuaram o seu caminho, mas a menina sempre muito triste. E quando o príncipe lhe perguntava o motivo da sua tristeza, ela respondia:

— É porque tenho a certeza de que me hás de esquecer.

Chegaram por fim à terra donde o príncipe era natural; deixou a menina em uma estalagem, e foi pedir ao pai licença para lhe apresentar a sua noiva. Com a alegria que teve de ver a família esqueceu-se da menina. O pai tratou de lhe fazer o casamento; quando a menina soube disto teve uma grande aflição e gritou:

— Valham-me aqui minhas irmãs.

Apareceram-lhe. A mais velha disse:

— Não te aflijas; tudo se há de arranjar. — E deu ordem à estalajadeira que quando passasse algum criado do rei a comprar aves, que fosse ao quarto da irmã e vendesse três pombinhas que estariam lá. Assim foi; o criado do rei comprou as três pombinhas, e como eram muito lindas foi mostrá-las ao príncipe.

O príncipe estava admirado, e quando ia pegar nelas uma saltou para cima da janela, e disse:

— Quando nos ouvir falar, ainda mais admirado há de ficar.

Outra saltou para cima de uma mesa, e disse:

— Vai falando, vai falando, que ele se irá recordando.

A pombinha que lhe tinha ficado na mão saltou-lhe para cima do ombro e perguntou-lhe:

— Veja, príncipe, se este anel lhe serve.

O príncipe viu que sim. Depois deu-lhe um colar, e também servia. Por fim deu-lhe a pena, e só quando leu o nome da pomba é que se tornou a lembrar, e então casou com ela.


Conto popular recolhido no Algarve. Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843–1924)

11 março 2021

Cortar a sua própria cabeça e sobreviver



Na mitologia popular, são contadas histórias de animais sem cabeça, mas não de cabeças sem animal. A realidade, contudo, ultrapassa a ficção. Foi descoberto um animal cuja cabeça consegue sobreviver separada do seu próprio corpo e, como se isto ainda fosse pouco, é capaz de regenerar um novo corpo a partir da cabeça cortada!

O animal em questão é um nudibrânquio pertencente a duas espécies: Elysia marginata e Elysia atroviridis. Um nudibrânquio é um molusco gastrópode sem concha, tal como as lesmas, mas vive no mar e pode exibir cores intensas e vibrantes, consoante a espécie a que pertencer. O nudibrânquio respira por guelras, que estão expostas, facto que determina a sua denominação, que significa "guelras nuas".

Uma investigadora japonesa, de seu nome Sayaka Mitoh, estava a estudar nudibrânquios num laboratório, quando presenciou aquilo que lhe pareceu ser uma cena de um filme de terror. Uma cabeça de nudibrânquio movimentava-se separada do corpo no fundo de um tanque. Julgou que a cabeça iria morrer em breve, sem um coração e sem os restantes órgãos vitais que lhe garantissem a sobrevivência, mas não foi isso o que aconteceu. Não só a cabeça não morreu, como começou a desenvolver um corpo novo ao fim de alguns dias. Menos de um mês depois, a cabeça já estava dotada outra vez de um corpo completamente desenvolvido agarrado a ela.

Fizeram-se diversas experiências com nudibrânquios das duas espécies acima referidas e concluiu-se que eles cortam a sua própria cabeça quando são parasitados por copépodes, que são crustáceos minúsculos, a fim de se livrarem deles. O modo como a cabeça consegue sobreviver sem o corpo e regenerar um novo corpo é ainda um mistério. Supõe-se que o consegue fazer por meio de fotossíntese, tal como fazem as plantas providas de clorofila, mas não há ainda nenhuma certeza sobre isto.

08 março 2021

Anna Thorvaldsdóttir, uma compositora islandesa


Metacosmos, de Anna Thorvaldsdóttir (Þorvaldsdóttir na ortografia islandesa), compositora nascida em 1977, pela Orquestra Sinfónica da Islândia regida pelo maestro Daníel Bjarnason 

Isto é música do séc. XXI. É música contemporânea, a ser ouvida com um estado de espírito mais aberto do que o habitual. Para escutá-la, devemos abrir os ouvidos e deixar que a música entre sem constrangimentos, a fim de impressionar a nossa sensibilidade. Punhamos de parte quaisquer pré‑conceitos. Se o título da peça, por si só, não for suficientemente sugestivo, a existência de algum apontamento sobre as intenções do autor poderá ajudar-nos a sentir e a "ver" melhor a música. Se apesar de tudo não nos sentirmos sensibilizados por ela, paciência. Talvez uma outra obra o possa fazer.

07 março 2021

A Calúnia de Apeles


A Calúnia de Apeles, têmpera sobre madeira de Sandro Boticelli (1445-1510), Galleria degli Uffizi, Florença, Itália

O pintor Sandro Boticelli foi um dos mais geniais artistas do Renascimento Italiano, que é o mesmo que dizer de todos os tempos e de todos os lugares. Nascido em Florença em 1445, Boticelli trabalhou para os Medici, para os quais pintou A Primavera e O Nascimento de Vénus, entre outros quadros, e também trabalhou para o Vaticano, onde nomeadamente pintou frescos na Capela Sistina. Faleceu em 1510.

Apeles foi um pintor da Grécia Antiga, que viveu no séc. IV A. C. e terá sido pintor oficial de Alexandre Magno. Entre as obras pintadas por Apeles, conta-se um quadro que se perdeu e que representava a Calúnia. Ainda que este quadro tenha sido dado como desaparecido, ficou uma sua descrição, feita pelo escritor helenístico Luciano de Samóstata, que viveu no séc. II D. C. O italiano Sandro Boticelli baseou-se na descrição de Luciano para pintar o quadro Calúnia de Apeles, que aqui se representa.

À direita do quadro, sentado no seu trono e de braço estendido, está o rei Midas, com as suas orelhas de burro, ladeado pela Ignorância e pela Suspeita, que lhe segredam ao ouvido. Diante do rei, com uma tocha acesa na mão, encontra-se o Despeito. Imediatamente atrás deste e vestida de azul está a Calúnia, que vem ladeada pela Fraude e pela Conspiração e arrasta pelos cabelos um jovem, que é o caluniado Apeles. Mais à esquerda do quadro, vestida de farrapos pretos, a Contrição olha para trás, para a nua Verdade, que aponta para o céu, invocando certamente a justiça divina.