31 outubro 2016

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para quê tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade (1902–1987)

28 outubro 2016

A Mística Xinguana — o clamor que vem da floresta


A Mística Xinguana — O Clamor que vem da Floresta é o nome do samba de enredo que a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, do Rio de Janeiro, apresentará no Sambódromo da Marquês de Sapucaí no Carnaval de 2017

27 outubro 2016

Mulheres à beira-mar


Confundindo os seus cabelos com os cabelos do vento, têm
o corpo feliz de ser tão seu e tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura dos seus pulsos
penetra nas espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus olhos prolonga
o interminável rasto no céu branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente a
virgindade de um mundo que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o sino de delícia e vertigem
onde o ar acaba e começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de ser tão verde.


Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), in Coral, 1950


20 outubro 2016

As Promessas

As Promessas, pintura a óleo de José Malhoa (1855–1933). Museu José Malhoa, Caldas da Rainha


Para mim, só existe um José Malhoa. É o pintor José Vital Branco Malhoa, nascido nas Caldas da Rainha em 28 de abril de 1855 e falecido em Figueiró dos Vinhos em 26 de outubro de 1933. O resto é música pimba.

José Malhoa foi um notável pintor português que, juntamente com Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro, entre outros, introduziu a corrente naturalista em Portugal. A sua obra tanto abarca retratos de personagens suas contemporâneas, como pinturas de caráter urbano, de que é exemplo o seu famoso quadro O Fado, como pinturas de temática rural, ou pelo menos ruralizante, de entre as quais se destaca o seu quadro Clara, que representa uma personagem do romance As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, sob a forma de uma robusta e sadia camponesa minhota. O Fado é certamente o seu quadro mais famoso, mas há outros que são igualmente muito conhecidos, tais como Os Bêbados e Praia das Maçãs, além, evidentemente, de Clara.

O quadro que aqui trago à apreciação de quem me visita é um dos meus preferidos deste grande pintor. Chama-se As Promessas e está patente no Museu José Malhoa, na cidade das Caldas da Rainha, museu este cuja visita recomendo e onde se podem admirar muitas outras obras de outros notáveis artistas portugueses dos séc. XIX e XX.

Em As Promessas, o intenso dramatismo expresso nas figuras das pagadoras de promessas, sucumbindo ao esforço sobre-humano que a si próprias exigem, em contraste com o ambiente festivo da procissão que as segue e das ornamentações que ladeiam o caminho que seguem, é comovente. O empenho que José Malhoa colocou na feitura deste quadro a óleo, datado de 1933, pode ser avaliado pela imensa qualidade do estudo a pastel que o pintor fez para ele em 1927. Mesmo que o quadro a óleo não tivesse visto a luz do dia, o estudo, por si só, mereceria a nossa maior admiração. Mereceria, não; merece.


Estudo em pastel para As Promessas, de José Malhoa (1855–1933). Museu José Malhoa, Caldas da Rainha

13 outubro 2016

O cruzeiro de Caçarelhos

Pormenor do cruzeiro de Caçarelhos, Vimioso (Foto: Rota da Terra Fria Transmontana)


Caçarelhos é uma localidade do concelho de Vimioso, situada entre a sede do concelho e a cidade de Miranda do Douro. Foi sede de freguesia, fazendo atualmente parte da União das Freguesias de Caçarelhos e Angueira.

Há no centro de Caçarelhos um monumento digno de nota, que convida o viajante a parar para o admirar. É um belo cruzeiro esculpido em granito e datado de 1777, obra de Manuel Gonçalves ou do seu filho José Gonçalves, mestres canteiros naturais de Âncora, Minho.

A página http://cacarelhos.com/cruzeiro-de-cacarelhos/ descreve-o assim:

Assente numa escadaria granítica, constituída por seis degraus, pode-se observar uma base, em monobloco, de forma paralelipipédica. Os lados, de forma rectangular, são cinzelados com uma forma elíptica, ao centro, e com várias formas ogivais e curvilíneas a guarnecê-la.

O fuste, com cerca de 3 metros, de forma cilindríca, é ornamentado, no primeiro terço com círculos convexos, dispostos em seis camadas horizontais paralelas e no restante com linhas verticais convexas e côncavas, encimado por um capitel em forma piramidal, invertido e cinzelado.

A encimá-lo aparece a cruz com cerca de um metro de altura com a figura de Cristo cruxificado voltada para Poente.

08 outubro 2016

Música tuaregue


Toumast, por Kader Tarhanine e o grupo Afouss d’Afouss, de Tamanrasset, Argélia



Alghafiyat (Paz), por Hamid Ekawel, do Níger



Islegh taghram tifhamam, pelo grupo Tinariwen, do Mali, que este ano atuou na Praia de Esmoriz, Ovar



Assouf, por Omara "Bombino" Moctar, de Agadez, Níger



Tarhanine Tegla, talvez o maior êxito do grupo Afouss d'Afouss, de Tamnrasset, Argélia

06 outubro 2016

Quási

Um pouco mais de sol — eu era brasa,
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim — quási a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quási, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

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Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro, poeta português que se suicidou em Paris em 26 de abril de 1916, a poucos dias de completar 26 anos de idade


O poeta Mário de Sá Carneiro, num retrato feito por Almada Negreiros

01 outubro 2016

Outubro

Outubro, iluminura do livro Les Très Riches Heures du Duc de Berry