Fotograma do filme Malteses, Burgueses e às vezes..., de Artur Semedo
Aí por volta de 1976 ou 1977, mais ano menos ano, um vizinho meu, que era parente de Artur Semedo, recomendou-me o filme "Malteses, Burgueses e às vezes...", que este humorista português tinha rodado em Angola por volta de 1973 e que iria então voltar a ser exibido no Cinema do Terço, um cinema de
reprise que havia aqui no Porto.
Eu respondi ao meu vizinho, com toda a sinceridade, que não sentia grande vontade em ver o filme, porque tinha pouco apreço por Artur Semedo como humorista, que considerava medíocre, e como ator, que achava mau. Embora eu nunca tivesse visto nenhum filme realizado por ele (o que eu conhecia dele eram apenas as suas aparições na televisão), a verdade é que Artur Semedo era uma pessoa que estava muito longe de despertar o meu entusiasmo.
Sem se sentir ofendido pela opinião que manifestei em relação ao seu parente, o meu vizinho insistiu:
— Olhe que desta vez ele esmerou-se. Depois de ter visto "Um Italiano em Angola", de Ettore Scola, o Artur resolveu também rodar um filme em Angola, com a finalidade de criticar a sociedade colonial. Eu já vi o filme e gostei muito. Na minha opinião, o Artur acertou em cheio. Acho que você também deve ir ver. É muito bom.
Convencido pelo meu vizinho, lá fui ao Marquês ver o filme e... senti que enfiei um barrete até aos pés! O filme era mau demais. É certo que nele se fazia uma crítica muito mordaz à burguesia colonial, com a sua corte de oportunistas,
patos-bravos, vigaristas e galdérias, mas a realização era tão má e a representação dos atores era tão pouco convincente, que quem ficava mal no filme era o próprio realizador e não a sociedade que ele queria satirizar.
O guião do filme foi da autoria do próprio Artur Semedo e de A. Bobela Mota. Passo a transcrever o resumo da história, que encontrei no sítio
A Guerra Colonial:
Ano de 1972, Angola em guerra, Angola em progresso! Vivia-se a grande euforia económica. O empresário Pais dos Santos, alma virtuosa, nela albergava o maior potentado do mundo capitalista à escala portuguesa, ramificando os seus negócios lícitos e ilícitos de norte a sul daquela província ultramarina. Investia, lucrava, investia, até que, investe contra ele o marginal Trafaria – professorado em vigarice e mestrado em crime. Entram em confronto clandestino. O mundo subterrâneo dos fora-da-lei e da corrupção agita-se. Trafaria rouba-lhe o sossego, o devaneio amoroso, a pista dos diamantes, e não satisfeito, rapta-o e leva-o com o filho adoptivo para o deserto de Moçâmedes. A notícia deste insólito e trágico acontecimento rebenta como uma bomba junto dos angolanos. A polícia promete eficácia e o confronto dá-se. Só que, nesta rocambolesca aventura, o crime compensou o Trafaria que desapareceu de África no momento exacto.
No meio de toda esta trapalhada, feita sem graça nenhuma por portugueses apenas, onde é que estão os colonizados no filme? Praticamente não se veem e não nos devemos surpreender com este facto. A burguesia colonial funcionava em circuito fechado, como se os negros, cujo trabalho era a fonte da sua riqueza, não existissem.
A sociedade colonial em Angola, tirando algumas honrosas exceções, era composta por duas comunidades, uma branca e outra negra, que coexistiam sem se misturarem verdadeiramente, tal como a água e o azeite. A miscigenação racial que era tão celebrada pela ideologia colonial portuguesa não existia de facto, a não ser como resultado de uma relação de domínio, em que os colonizadores faziam filhos às colonizadas e as abandonavam com o fruto dessa relação nos braços. Houve exceções, é verdade que sim, mas a regra era esta. Nem o facto de terem criados negros nas suas casas levava os brancos de Angola a interessar-se minimamente pela vida e pela cultura deles. Só o exotismo era capaz de lhes despertar alguma curiosidade, à mistura com desdém, como sendo algo «primitivo», «de pretos», «de selvagens».
É este mesmo exotismo, assumido pelo próprio Artur Semedo e incarnado na figura de um mucubal (
kuvale) habitante do deserto do Namibe (ex Moçâmedes), que nos aparece nas cenas finais do filme. Nestas, os nossos "heróis", em fuga para a Namíbia, pararam o jipe, onde viajavam, junto do angolano de etnia mucubal e, sem sequer o saudarem, perguntaram-lhe asperamente onde é que fica a fronteira. Dada a resposta, eles ofereceram ao "indígena" uma peça de quinquilharia e só não o trataram por tu porque não calhou. É uma cena tipicamente colonial, que se pode ver a seguir, muito mal realizada e muito mal representada.
Escrevi acima que o meu vizinho me afirmou que Artur Semedo teve a ideia de rodar este filme depois de ter visto "Um Italiano em Angola", de Ettore Scola. Este outro filme, que foi rodado em 1968, já foi objeto da minha análise aqui neste blogue há poucos meses. Sucede, porém, que depois disso surgiu no Youtube a sua versão integral, em italiano e sem legendas.
Este outro, sim, é um filme que eu recomendo. "Um Italiano em Angola", que no Brasil recebeu o título "Perdidos na África", tem a duração de duas horas. Os primeiros doze minutos foram filmados em Itália e todo o resto do filme (exceto meio minuto nas cenas finais) foi rodado em Angola. Aproveite para ver e admirar as fabulosas paisagens angolanas e o ainda mais fabuloso povo angolano, em imagens que foram eternizadas pela mestria do realizador italiano Ettore Scola. Não dê importância à língua-de-trapos falada pelos "portugueses" do filme, que é uma macarrónica mistura de italiano, português do Brasil e espanhol! Não dê importância, tampouco, à triste figura do "feiticeiro da tribo", que quase arruinou o filme. Compare, isso sim, por exemplo, a tristeza do mucubal solitário de "Malteses..." com o entusiasmo com que muitos outros mucubais participaram na palhaçada feita por aqueles italianos malucos que lhes apareceram pela frente, em "Um Italiano em Angola". Este filme completo pode ser visto aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=5sjCmBgcSxA