O meu primeiro contacto com os trabalhadores da fazenda, que distava cinco minutos do quartel do Mucondo, aconteceu numa dessas protecções aos trabalhos do amanho das terras de cultivo do café. Mais propriamente, naquela altura, cortar o capim que brotava espontâneo em volta dos pés dos cafeeiros, retirando-lhes a força necessária ao desenvolvimento do arbusto e dificultando o trabalho da apanha quando mais tarde viesse a ocorrer.
Eram cerca de trinta apinhados no camião da fazenda. Maltrapilhos de pé descalço, olhos tristes raiados de vermelho e ainda meio ensonados, que resumiam fulgores duma ressaca abruptamente interrompida na madrugada, mal o sol raiava os primeiros prenúncios de claridade, antevendo o braseiro sufocante que se estenderia pelo dia inteiro. Armados de catana, instrumento universal que lhes servia para tudo, até para fazer a guerra, encostavam-se uns aos outros, cotovelo apoiado no joelho e mão segurando a cabeça ainda pesada, cochilando réstias de um último sono que dormitavam até ao local de trabalho. A picada mal tratada agitava o camião em balanços que dificultavam o curtir dos últimos vapores instilados em mais uma noitada de Nocal ou Cuca (cervejas angolanas) de mistura com fumos inalados em grupo de um mesmo cigarro de ervas de feitiço que ajudavam a esquecer mais um dia vazio de esperança de nada esperar.
À chegada a ordem veio bruta, inesperada e ameaçadora de um capataz abrutalhado que os trazia como rebanho e se derretia subserviente quando falava comigo, para logo cuspir fogo e outras incandescências quando se virava para o pessoal que chefiava no trabalho.
— Tudo p´ró chão, cambada de preguiçosos…, que continuava com uma interminável ladainha quejanda na indignidade e prepotência. Aquele vociferar ameaçador acordava-os repentinamente do sono que traziam ainda desde a fazenda, levando a que se levantassem apressados empurrando-se uns aos outros na descida do camião, deixando perceber conhecerem bem as consequências do não cumprimento imediato das ordens que vinham do capataz.
Ainda o desfile de impropérios não tinha terminado, e já todos se alinhavam no chão, qual tropa romana disciplinada de arma na mão pronta para qualquer missão, ainda que submissa apontando para o chão, aguardando a distribuição das tarefas que sem parar lhes eram destinadas sem perda de tempo. Em minutos todos trabalhavam com uma eficácia que me deixava perplexo, enquanto o “Montijo” ia distribuindo o pessoal por pontos estratégicos que garantissem a segurança de todos.
Com um pequeno pau, que alguns já traziam de casa e outros fabricavam no momento no arbusto mais próximo, inclinavam ligeiramente um molhe de capim, para, acto contíguo, aplicarem uma catanada certeira que o desbastava com uma enorme eficiência, para logo, de forma automática, uma nova molhada se vergar e cair decepada no chão. Eram autênticas máquinas que ali me fizeram lembrar os ceifeiros e ceifeiras alentejanos, nos tempos da ceifa do trigo à torreira do sol nas planícies do Alentejo.
O capataz, percebendo o meu silêncio enquanto assistia ao descarregar da “manada”, sentiu necessidade de alguns esclarecimentos, enquanto limpava o suor abundante da testa e alguma espuma do canto da boca por tão empolgado esforço matinal.
— Isto sr. Alferes, esta malta, são piores que animais. Só se querem assim.
O assim de facto incomodava-me.
Eu era ali um novato completamente fora daquele quadro de entendimentos que me fugiam e atordoavam. A minha sensibilidade por certo não era para ali chamada. Era um facto que a cena me tinha impressionado. Sempre me impressionaram as prepotências gratuitas aplicadas sobre os indefesos e oprimidos. Mas não me sentia à vontade para um debate de opiniões e pontos de vista às sete horas da manhã, algures, eu sei lá onde, no norte de Angola, para mais com um capataz com ideias empedernidas e mais que exercitadas sobre os negros. Desviei um pouco o caminho em busca de uma outra saída que mantivesse o assunto de pé, embora sem propósitos de confrontação, que o meu estatuto de maçarico [novato], também naquele campo, aconselhava. Não me sentia em condições de altercar abertamente sobre aquele tema. Mas também me estava a custar deixar as coisas assim sem um grãozinho de areia na engrenagem secular, a que o capataz, pressuroso e cretino, dava continuidade.
— Há uma coisa que me está aqui a fazer confusão, disse, enquanto cruzava a G3 no peito repousando-a nos braços, como o faria a uma criança para adormecer.
- Diga, diga, sr. Alferes, respondia-me o capataz, revelando alguma inquietação na expressão e nos gestos.
— Já o ouvi hoje dizer várias vezes que isto é tudo uma cambada de preguiçosos. Mas olhe que eu nunca vi trabalhar desta maneira. Eles são autênticas máquinas.
— Ó sr. Alferes. Não queira saber o trabalho que isto nos deu…, retorquia o capataz com ar meio aliviado pela superficialidade da questão, quando esperava alguma atitude mais contundente (e por certo insensata) da parte de um maçarico recém-chegado, com ideias ainda pouco amaciadas pelos hábitos que por ali se haviam firmado desde longínquos quinhentos anos atrás.
— Ao princípio chegávamos aqui pela manhã e púnhamo-los a trabalhar até à tardinha.
— De sol a sol…, interpus de forma a clarificar melhor aqueles imprecisos… pela manhã e… à tardinha.
— Sim… mas não queira o sr. Alferes saber o que nós passávamos para que fizessem alguma coisa. Aquilo só a chicote… escapou-se-lhe.
— …não é que…, quis emendar.
— Claro…, facilitei, no sentido de o deixar continuar solto e sem peias que mascarassem o discurso que eu desejava próximo da verdade quanto possível.
— Agora mudámos o sistema. Destinamos uma determinada área a cada um e quando terminarem… até podem descansar. Quando todos terminarem, vamos embora. Calculo que hoje por volta das 14 horas estejamos prontos. Antigamente, nem metade até à noite.
— Bem, então preguiçosos não será bem o caso. O que estavam era a precisar de alguma orientação…, acrescentei procurando colocar timidamente alguns escolhos naquela lógica de tempos imemoriais.
— Pois…, sorria com pouca vontade o capataz, mastigando aquela imprecisão, procurando enxergar aonde eu queria chegar, enquanto aliviava o diálogo lançando um olhar de controlo sobre o andamento dos trabalhos.
Voltou à carga com mil e uma explicações e rodeios, claro sintoma de achar que não se teria feito entender como desejava e propósito evidente de esclarecer pruridos que por ali tinham ficado soltos e incómodos.
O diálogo não fora muito construtivo, resultando claro que tinham sido mais os desencontros que os pontos de união e confluência de ideais.
Naquela altura era o tempo do café florir.
Eram extensos mantos brancos a perder de vista, entrecortados no verde muito vivo da vegetação densa e luxuriante dos Dembos. Autênticos mantos de amendoeiras em flor, que brotavam da minha memória exaurida pelos milhares de quilómetros de distância, mas viva e sempre presente nos momentos de leveza do pensamento, alheio aos entraves de latitudes distantes, vencidas pelo desejo imenso de agarrar as lembranças recentes, guardadas em lugar seguro e recuperadas nas noites longas e escuras da guerra.
Ali o tempo era de espera. De espera pelas 14 horas prometidas pelo capataz. De espera que cada um dos trabalhadores cumprisse o desbaste rápido do capim do seu quinhão. De esperança que o inimigo não atacasse. De esperança que aqueles quatro meses passassem depressa. Sem esperança que a guerra tomasse outros rumos e nos trouxesse o entendimento que todos desejávamos, mas que parecia claro que se perfilava cada vez mais distante.
(…)
O sol queimava sufocante e abrasador.
No terreiro enorme da fazenda havia uma fila com cerca de trinta ou quarenta negros que se alinhava junto ao casarão amarelo-torrado de traça colonial, uma espécie de castelo imponente que dominava as cercanias.
O edifício é enorme e circundado a toda a volta por uma varanda integrada na construção, coberta pelo telhado que se prolonga em forma de guarda-sol de aba larga e o protege da inclemência do fogo ardente que cai dos céus. Ao longo daquele autêntico passeio liso de cor grená-escuro gasto pelo uso, dispõem-se alguns bancos e cadeiras de repouso e, naquele dia, também uma pequena mesa com uma cadeira trazida do mobiliário interior, onde confina a fila de negros maltrapilhos e mal alimentados.
Era dia de pagamento. Por norma, a tropa do Mucondo, a quem cabia a protecção da fazenda, sempre que passava por ali parava e procurava inteirar-se da situação quanto a notícias de movimentos dos turras, deixando uma palavra de segurança e conforto apreciada por todos. Por vezes, como naquele dia, nem chegavam a parar os motores das viaturas. Uma troca rápida de palavras seladas com um aperto de mão ou, por vezes, apenas um aceno à distância, se a pressa era muita, cumpriam um protocolo de rotina a que ambas as partes já estavam habituadas.
O capataz, de alcunha “General Ramalho”, que nunca se conseguiu esclarecer donde provinha, admitindo tratar-se de uma espécie de título obtido no início da guerra nos anos sessenta, homem de grande corpulência e anafado, bigode à Clark Gable esmeradamente aparado, quase sempre de chapéu colonial enterrado na cabeça, dirige-se para as viaturas que tinham parado a alguns metros da casa.
Repentinamente inflecte a sua marcha e aponta, em passo apressado, para um negro que, cansado de estar de pé ali à torreira do sol sabe-se lá havia quanto tempo, se sentara no chão. De chibata na mão agride com alguma violência o funcionário — assim eufemisticamente tratados — enquanto o agarrava pelo braço e o punha de pé, sacudindo-o sem que este esboçasse qualquer tentativa de defesa. Uma espécie de boneco de palha nas mãos do “General”.
— De pé seu cão! Foi o que se percebeu da torrência de impropérios e prepotência despejados sobre o pobre coitado.
Todos assistiam em silêncio àquela cena, sufocando uma amálgama de revolta e dúvida momentânea em distinguir o verdadeiro inimigo que nos trazia ali. Por fim ouvem-se alguns murmúrios de agitação entre os militares. A violência é desmedida e pouco qualificável.
De repente, o Alferes que comandava a coluna salta da viatura de G3 em punho apontada ao capataz, denotando um evidente transtorno pela forma apressada como caminhava e a expressão que levava no rosto.
— Se você volta a fazer isso na minha frente despejo-lhe o carregador na barriga! Ouviu bem o que lhe disse? Gritava o Alferes de G3 em riste apontada à barriga do capataz e os olhos esbugalhados parecendo quererem saltar-lhe das órbitas.
Por momentos pensou-se que podia acontecer ali uma tragédia. O capataz também assim o entendeu pelo ar lívido e agitado com que o Alferes o interpelava. Por entre palavras de justificação e tentativas de apaziguamento mal balbuciadas pelo “General” o Alferes foi recuperando a calma, não sem continuar a avisar de forma clara de que aquele cenário não deveria repetir-se, pelo menos na sua presença, o que pareceu ter sido inteiramente apreendido.
Fez-se um enorme silêncio no amplo terreiro. Apenas o ruído monótono dos motores das viaturas cortavam o gelo daquele quadro de enorme contraste com o calor tórrido daquela manhã. O capataz, mal recuperado do susto, dirigiu-se de cabeça baixa para a mesa dando início aos pagamentos. A queixa haveria de chegar às chefias militares com o Alferes a ser admoestado e o assunto a ficar pelo conveniente esquecimento, embora o “General” tenha tido alguma dificuldade em esquecê-lo.
Aos poucos o Santos, com quem estabeleci uma relação de proximidade e convivência mais intensa, foi-me inteirando do funcionamento da fazenda e as relações de trabalho estabelecidas com os assalariados, facto que suspeito igualmente longe do conhecimento de muitos angolanos regressados a Portugal após o 25 de Abril, que por vezes se insurgem contra algumas destas realidades quando delas fazemos eco, negando com veemência a sua existência.
Há, no entanto, que salientar que estes actos menos dignos e reveladores de um espírito colonialista exacerbado destituído de senso e humanismo não exemplificavam a generalidade das relações estabelecidas entre brancos e negros em Angola. Eu próprio fui testemunha disso em múltiplas situações, onde o que falhava era a política central do estado e não a relação fraterna e de amizade que ao longo de séculos de foi desenvolvendo. Mas é necessário admitir que estes casos existiam um pouco por toda a parte onde as relações de exploração de trabalho nas grandes fazendas do Norte não olhavam a meios para a obtenção de lucros fáceis sem o menor respeito pelos trabalhadores assalariados. Não terá sido por acaso que foi naquela zona precisa que acabou mesmo por eclodir a luta armada pela emancipação e independência, em resposta directa a actos de prepotência e exploração desenfreada já devidamente relatados por autores que as presenciaram no tempo e contexto exactos em que ocorreram.
A fazenda era ali uma ilha perdida num imenso oceano de águas turvas e nevoeiros vários, impenetrável, desconhecida e praticamente isolada do mundo. Ali tudo podia acontecer sem que alguém viesse a ter conhecimento, salvo a tropa que existia para defender a fazenda e a sua exploração das imensas riquezas da terra. Os trabalhadores eram recrutados no Sul junto ao mar ou no interior próximo, região ainda pouco perturbada pela guerra, e trazidos em magotes acondicionados em camionetas de caixa aberta. Vinham de centenas de quilómetros de distância — perdendo o rumo e o sentido das distancias — sendo despejados naquele depósito de paredes inexpugnáveis erguidas pelos medos da guerra. Muitos por ali ficavam de geração em geração, trabalhando de dia e trespassando a noite em bebedeiras colectivas de alienação de quaisquer desejos ou projectos de futuro que nem existiam.
A cantina — conceito eufemístico atribuído a uma armadilha com telhado e alguns bancos, montada num canto do terreiro mesmo ao lado dos locais de pernoita dos assalariados — vendia essencialmente cerveja e arvorava-se no único oásis em centenas de quilómetros em redor, sendo proporcionado pelo patrão, num acto de tocante solidariedade e preocupação, que procurava proporcionar aos funcionários momentos de divertimento e lazer nas horas vagas. Uma espécie de “centro comercial” onde se pudesse espairecer o espírito e recarregar baterias, depois de mais uma jorna no corte do capim ou na apanha dos bagos amargos do café, que por fim tisnados da cor da pele do assalariado, partiam picada fora levando consigo os silêncios da morte lenta, que a tropa ajudava a emudecer. Uma espécie de ratoeira colorida que embebedava os sentidos e ajudava ao esquecimento do dia anterior. Uma antecâmara de um futuro vazio, sem data nem sétimo dia, nem projecto de dia nenhum.
Havia um vencimento mensal. Uma espécie de lenitivo de consciência ou cortina de nevoeiro que suavizava o peso e o sentido da presença colonial. Trinta e um escudos angolares mensais, alguns trinta e dois, representando em escudos do Puto (designação angolana da metrópole) menos vinte a vinte e cinco por cento, que era por quanto nos cambiava às escondidas o cauteleiro da Mutamba os escudos que trazíamos de Portugal. As relações de trabalho ali regiam-se pelas normas supostas em uso no continente e ilhas adjacentes. O vencimento era entregue com recibo e tudo, por via de regra assinado com uma cruz, sem Cristo mas igualmente dorida na carne e na alma, ou lambuzado com uma impressão digital de gordura, restos do último mergulho de mão na lata de peixe podre do almoço oferecido pela gerência. Para a maior parte, o recibo apenas saldava uma pequena parte da dívida amontoada na cantina que crescia mês após mês, qual algema invisível que apenas permitia trabalhar sem descanso e impedia o uso da liberdade de romper as grilhetas da submissão que os prendiam ao patrão e ao trabalho. De uma forma ardilosa, enredava-se o trabalhador numa teia de interesses de uma só feição, capaz de o prender para sempre a um ciclo vicioso, do qual apenas se conseguia desembaraçar pela lei da morte ou incapacidade total para o trabalho, como único atalho para a liberdade que só assim conquistavam. Uma prisão sem grades cuja fuga era impensável. Uma autêntica jaula cercada por centenas de quilómetros de terra escaldante impossível de transpor, na qual era necessário pagar para permanecer prisioneiro. As dívidas acumuladas na cantina conferiam ainda o lucro do patrão na venda das cervejas e um ou outro produto de primeira necessidade, subvertendo o velho rifão de dar com uma mão para tirar com a mesma, porque a outra brandia o chicote e mantinha a ordem de uma desordem que não existia.
Era o Santos que me explicava toda esta teia complexa de relações humanas e de trabalho. Era evidente a sua enorme dificuldade em aceitar as coisas tal como funcionavam ali, ainda por cima sob a protecção da tropa, que era algo que o transtornava de forma particular.
Voltámos a falar no assunto por diversas vezes e outras tantas nos confortámos mutuamente, convencendo-nos de que pouco ou nada podíamos fazer, senão apontar uma G3 à barriga bem nutrida dum capataz bruto e servil, no fundo também ele escravo dos verdadeiros proprietários da fazenda, esses sempre ausentes, viajando pelo mundo inteiro, tentando convencer jovens Alferes de que a aquela guerra estava ganha e que o inimigo afinal nem existia. Aos poucos fui entendendo que, afinal, o inimigo estava bem mais próximo de nós do que se supunha. Como fui paulatinamente assimilando os conceitos e preconceitos que me debitava o meu companheiro de viagem de Lisboa até Luanda. Como entendia agora a consideração em que me colocava, deixando-me até um convite para o visitar na sua mansão algures não sei onde, mas certamente distante, muito distante, daquele local perdido e quase desconhecido em pleno coração dos Dembos.