A pedra da sopa da pedra
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São muitos, entre portugueses e estrangeiros, os que apreciam a sopa da pedra, feliz criação da gastronomia popular portuguesa, que tem em Almeirim o seu mais conhecido centro de divulgação. São ainda muitos os que relacionam esta especialidade com a bela lenda do frade que, de panelinha de barro meia de água, numa mão, e um seixo rolado, na outra, bateu à porta de uma quintaneira e, habilmente, de pedido em pedido, foi conseguindo angariar para o cozinhado tudo o que uma suculenta e saborosa confecção deve ter, do naco de toucinho às folhinhas de couve, passando pelo chouriço, pelo alho, pela cebola, pela cabecinha de nabo e por duas ou três batatitas, sem esquecer a pitada de sal.”A sopa da pedra que se faz em Almeirim, cidade ribatejana, não é a da história do nosso sabido frade. É muito mais rica. Leva toucinho entremeado, orelha de porco, chouriço de carne e de sangue, feijão encarnado, couve, alho e cebola, batata e o mais que a sabedoria de cozinheiros e cozinheiras aconselhe. Por norma, é bem apaladada com louro, coentros, sal e pimenta.
Importa saber que a pedra que se diz ali usada por tradição é um seixo rolado das antigas aluviões do Tejo, quase sempre de quartzito. Os seixos de quartzo são, relativamente, escassos. Inertes, do ponto de vista químico, o quartzito e o quartzo não representam qualquer risco para a saúde. Outro tanto não se pode dizer do vidrado de algumas loiças, com chumbo na composição, que ainda vão à mesa em alguns restaurantes nem, sequer, do alumínio dos tachos e panelas. Por outro lado, são muito menos quebradiços (tenazes) do que a faiança, a porcelana ou o vidro de serviço à cozinha e à mesa, não havendo, portanto, risco de quebrarem e produzirem esquírolas lesivas da integridade física dos clientes.
Como quaisquer cursos de água, no seu trabalho normal, os múltiplos tributários que integram a enorme bacia do Tejo, em Portugal e em Espanha, canalizaram no grande rio todos os materiais detríticos, entre blocos, seixos, areia e partículas muito finas essencialmente argilosas, resultantes da meteorização (apodrecimento das rochas por efeito dos agentes atmosféricos) e erosão dos terrenos atravessados, maioritariamente xistos argilosos, granitos, quartzitos e aqui e ali, filões e veios de quartzo. Dada a fragilidade mecânica dos xistos, a erosão pulveriza-os e transporta-os em suspensão a caminho do mar. O granito tende a desagregar-se e a fornecer areias, predominantemente de quartzo com algum feldspato e partículas argilosas resultantes da meteorização deste. Apenas o quartzito e o quartzo filoniano (habitualmente referido por quartzo leitoso), de grandes tenacidade e dureza e praticamente total inércia química, são susceptíveis de gerar fragmentos maiores. Estes, rolando durante o transporte de centenas e centenas de quilómetros, adquirem o boleamento que caracteriza os referidos seixos.
São, pois, maioritariamente, de quartzito e, subordinadamente, de quartzo filoniano, os seixos rolados das grandes planuras e terraços fluviais ribatejanos, os mesmos que podemos encontrar no fundo da terrina que, em Almeirim, vai à mesa com a tão falada sopa.
Eu já conhecia esta tradição quando, num dia radioso de Agosto e em família, me sentei à mesa de um dos muitos restaurantes locais.
— Mas, afinal, o que é o quartzito e como se forma? — Perguntou-me um estudante da Escola Superior de Educação de Santarém, de serviço às mesas, a ganhar uns trocos em tempo de férias, a quem eu dissera o nome da pedra que ele, em jeito de brincadeira e delicadamente, colocara no meu prato.
— Sei o que é o quartzo. Mas nunca soube, ao certo, o que é e como se forma o quartzito.
— Precisamos recuar aí uns 500 milhões de anos, na história da Terra. — Comecei a explicação, que achei por bem prestar a este meu simpático interlocutor. — Nesse tempo existiu um oceano muito anterior ao Atlântico, com as suas plataformas continentais, ou seja, os mares pouco profundos na periferia das terras emersas. Como acontece nos dias de hoje, os continentes despejavam no mar, através dos rios de então, os mesmos detritos da erosão que os ia arrasando.
— Até aqui, tudo bem. E o quartzito, como é que aparece? — Insistiu o jovem.
— Por razões meramente dinâmicas e à semelhança do que podemos observar nos dias de hoje, os detritos maiores, ou seja, o blocos e os seixos ficam maioritariamente em terra, nas aluviões ao longo dos rios, como aqui, nesta região do Ribatejo e em muitas outras.
— Isso eu sei. — Alegrou-se o rapaz. — Basta andar por aí, que o que não falta é obra dessa.
— Continuando, — prossegui. — as areias, predominantemente de quartzo, atingem o litoral, acumulam-se nas praias, nas dunas e cobrem as plataformas continentais. E é aqui que começa a história do quartzito. Julgo que sabes que o quartzo é sílica (dióxido de silício), praticamente o mesmo material de que é feito este copo que tenho à minha frente.
— Isso também eu sei. — Respondeu, satisfeito, o rapaz. — Já visitei uma fábrica na Marinha Grande e foi lá que aprendi que o vidro é feito de areia, dos copos e garrafas às vidraças das janelas.
— Passemos, então, adiante. As partículas argilosas, por serem muito finas, permanecem mais tempo em suspensão nas águas. É o que se vê durante as cheias, em que as águas ficam barrentas. Estas partículas acabam por se depositar nos taludes oceânicos a caminho dos grandes fundos, originando depósitos com o aspecto de lamas, que podem atingir milhares de metros de espessura.
— Isso eu não sabia, mas ainda não chegámos aos quartzitos. — Impacientava-se o rapaz.
— Calma. Vamos devagar. Quando o antigo oceano que referi atrás se fechou, essas lamas dos grandes fundos, as areias das plataformas continentais e outros sedimentos nele acumulados sofreram prolongado enrugamento, iniciado há aproximadamente 375 milhões de anos e concluído uns 50 milhões de anos depois. Deste processo, dito orogénico, resultou não só a elevação de parte desses sedimentos, edificando uma grande cadeia de montanhas, como o enraizamento em profundidade da outra parte a que podemos dar o nome de raiz. A Península Ibérica é apenas uma pequena parte desta cadeia parcialmente arrasada pela erosão. Sujeitos a temperaturas e pressões próprias do dito processo, estes sedimentos foram transformados.
— Isso estudei eu no meu 10º ano. São as rochas metamórficas.
— Exacto. — Confirmei e acrescentei. — Por exemplo, consoante a intensidade dessas transformações, as lamas, essencialmente argilosas, deram origem a xistos argilosos, filádios, micaxistos, gnaisses e, no caso de terem atingido temperaturas que os levaram à fusão, deram nascimento a um magma que, por arrefecimento, gerou o granito. Neste mesmo processo, os calcários gerados nos mares tropicais desse antigo oceano foram transformados em mármore.
— Quer dizer que os xistos e os granitos do Alentejo, das Beiras e do norte do país fazem parte dessa história?!
— Exacto. E os mármores de Estremoz-Vila Viçosa, de Viana do Alentejo e de Trigaches também. Mas isso é uma história a contar numa próxima oportunidade.
— E os quartzitos? — Insistiu, curioso, o simpático rapaz.
— É muito simples. — Disse a concluir. — As areias acumuladas nas praias e nas plataformas continentais que marginaram o tal antigo oceano, uma vez sujeitas ao metamorfismo, ou seja, ao calor e às pressões associadas ao referido processo orogénico, foram compactadas, os respectivos grãos ficaram colados uns aos outros e recristalizaram, dando origem a uma rocha, repito, muito coesa, bastante dura e de grande inércia química e, por tudo isso, bastante resistente à erosão. E aí tens como nasceu o quartzito.
— Bela história sim senhor. Nunca tinha pensado neste assunto. Obrigado. Venha cá almoçar outro dia para me explicar como se formou o mármore.
— Já agora, deixa-me terminar, dizendo que algumas das nossas serras mais conhecidas devem a sua existência ao facto do quartzito de que são feitas resistir muito mais à erosão do que as rochas que lhe estão ao lado. São, por isso, consideradas relevos de dureza. Geralmente alongadas, formam o que nós designamos por cristas. É o caso das Serras do Buçaco, da Marofa, de Penha Garcia e outras. Se os quiseres ver na origem tens de ir, por exemplo, às Portas de Ródão, na Serra da Talhada. Até pode ser de lá que veio o seixo que tenho aqui à minha frente.
Terminado o almoço, elogiei o serviço e, já de saída, dirigi-me à cozinha onde felicitei a cozinheira e suas auxiliares.
António Galopim de Carvalho
Comentários: 3
Fiquei fascinada com esta esplêndida lição de Geologia que, de início, me parecia ir-se transformar numa lição de culinária, Fernando.
Por momentos, revivi a minha primeira infância e os grandes passeios que dava com o meu pai pelas praias e matas deste Portugal...
Ah, claro que os seus conhecimentos de Geologia não seriam tão aprofundados quanto os que aqui
deixa à disposição da nossa eterna curiosidade, mas muito aprendi com ele.
Obrigada e um abraço!
Não tem nada que agradecer, cara Maria João.
Para o grande público, o nome do prof. Galopim de Carvalho aparece sobretudo ligado aos dinossauros, às suas pegadas e aos seus fósseis. Na verdade, o prof. Galopim de Carvalho é um geólogo eminente e não apenas um "dinossaurólogo". Ele sabe profundamente do que fala e consegue comunicar os seus vastos conhecimentos de uma forma simples, para que todos entendam. É um Professor.
Ah, é verdade! O prof. Galopim de Carvalho também é o irmão mais novo do falecido cantor Francisco José, o dos "Olhos Castanhos".
Não fazia a menor ideia de que o professor Galopim de Carvalho fosse irmão de um dos intérpretes de eleição da minha mãe, o Francisco José... Eu, por essa altura, só ouvia os Beatles, Simon & Garfunkel e um ou outro fado de Coimbra, mas Francisco José venceu o esquecimento e, agora, ouço-o com frequência na Rádio Horizontes da Poesia. Sobretudo na interpretação desse tema, "Olhos Castanhos"...
Abç!
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