26 junho 2020

+ perto do céu

Enquanto eu te escrevo,
Sarajevo morre lenta
uma morte amordaçada
no silêncio dos tiros
e na paz da granada.
A noite acoita o metralhar
será homem ou fera
este triste uivar?
Posso ver as avenidas,
coloridas, presentes,
hoje sombras despidas
do passado distante.
A vez do vizinho
que hoje foi a enterrar,
sozinho, claro, que morrer é ficar.
Os amantes ali estão
abraçados no asfalto
onde as balas lá do alto
os apanharam à traição,
no coração, que é o sítio ideal
para quem mata a paixão,
que amar é fatal.

(refrão)

+ perto do céu
anjo d'alma azul
+ perto do céu
+ longe que o sul.

Calor, já não há,
só se for o da mortalha
que é o lençol que me agasalha
e a cama onde me deito
e me enrolo sobre o peito,
recordando o céu azul,
e quer a norte quer a sul
a liberdade de fugir.
Ficar a resistir,
morrer, nem pensar,
que a coragem de aqui estar,
como ontem em Guernica,
é a vontade de quem fica.
Vazia a dispensa
é pior a indiferença.
Auschwitz ou Buchenwald
que afinal foram debalde,
porque as câmaras de gás
não ficaram para trás
estão aqui à minha frente.
Eu só quero estar presente
de novo em Nuremberga,
porque um povo não se verga.

(refrão)

Por isso aqui estou
com arma sem munição,
carne para canhão
para contar toda a verdade…
… e liberdade.
E no futuro, nem sequer se vão lembrar
que tudo dói, mesmo Tolstoi
lido à luz da curta vela.
Sarajevo donzela
tantas vezes violada,
sempre só, abandonada.
Tudo o que tenho
é o empenho de quem sonha.
O silêncio é vergonha,
arma mortal, punhal
que mata e maltrata
escondido, sem ruído,
tantas vezes repetido,
e penetra no meu corpo,
que deixa morto
pelas costas…
sem resposta.

Agora é de vez.
Faz frio no inferno deste Inverno.
Cada bomba é uma sombra de indiferença.
Crença que tem que mudar.
Há que gritar e mostrar
ao mundo os mortos
que o mundo ignora
e demora a perceber.
Uso a caneta
que é a minha baioneta,
país eterno
que deixo no caderno
tenho medo que me esqueças
e me peças para calar a voz,
mas não o faças,
porque ontem foram outros
e hoje nós.

(refrão)

Pedro Abrunhosa, in Viagens


Mais Perto do Céu, por Pedro Abrunhosa e os Bandemónio

24 junho 2020

A bebedeira do sargento Madeira


Segundo-sargento Madeira, que foi promovido a primeiro-sargento depois de ter terminado a sua comissão militar em Angola. Faleceu por volta de 1989 (Foto de autor desconhecido)

Num sábado à noite, o capitão Antunes e um outro alferes foram a Maquela do Zombo gozar a noite, enquanto eu fiquei a comandar o quartel da companhia. Estava eu na messe de oficiais, quando de repente alguém entrou pela messe dentro, gritando:

— Meu alferes, meu alferes! Venha depressa que o sargento Madeira quer matar o Jonas!

O que tinha acontecido? O Madeira apanhou uma bebedeira de caixão à cova e resolveu ir à sanzala. Na porta-de-armas estava de sentinela o soldado Jonas, que à passagem do sargento se pôs em sentido, de acordo com o estipulado no Regulamento de Disciplina Militar. O Madeira, julgando-se talvez muito importante por estar influenciado pelo álcool, não aceitou que o Jonas só lhe fizesse sentido. Exigiu que lhe fizesse ombro-arma. O Jonas respondeulhe que ombro-arma não lhe fazia, porque só aos oficiais se devia fazer ombro-arma e o Madeira não era oficial.

— Ai não queres fazer ombroarma? Já vais ver se fazes ombroarma ou não fazes ombro-arma! — exclamou o Madeira.

Foi ao seu quarto e saiu de lá com uma G3 nas mãos. Chegou ao pé do Jonas, apontou-lhe a arma e disse-lhe:

— E agora? Fazes ombro-arma ou não fazes ombro-arma?

E o Jonas, inflexível:

— Não faço!

— Faz ombro-arma!

— Não faço!

Era nesta situação que eles estavam quando fui chamado. Saí da messe, que ficava mesmo em frente à porta-de-armas, e perguntei, gritando todo empertigado:

— Mas afinal o que é que se passa aqui?!

Com a voz entaramelada pelo álcool, o Madeira respondeu-me:

— Meu alferes, ele não quer fazer ombro-arma…

Ao mesmo tempo que disse isto, virou-se para mim e a arma ficou apontada ao meu peito! Que grande susto que apanhei! Nem sei como é que não borrei as calças…

— LARGUE ESSA ARMA IMEDIATAMENTE!… JÁ!!! — gritei-lhe a plenos pulmões, aflito e esperando ser atingido por uma rajada de um momento para o outro.

O Madeira baixou a espingarda, que alguém lhe arrancou imediatamente das mãos. Virou as costas e dirigiu-se lentamente para a messe de sargentos, chorando convulsivamente.

— Ai, meus ricos filhos! — exclamava — Meus queridos leõezinhos, que têm um pai tão desgraçado!

E continuou a chorar e a dizer entre soluços que era pai de filhos órfãos, porque era obrigado a estar longe deles e isso era como se tivesse morrido. Os filhos não o conheciam nem ele os conhecia, porque ele passava a vida a fazer comissões no Ultramar afastado da família. Acrescentava que morria de saudades da mulher e dos filhos e que isso lhe era insuportável.

Enquanto isso, o camarada que lhe tinha tirado a G3 das mãos disse-me:

— Meu alferes, a arma estava pronta a disparar! Tinha uma bala na câmara e a patilha na posição de fogo… Só lhe faltou carregar no gatilho!

Regressei à messe profundamente dividido.

Por um lado, achava que devia participar do sargento Madeira, de forma a que ele fosse severamente punido, porque tinha posto em sério risco a vida de outras pessoas. Esteve na iminência de causar uma tragédia.

Por outro lado, pensava seriamente nas palavras que ele proferiu quando se retirou. No fundo, o Madeira não passava de um desgraçado. Era verdade que as bebedeiras dele eram frequentes e muitas vezes azedas e conflituosas. Mas se ele bebia, era para esquecer as saudades que sentia da família. Aquela comissão que ele estava a cumprir era a segunda ou mesmo já a terceira, sempre longe da mulher e dos filhos. Na verdade, ele era um pobre diabo que entrou para o Exército porque não tinha onde cair morto. Se não estivesse na tropa, seria um miserável; mas na tropa era um infeliz. Se eu participasse dele, só iria aumentar a sua infelicidade e a dos seus. Nem ele nem, sobretudo, os seus filhos viriam a ganhar o que quer que fosse com a punição e com o prejuízo que esta iria causar à sua carreira militar.

Decidi pôr uma pedra no assunto e não participar do sargento Madeira. Afinal, ele acabou por não provocar desgraça nenhuma.

Dois dias depois, o Madeira veio ter comigo, muito enfiado. Disseme que não se lembrava de nada do que tinha acontecido, porque estivera bêbado, e que tinha sido o primeiro-sargento Carrilho que lhe tinha contado. Declarou-se muito envergonhado pelo que tinha feito e pediu-me imensa desculpa, jurando que aquilo não voltaria a acontecer. Eu fingi que não tinha dado importância nenhuma ao incidente e mandei‑o em paz.


O soldado Domingos Jonas, assinalado na imagem, era o militar mais pequeno do meu pelotão, razão pela qual lhe puseram a alcunha de "Miúdo" (Foto de autor desconhecido)

Embora já não tenha qualquer relação com este assunto, posso ainda revelar que o outro protagonista desta história, o soldado Domingos Jonas, que era angolano, combateu na guerra civil que se seguiu à independência de Angola, tendo-se alistado nas FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), o braço armado do MPLA. Morreu perto do Huambo em 1982. Era uma joia de rapaz e um grande valente, que deixou muitas saudades.

Quem divulgou a notícia da morte do Jonas foi outro antigo soldado da minha companhia, chamado Mário Sessendje, que se filiou na UNITA. Apesar de terem aderido a movimentos que se combatiam ferozmente, o Jonas e o Mário continuaram a ser amigos e a manter-se em contacto um com o outro. A amizade nascida no seio da nossa companhia prevaleceu sobre a hostilidade que opôs os movimentos a que aderiram.

19 junho 2020

Carlos de Bragança (Rei de Portugal)


O Sobreiro, pastel sobre cartão de Carlos de Bragança (1863–1908), Palácio Ducal — Fundação da Casa de Bragança, Vila Viçosa, Portugal

Sou republicano convicto. Logo, não nutro especial simpatia pela figura de D. Carlos e pelo papel que ele representou como rei de Portugal. Com a arrogância própria de quem se julgava acima do comum dos mortais, D. Carlos chamava "Piolheira" ao seu próprio país e apoiou, contra ventos e marés, o governo autoritário (para não lhe chamar ditatorial) de João Franco. Quanto ao ultimato britânico, não atribuo particulares responsabilidades a D. Carlos pelo sucedido; acho que D. Carlos foi apanhado por um turbilhão de acontecimentos que o ultrapassaram. Como prezo a vida humana, também condeno o seu assassinato em 1908, juntamente com o príncipe herdeiro Luís Filipe.

Neste momento, o que eu pretendo salientar é o valor do rei D. Carlos como pintor de grande talento, que de facto foi. Também foi fotógrafo, ceramista, ornitólogo, oceanógrafo, etc., dos mais destacados na Europa do seu tempo. A pintura que aqui se reproduz é um exemplo eloquente do seu grande valor artístico.

15 junho 2020

ESTE PRETO HE DE AGOSTINHO DE LAFETÁ DO CARVALHAL DE ÓBIDOS





Carvalhais não faltam em Portugal. Uns benfeitos, outros meãos, outros redondos, uns no singular, outros no plural, aí estão a lembrar que houve tempos em que abundavam na terra portuguesa os carvalhos, essas árvores magníficas a que ninguém pedia frutos e a que todos requeriam madeira. O carvalho para ser útil, tinha de morrer. Tanto o mataram, que o iam exterminando. Em alguns lugares não resta mais que o nome: o nome, como sabemos, é a última coisa a morrer.

A este Carvalhal, para o distinguir, acrescentavam-lhe antigamente Óbidos: Carvalhal de Óbidos. Há aqui uma torre a que chamavam dos Lafetás, por assim ser conhecida uma família cremonense vinda a Portugal no final do século XV e que aqui teve esse e outros bens. Quando se diz que veio essa família a Portugal, não se pretende afirmar que viesse toda. Eram banqueiros riquíssimos, poderosa companhia mercantil internacional desse século e do seguinte, com negócios em Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Flandres. Credores de reis, contratadores de pimenta e açúcar, os Affaitati vêm a esta viagem para lembrar que os descobrimentos foram também um gigantesco negócio, e sobretudo por causa de um escravo que neste Carvalhal tiveram. Na torre que aqui está foi em tempos encontrada uma coleira com dizeres gravados, os quais assim rezavam: «Este preto he de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos.» O viajante [José Saramago] não sabe mais nada do escravo preto, a quem a coleira só deve ter sido tirada depois que morreu. Foi deixada aí pelos cantos, brincaram talvez com ela os filhos de Agostinho de Lafetá e de sua mulher, D. Maria de Távora, e pelo modelo se terão feito as que serviram aos cães e que até hoje se usaram: «Chamo-me Piloto. No caso de me perder, avisem o meu dono.» E depois vem a morada e o número de telefone. E ainda assim houve progressos. Na coleira do escravo de Agostinho de Lafetá nem sequer se mencionava o nome. Como se sabe, um escravo não tem nome. Por isso, quando morre, não deixa nada. Só a coleira, que ficava pronta para servir a outro escravo. Quem sabe, pergunta o viajante fascinado, a quantos escravos teria ela servido, sempre a mesma, enquanto houve pescoço de escravo em que servisse? O viajante tem informação de que a coleira está em Lisboa, no Museu de Arqueologia e de Etnografia. A si mesmo promete, com a solenidade adequada ao caso, que será a primeira coisa que há-de ver quando chegar a Lisboa. Cidade tão grande, tão rica, tão afamada, onde todos os Lafetás de dentro e de fora fizeram os seus muitos negócios, pode ser principiada de muitas maneiras. O viajante começará por uma coleira de escravo.

(…)

Cá está a coleira. O viajante disse e cumpriu: mal entrasse em Lisboa iria ao Museu de Arqueologia e de Etnologia à procura da falada coleira usada pelo escravo dos Lafetás. Podem-se ler os dizeres: «Este preto he de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos.» O viajante repete uma vez e outra para que fique gravado nas memórias esquecidas. Este objecto, se é preciso dar-lhe um preço, vale milhões e milhões de contos, tanto como os Jerónimos aqui ao lado, a Torre de Belém, o palácio do presidente, os coches por junto e atacado, provavelmente toda a cidade de Lisboa. Esta coleira, é mesmo uma coleira, repare-se bem, andou no pescoço dum homem, chupou-lhe o suor, e talvez algum sangue, de chibata que devia ir ao lombo e errou o caminho. Agradece o viajante muito do seu coração a quem recolheu e não destruiu a prova de um grande crime. Contudo, uma vez que não tem calado sugestões, por tolas que pareçam, dará agora mais uma, que seria colocar a coleira do preto de Agostinho de Lafetá numa sala em que nada mais houvesse, apenas ela, para que nenhum visitante pudesse ser distraído e dizer depois que não viu.


José Saramago (1922–2010), Viagem a Portugal

09 junho 2020

Quando o José pensa na América


Carta para a Doreen Martin

Doreen:
Na Mafalala quando o José pensa na América
não inveja nem um só arranha-céus de Manhattan
não deslumbram José os feéricos letreiros da Broadway
e não convencem José as vitórias do marinheiro Popeye
só depois de ingerir uma lata de espinafres de publicidade.

Na Mafalala quando o José pensa na América
velhas lágrimas de spiritual salgam os encardidos
asfaltos de água do grande Mississipi com muitas recordações
e numa alegre avenida central da cidade de Chicago
uma farra de tiros desconsidera a camisa
de um cliente que ia comprar no supermercado
uma coca-cola para o seu lanche na fábrica
e a seguir ainda pretendem que o tal José
admire o modernismo da cidade de Chicago
quando de vez em quando ele põe-se
a pensar para que servem por exemplo
uma meia dúzia de Packards novos
para duzentos milhões de americanos
nas mil e uma auto-estradas da América

E nas fábulas verídicas
de locais como Nova Orleans e Harlem
entra Louis Armstrong
sai Jesse Owens.
Entra Joe Louis
sai Marian Anderson.
Entra Duke Ellington
sai Lena Horne.
Entra Paul Robeson
e sai Richard Wright todos com suas quinhentas
mil famílias incluindo a família do José
e que Duke Ellington faz o piano
resolver uma série de problemas
de jazz enquanto um obsceno
Cadillac azul lascivo brilha
os cromados por conta
da General Motors.

Enfim!
Tudo isto, Doreen, tudo isto
é sempre uma fortuita coincidência
entre os firmes princípios da Casa Branca
algumas toneladas de pacotes de chewing-gum
muitas palmas à voz de Nat King Cole e à sua carapinha alisada
e os efeitos da excessiva pintura dos bastões
pincelando de vermelho o suor
dos negros democraticamente.

E
mais ou menos trata-se de uma questão
abstracta mas as crianças que nascem obrigatoriamente
no Xipamanine ou brincam no anti-luxuoso lixo do Harlem
quando puderem falar hão-de nos gritar na cara o contrário
mesmo que um agente especial oiça em Nova Iorque
e comunique logo a certos funcionários de L. M.

Agora, amiga Doreen
agora que o José viu com os próprios olhos a Marilyn
12 meses com um sorriso e nada mais a tapá-la
e das unhas aos cabelos toda ela colorida
ao relento a aquecer as 12 páginas do calendário
o José admira sinceramente mais o Pato Donald
o José gosta sinceramente mais de Bucha e Estica
o José aprecia sinceramente mais um Rato Mickey
e além disso o José simpatiza sinceramente mais
com a filosofia inverosímil dos irmãos Marx
a ouvirem os ancestrais dialectos do ritmo
a bater nos metais o feitiço dos blues
de olhos afundados para dentro como os surumeiros
à décima quinta fumaça quando o medo não tem sentido
e a verem o novo dogma dos sprinters chegando em 1.° à meta
ou de luvas dois homens definindo a ideologia de um “nocaut”
ou ainda a descobrirem a magia revelatória dos livros
com os avós e os netos nos paraísos de minérios
como os pais e as filhas no gozo dos algodoeiros
e tudo junto na esquina do Mundo a meio metro
de um lindo juke-box a tocar-lhe barato
“made in Estados Unidos da América”
enfiando-lhe um simples cêntimo.

E no meio disto tudo, Doreen
sai uma terrível foto feminina publicamente confidencial
mas não passa de Marilyn Monroe uma star cheia de hipóteses
mas o José da Mafalala quando pensa na América
por acaso não pensa nas hipóteses da Marilyn
a mostrar a toda a gente o lucro lógico
dos sistemas de propaganda da América
U.S.A…. U.S.A…. U.S.A.!!!

Mas sabes, Doreen?
Uma espessa sombra de gente oscila os pés indolentemente
no terceiro poste de uma rua em frente a uma esquadra
e o José lembra-se que Jesse Owens foi aos Jogos
e contra todas as expectativas nazis ganhou 4 de ouro
e sabem onde foi isso? Mesmo no blindado coração do Hitler.
E além do mais o José também se lembra que Joe Louis na
                                                                                                    [desforra
pôs Max Schmmeling K.O. logo ao primeiro round
que Armstrong quando assopra o trompete
os agudos dão resposta concludente
às dúvidas sentimentais da Klu-Klux-Klan
e o retórico par de botas de Charlot

E para terminar esta carta, Doreen
os membros da Klu-Klux-Klan podem zangar-se comigo
mas pouco mais ou menos já sabem quase tudo
o que o José pensa sozinho ali na Mafalala
quando o José pensa na loura Marylin Monroe
pobre milionária da América do Norte
a descontar as insónias
dos outros o ano inteiro
toda nua.

José Craveirinha (1922–2003), poeta moçambicano


(Foto: munshots)

01 junho 2020

Viena, a Vermelha


Karl Marx-Hof (Foto de autor desconhecido)

Quando alguém nos fala na capital da Áustria, logo nos vêm à mente imagens de fausto e esplendor, palácios e museus, sedas e veludos, pares de dançarinos rodopiando ao som de valsas de Strauss em salões doirados e iluminados por fulgurantes lustres de cristal, etc. É esta, por exemplo, a imagem que Viena dá de si própria ao mundo todos os anos, quando transmite os famosos e apreciados concertos de ano novo pela televisão. É a imagem de uma Viena de príncipes e arquiduques, cheia de sorrisos e de vénias, onde desabrocharam os amores que o cinema celebrizou, entre a bela princesa bávara Elisabeth (Sissi) e o garboso imperador Francisco José.

Este é um cenário cor de rosa, que os vienenses se esforçam por promover a todo o custo, para atrair visitantes e turistas, que abrem a boca de espanto perante a grandiosidade dos jardins do palácio de Schönbrunn, as piruetas dos cavalos da Escola Espanhola de Equitação, a harmonia angelical das vozes dos Pequenos Cantores de Viena e a beleza sem par das mulheres vienenses fazendo das ruas da cidade uma permanente passagem de modelos.

Viena é uma cidade de sonho e magia, que encanta quem a visita, mas não é só isso. É também uma cidade de gente simpática e acolhedora (pelo menos já o foi), que fala um dialeto que ninguém consegue entender e que trabalha para que esta atmosfera de sonho pareça (ou seja mesmo) realidade. Há muito de postiço, mas também há muito de genuíno em Viena, cidade fascinante por excelência.

E depois há uma outra Viena, que na verdade é a mesma, mas que os turistas quase nunca veem. É desta outra Viena que me proponho falar um pouco nas linhas que se seguem.

A Primeira Guerra Mundial foi, predominantemente, uma guerra de impérios e marcou o fim de alguns deles, nomeadamente o Império Austro-Húngaro e a sua dinastia dos Habsburgos. À semelhança dos restantes, este império assentava o seu poder e a sua riqueza na dominação e exploração de vários povos do centro e este da Europa. Estes povos ansiavam libertar-se do jugo que os oprimia e alimentaram uma consciência nacional que legitimava uma resistência que se tornou cada vez mais violenta, até culminar no assassinato do herdeiro do trono imperial, Francisco Fernando, em Sarajevo, no ano de 1914. Por outro lado, os diversos impérios então existentes na Europa também procuravam apoderar-se das possessões uns dos outros, pois é próprio de um império ter uma ambição sem limites e querer dominar tudo e todos. A guerra generalizou-se a toda a Europa, e não só, e atingiu níveis de crueldade até então nunca vistos.

Quando a Primeira Guerra Mundial acabou em 1918, a Europa estava em ruínas e o antigo Império Austro-Húngaro estava desfeito. Viena, que tinha sido a cabeça de um vasto império, ficou limitada à condição de capital grande de um país pequeno e reduzido a escombros, uma cidade a braços com uma numerosa população miserável, esfomeada e a viver em casas arruinadas e sobrelotadas. As doenças, tais como o tifo, a tuberculose, a sífilis e outras, ceifavam incontáveis vidas. Era urgente fazer-se alguma coisa. E fez-se.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial e o consequente fim do Império dos Habsburgos, a Áustria (ou o que dela restou) tornou-se numa república. Após as primeiras eleições legislativas, saiu vencedor o Partido Social Cristão, profundamente conservador e estreitamente ligado à Igreja Católica. Isto, na Áustria como país. Porque em Viena os eleitores votaram à esquerda e elegeram o Partido Social-Democrata da Áustria para dirigir os destinos da cidade. Viena tornou-se numa ilha "vermelha" (social-democrata) num mar conservador. Este foi o início de um período histórico que durou cerca de década e meia e que transformou profundamente o tecido social e urbano de Viena, período este a que foi dado o nome de "Viena, a Vermelha".

A tarefa mais urgente a que a vereação social-democrata de Viena deitou mãos, foi a da habitação. O que então se fez, foi verdadeiramente extraordinário. Hoje, de todas as capitais da Europa, Viena é aquela que tem a maior percentagem de habitação social. Toda esta habitação, ou quase, foi construída na década de vinte e primeira metade da década de trinta do séc. XX pela vereação social-democrata de Viena, a Vermelha.

Quem for a Viena e se der ao trabalho de sair dos roteiros turísticos habituais, para visitar as vastas áreas residencias que circundam o centro histórico e monumental da cidade, descobrirá que em quase todas as ruas, em quase todas as praças, em quase todas as vielas, em quase todos os becos e em quase todas as alamedas de Viena existe, pelo menos, um prédio de habitação social, propriedade da Câmara Municipal. São prédios incaracterísticos, quase todos eles, de dois, três ou quatro andares (raramente mais), além do rés-do-chão, em cujas fachadas lisas se abrem algumas janelas. Do ponto de vista arquitetónico, estes prédios pouco ou nada valem. Do ponto de vista social, sim, valem muito, porque eles permitem que vivam, completamente integradas no tecido urbano da cidade, famílias desfavorecidas (muitas famílias de imigrantes, na atualidade), paredes-meias com prédios mais ricos e burgueses. Há milhares de famílias de fracos recursos vivendo nestes prédios camarários espalhados por Viena, sem estarem separadas do conjunto da cidade.

Além dos prédios acabados de referir, a vereação de Viena, a Vermelha, fez construir alguns grandes complexos habitacionais, também para as classes desfavorecidas, que, estes sim, têm grande interesse arquitetónico e um não menor interesse sociológico. Estes complexos habitacionais passaram a marcar de forma indelével o caráter de Viena, sem os quais a capital austríaca não seria a cidade que agora é. Depois deles, nunca mais Viena voltou a ser a mesma.

Os grandes complexos habitacianais construídos pela Câmara Municipal de Viena, a Vermelha, receberam o nome de Höfe, plural de Hof. A palavra Hof pode ser traduzida por pátio, mas esta palavra "pátio" tem que ser tomada como significando uma comunidade local autónoma, de vizinhos que convivem entre si e que partilham alguns espaços comuns, à semelhança dos habitantes dos pátios das cidades antigas.

Vários Höfe foram construidos em Viena entre 1920 e 1934, mas o maior e mais representativo de todos é o Karl Marx-Hof, situado na zona norte de Viena, perto do Rio Danúbio. Como o Partido Social-Democrata da Áustria era marxista (embora não fosse leninista), não admira que o nome de Karl Marx tenha sido dado ao Hof mais emblemático de todos. Quando nós nos encontramos diante de um tão grande empreendimento, que tem mais de um quilómetro de extensão, não podemos deixar de nos sentir um tanto ou quanto intimidados pelo seu aspeto, que faz lembrar uma fortaleza. Talvez tenha sido de propósito. Talvez o Karl Marx-Hof tenha sido projetado para ser visto como um reduto da classe operária.

A ação da vereação social-democrata de Viena durante a Primeira República Austríaca não se limitou ao alojamento de centenas de milhares de pessoas em apartamentos minimamente dignos, com rendas reduzidas que rondavam os 4% do rendimento familiar. A Câmara Municipal de Viena, a Vermelha, também desenvolveu um vasto programa de apoio social, para que, por exemplo, cada recém-nascido «não tivesse que ser envolvido em papel de jornal» quando viesse ao mundo. Creches, centros de dia, ginásios, spas e muitos outros espaços de cultura e de lazer foram então criados em Viena para os desfavorecidos. Um vereador da época afirmou: «O que gastarmos em alojamentos para jovens será poupado em prisões; o que gastarmos na proteção às grávidas e lactentes será poupado em hospitais psiquiátricos». No que respeita à cultura, a Câmara Municipal impulsionou fortemente as artes e a literatura. Fizeram-se então em Viena algumas das experiências mais radicais alguma vez registadas no domínio da cultura europeia, como por exemplo a música dodecafónica, criada por Arnold Schönberg e continuada pelos seus discípulos Alban Berg, Anton Webern e outros. Também Sigmund Freud se estabeleceu na cidade e nela abriu o seu consultório.

Viena renasceu durante o governo da sua vereação "vermelha", e até se tornou numa cidade próspera, enquanto o resto da Áustria continuava mergulhado no atraso e na pobreza. Em 1934, no entanto, teve lugar uma guerra civil no país, da qual o Partido Social-Democrata saiu derrotado e em resultado da qual emergiu um poder pró-nazi, que pôs um ponto final a todas as aventuras revolucionárias que Viena tinha estado a viver. Em 1938 a Áustria acabou por perder mesmo a sua independência, para se tornar numa espécie de "Alemanha" de segunda categoria, apesar de o chanceler alemão, Adolf Hitler, ser ele mesmo austríaco também. Uma nova tragédia se abateu sobre a Europa e sobre o Mundo, com a chegada da Segunda Guerra Mundial. Viena também lhe sofreu as consequências, mas isto já é outra história.


Engelshof, assim chamado em homenagem a Friedrich Engels (Foto: Thomas Ledl)


Bebelhof, assim chamado em homenagem a August Bebel, dirigente do Partido Social-Democrata Alemão (Foto: Thomas Ledl)


George Washington-Hof (Foto: Bwag)


Viktor Adler-Hof. Residi numa rua próxima deste complexo habitacional (Foto: Bwag)