Karl Marx-Hof (Foto de autor desconhecido)
Quando alguém nos fala na capital da Áustria, logo nos vêm à mente imagens de fausto e esplendor, palácios e museus, sedas e veludos, pares de dançarinos rodopiando ao som de valsas de Strauss em salões doirados e iluminados por fulgurantes lustres de cristal, etc. É esta, por exemplo, a imagem que Viena dá de si própria ao mundo todos os anos, quando transmite os famosos e apreciados concertos de ano novo pela televisão. É a imagem de uma Viena de príncipes e arquiduques, cheia de sorrisos e de vénias, onde desabrocharam os amores que o cinema celebrizou, entre a bela princesa bávara Elisabeth (Sissi) e o garboso imperador Francisco José.
Este é um cenário cor de rosa, que os vienenses se esforçam por promover a todo o custo, para atrair visitantes e turistas, que abrem a boca de espanto perante a grandiosidade dos jardins do palácio de Schönbrunn, as piruetas dos cavalos da Escola Espanhola de Equitação, a harmonia angelical das vozes dos Pequenos Cantores de Viena e a beleza sem par das mulheres vienenses fazendo das ruas da cidade uma permanente passagem de modelos.
Viena é uma cidade de sonho e magia, que encanta quem a visita, mas não é só isso. É também uma cidade de gente simpática e acolhedora (pelo menos já o foi), que fala um dialeto que ninguém consegue entender e que trabalha para que esta atmosfera de sonho pareça (ou seja mesmo) realidade. Há muito de postiço, mas também há muito de genuíno em Viena, cidade fascinante por excelência.
E depois há uma outra Viena, que na verdade é a mesma, mas que os turistas quase nunca veem. É desta outra Viena que me proponho falar um pouco nas linhas que se seguem.
A Primeira Guerra Mundial foi, predominantemente, uma guerra de impérios e marcou o fim de alguns deles, nomeadamente o Império Austro-Húngaro e a sua dinastia dos Habsburgos. À semelhança dos restantes, este império assentava o seu poder e a sua riqueza na dominação e exploração de vários povos do centro e este da Europa. Estes povos ansiavam libertar-se do jugo que os oprimia e alimentaram uma consciência nacional que legitimava uma resistência que se tornou cada vez mais violenta, até culminar no assassinato do herdeiro do trono imperial, Francisco Fernando, em Sarajevo, no ano de 1914. Por outro lado, os diversos impérios então existentes na Europa também procuravam apoderar-se das possessões uns dos outros, pois é próprio de um império ter uma ambição sem limites e querer dominar tudo e todos. A guerra generalizou-se a toda a Europa, e não só, e atingiu níveis de crueldade até então nunca vistos.
Quando a Primeira Guerra Mundial acabou em 1918, a Europa estava em ruínas e o antigo Império Austro-Húngaro estava desfeito. Viena, que tinha sido a cabeça de um vasto império, ficou limitada à condição de capital grande de um país pequeno e reduzido a escombros, uma cidade a braços com uma numerosa população miserável, esfomeada e a viver em casas arruinadas e sobrelotadas. As doenças, tais como o tifo, a tuberculose, a sífilis e outras, ceifavam incontáveis vidas. Era urgente fazer-se alguma coisa. E fez-se.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial e o consequente fim do Império dos Habsburgos, a Áustria (ou o que dela restou) tornou-se numa república. Após as primeiras eleições legislativas, saiu vencedor o Partido Social Cristão, profundamente conservador e estreitamente ligado à Igreja Católica. Isto, na Áustria como país. Porque em Viena os eleitores votaram à esquerda e elegeram o Partido Social-Democrata da Áustria para dirigir os destinos da cidade. Viena tornou-se numa ilha "vermelha" (social-democrata) num mar conservador. Este foi o início de um período histórico que durou cerca de década e meia e que transformou profundamente o tecido social e urbano de Viena, período este a que foi dado o nome de "Viena, a Vermelha".
A tarefa mais urgente a que a vereação social-democrata de Viena deitou mãos, foi a da habitação. O que então se fez, foi verdadeiramente extraordinário. Hoje, de todas as capitais da Europa, Viena é aquela que tem a maior percentagem de habitação social. Toda esta habitação, ou quase, foi construída na década de vinte e primeira metade da década de trinta do séc. XX pela vereação social-democrata de Viena, a Vermelha.
Quem for a Viena e se der ao trabalho de sair dos roteiros turísticos habituais, para visitar as vastas áreas residencias que circundam o centro histórico e monumental da cidade, descobrirá que em quase todas as ruas, em quase todas as praças, em quase todas as vielas, em quase todos os becos e em quase todas as alamedas de Viena existe, pelo menos, um prédio de habitação social, propriedade da Câmara Municipal. São prédios incaracterísticos, quase todos eles, de dois, três ou quatro andares (raramente mais), além do rés-do-chão, em cujas fachadas lisas se abrem algumas janelas. Do ponto de vista arquitetónico, estes prédios pouco ou nada valem. Do ponto de vista social, sim, valem muito, porque eles permitem que vivam, completamente integradas no tecido urbano da cidade, famílias desfavorecidas (muitas famílias de imigrantes, na atualidade), paredes-meias com prédios mais ricos e burgueses. Há milhares de famílias de fracos recursos vivendo nestes prédios camarários espalhados por Viena, sem estarem separadas do conjunto da cidade.
Além dos prédios acabados de referir, a vereação de Viena, a Vermelha, fez construir alguns grandes complexos habitacionais, também para as classes desfavorecidas, que, estes sim, têm grande interesse arquitetónico e um não menor interesse sociológico. Estes complexos habitacionais passaram a marcar de forma indelével o caráter de Viena, sem os quais a capital austríaca não seria a cidade que agora é. Depois deles, nunca mais Viena voltou a ser a mesma.
Os grandes complexos habitacianais construídos pela Câmara Municipal de Viena, a Vermelha, receberam o nome de
Höfe, plural de
Hof. A palavra
Hof pode ser traduzida por pátio, mas esta palavra "pátio" tem que ser tomada como significando uma comunidade local autónoma, de vizinhos que convivem entre si e que partilham alguns espaços comuns, à semelhança dos habitantes dos pátios das cidades antigas.
Vários
Höfe foram construidos em Viena entre 1920 e 1934, mas o maior e mais representativo de todos é o Karl Marx-Hof, situado na zona norte de Viena, perto do Rio Danúbio. Como o Partido Social-Democrata da Áustria era marxista (embora não fosse leninista), não admira que o nome de Karl Marx tenha sido dado ao
Hof mais emblemático de todos. Quando nós nos encontramos diante de um tão grande empreendimento, que tem mais de um quilómetro de extensão, não podemos deixar de nos sentir um tanto ou quanto intimidados pelo seu aspeto, que faz lembrar uma fortaleza. Talvez tenha sido de propósito. Talvez o Karl Marx-Hof tenha sido projetado para ser visto como um reduto da classe operária.
A ação da vereação social-democrata de Viena durante a Primeira República Austríaca não se limitou ao alojamento de centenas de milhares de pessoas em apartamentos minimamente dignos, com rendas reduzidas que rondavam os 4% do rendimento familiar. A Câmara Municipal de Viena, a Vermelha, também desenvolveu um vasto programa de apoio social, para que, por exemplo, cada recém-nascido «não tivesse que ser envolvido em papel de jornal» quando viesse ao mundo. Creches, centros de dia, ginásios, spas e muitos outros espaços de cultura e de lazer foram então criados em Viena para os desfavorecidos. Um vereador da época afirmou: «O que gastarmos em alojamentos para jovens será poupado em prisões; o que gastarmos na proteção às grávidas e lactentes será poupado em hospitais psiquiátricos». No que respeita à cultura, a Câmara Municipal impulsionou fortemente as artes e a literatura. Fizeram-se então em Viena algumas das experiências mais radicais alguma vez registadas no domínio da cultura europeia, como por exemplo a música dodecafónica, criada por Arnold Schönberg e continuada pelos seus discípulos Alban Berg, Anton Webern e outros. Também Sigmund Freud se estabeleceu na cidade e nela abriu o seu consultório.
Viena renasceu durante o governo da sua vereação "vermelha", e até se tornou numa cidade próspera, enquanto o resto da Áustria continuava mergulhado no atraso e na pobreza. Em 1934, no entanto, teve lugar uma guerra civil no país, da qual o Partido Social-Democrata saiu derrotado e em resultado da qual emergiu um poder pró-nazi, que pôs um ponto final a todas as aventuras revolucionárias que Viena tinha estado a viver. Em 1938 a Áustria acabou por perder mesmo a sua independência, para se tornar numa espécie de "Alemanha" de segunda categoria, apesar de o chanceler alemão, Adolf Hitler, ser ele mesmo austríaco também. Uma nova tragédia se abateu sobre a Europa e sobre o Mundo, com a chegada da Segunda Guerra Mundial. Viena também lhe sofreu as consequências, mas isto já é outra história.
Engelshof, assim chamado em homenagem a Friedrich Engels (Foto: Thomas Ledl)
Bebelhof, assim chamado em homenagem a August Bebel, dirigente do Partido Social-Democrata Alemão (Foto: Thomas Ledl)
George Washington-Hof (Foto: Bwag)
Viktor Adler-Hof. Residi numa rua próxima deste complexo habitacional (Foto: Bwag)