24 junho 2020

A bebedeira do sargento Madeira


Segundo-sargento Madeira, que foi promovido a primeiro-sargento depois de ter terminado a sua comissão militar em Angola. Faleceu por volta de 1989 (Foto de autor desconhecido)

Num sábado à noite, o capitão Antunes e um outro alferes foram a Maquela do Zombo gozar a noite, enquanto eu fiquei a comandar o quartel da companhia. Estava eu na messe de oficiais, quando de repente alguém entrou pela messe dentro, gritando:

— Meu alferes, meu alferes! Venha depressa que o sargento Madeira quer matar o Jonas!

O que tinha acontecido? O Madeira apanhou uma bebedeira de caixão à cova e resolveu ir à sanzala. Na porta-de-armas estava de sentinela o soldado Jonas, que à passagem do sargento se pôs em sentido, de acordo com o estipulado no Regulamento de Disciplina Militar. O Madeira, julgando-se talvez muito importante por estar influenciado pelo álcool, não aceitou que o Jonas só lhe fizesse sentido. Exigiu que lhe fizesse ombro-arma. O Jonas respondeulhe que ombro-arma não lhe fazia, porque só aos oficiais se devia fazer ombro-arma e o Madeira não era oficial.

— Ai não queres fazer ombroarma? Já vais ver se fazes ombroarma ou não fazes ombro-arma! — exclamou o Madeira.

Foi ao seu quarto e saiu de lá com uma G3 nas mãos. Chegou ao pé do Jonas, apontou-lhe a arma e disse-lhe:

— E agora? Fazes ombro-arma ou não fazes ombro-arma?

E o Jonas, inflexível:

— Não faço!

— Faz ombro-arma!

— Não faço!

Era nesta situação que eles estavam quando fui chamado. Saí da messe, que ficava mesmo em frente à porta-de-armas, e perguntei, gritando todo empertigado:

— Mas afinal o que é que se passa aqui?!

Com a voz entaramelada pelo álcool, o Madeira respondeu-me:

— Meu alferes, ele não quer fazer ombro-arma…

Ao mesmo tempo que disse isto, virou-se para mim e a arma ficou apontada ao meu peito! Que grande susto que apanhei! Nem sei como é que não borrei as calças…

— LARGUE ESSA ARMA IMEDIATAMENTE!… JÁ!!! — gritei-lhe a plenos pulmões, aflito e esperando ser atingido por uma rajada de um momento para o outro.

O Madeira baixou a espingarda, que alguém lhe arrancou imediatamente das mãos. Virou as costas e dirigiu-se lentamente para a messe de sargentos, chorando convulsivamente.

— Ai, meus ricos filhos! — exclamava — Meus queridos leõezinhos, que têm um pai tão desgraçado!

E continuou a chorar e a dizer entre soluços que era pai de filhos órfãos, porque era obrigado a estar longe deles e isso era como se tivesse morrido. Os filhos não o conheciam nem ele os conhecia, porque ele passava a vida a fazer comissões no Ultramar afastado da família. Acrescentava que morria de saudades da mulher e dos filhos e que isso lhe era insuportável.

Enquanto isso, o camarada que lhe tinha tirado a G3 das mãos disse-me:

— Meu alferes, a arma estava pronta a disparar! Tinha uma bala na câmara e a patilha na posição de fogo… Só lhe faltou carregar no gatilho!

Regressei à messe profundamente dividido.

Por um lado, achava que devia participar do sargento Madeira, de forma a que ele fosse severamente punido, porque tinha posto em sério risco a vida de outras pessoas. Esteve na iminência de causar uma tragédia.

Por outro lado, pensava seriamente nas palavras que ele proferiu quando se retirou. No fundo, o Madeira não passava de um desgraçado. Era verdade que as bebedeiras dele eram frequentes e muitas vezes azedas e conflituosas. Mas se ele bebia, era para esquecer as saudades que sentia da família. Aquela comissão que ele estava a cumprir era a segunda ou mesmo já a terceira, sempre longe da mulher e dos filhos. Na verdade, ele era um pobre diabo que entrou para o Exército porque não tinha onde cair morto. Se não estivesse na tropa, seria um miserável; mas na tropa era um infeliz. Se eu participasse dele, só iria aumentar a sua infelicidade e a dos seus. Nem ele nem, sobretudo, os seus filhos viriam a ganhar o que quer que fosse com a punição e com o prejuízo que esta iria causar à sua carreira militar.

Decidi pôr uma pedra no assunto e não participar do sargento Madeira. Afinal, ele acabou por não provocar desgraça nenhuma.

Dois dias depois, o Madeira veio ter comigo, muito enfiado. Disseme que não se lembrava de nada do que tinha acontecido, porque estivera bêbado, e que tinha sido o primeiro-sargento Carrilho que lhe tinha contado. Declarou-se muito envergonhado pelo que tinha feito e pediu-me imensa desculpa, jurando que aquilo não voltaria a acontecer. Eu fingi que não tinha dado importância nenhuma ao incidente e mandei‑o em paz.


O soldado Domingos Jonas, assinalado na imagem, era o militar mais pequeno do meu pelotão, razão pela qual lhe puseram a alcunha de "Miúdo" (Foto de autor desconhecido)

Embora já não tenha qualquer relação com este assunto, posso ainda revelar que o outro protagonista desta história, o soldado Domingos Jonas, que era angolano, combateu na guerra civil que se seguiu à independência de Angola, tendo-se alistado nas FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), o braço armado do MPLA. Morreu perto do Huambo em 1982. Era uma joia de rapaz e um grande valente, que deixou muitas saudades.

Quem divulgou a notícia da morte do Jonas foi outro antigo soldado da minha companhia, chamado Mário Sessendje, que se filiou na UNITA. Apesar de terem aderido a movimentos que se combatiam ferozmente, o Jonas e o Mário continuaram a ser amigos e a manter-se em contacto um com o outro. A amizade nascida no seio da nossa companhia prevaleceu sobre a hostilidade que opôs os movimentos a que aderiram.

Comentários: 3

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Estranhas e complexas são as nossas humanas mentes, sobretudo quando vivenciam períodos de grande tensão...

Abraço

25 junho, 2020 09:58  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara Maria João,

Eu hesitei muito em publicar este episódio aqui no blog, porque ele não foi mais do que um acontecimento banal na guerra colonial. Em todas, ou quase todas, as companhias destacadas no mato africano durante a guerra colonial ocorreram episódios assim, de alguém que pôs em grave perigo a vida dos seus camaradas, simplesmente porque se "passou dos carretos", se embebedou ou se drogou (com liamba, pois drogas duras não existiam por lá), e protagonizou um incidente que só por milagre não causou uma tragédia. Casos como o do sargento Madeira foram comuns em Angola, em Moçambique e na Guiné.

Neste momento, nós estamos a passar por uma pandemia que nos tem obrigado a um severo confinamento social. Só passaram três meses de confinamento e já estamos fartos dele até à ponta dos cabelos. Imagine-se um confinamento muitíssimo mais rigoroso do que este, de dois anos e não de três meses, passado a milhares de quilómetros de distância das respetivas famílias, longe de tudo e de todos. Acrescente-se-lhe o medo, os perigos da guerra, os ataques e emboscadas que causavam a morte ou mutilação de camaradas de armas, as notícias recebidas pelo correio, do «avô que está muito mal», da «mãe que tem uma coisa maligna no peito», do «filho que não estuda e vai chumbar o ano», etc., etc., etc. Quem era capaz de aguentar um confinamento assim? Era inevitável que ocorressem incidentes como o do sargento Madeira, ou o do soldado que disparou contra a sua própria imagem num espelho e quase matou quem estava do outro lado da parede. Cada soldado, cada cabo, cada furriel, cada sargento em comissão militar na guerra colonial vivia um drama pessoal pungente, que era diferente dos dramas dos outros, mas que no fundo era semelhante ao de todos os outros. Por tudo isto, achei que, apesar de tudo, valia a pena contar a história da bebedeira do sargento Madeira. O que mais houve na guerra colonial foram "sargentos Madeira".

26 junho, 2020 02:55  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Acredito, Fernando, acredito que sim.

26 junho, 2020 10:10  

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