28 maio 2022

O navio negreiro


I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!


São Paulo, 18 de abril de 1868
    
Castro Alves (1847-1871), poeta brasileiro



21 maio 2022

As ruínas romanas de Pisões, Beja


Peristilo com implúvio da villa romana de Pisões, Beja (Foto: Castela)

A escassos quilómetros da cidade de Beja estão as ruínas de uma villa romana, que poderão ser consideradas das mais interessantes ruínas romanas existentes em Portugal: a villa de Pisões. Tive a oportunidade de a visitar há alguns anos, numa das minhas deslocações a Beja, cidade que muito prezo, porque nela me sinto como se estivesse em casa.

A villa romana de Pisões foi habitada entre os séc. I e IV da nossa era e dela restam, nomeadamente, alguns belíssimos mosaicos e os banhos privados mais bem preservadas do nosso país. Numa página dedicada a esta villa que se encontra no site da Câmara Municipal de Beja, pode ler-se o seguinte:

A villa romana de Pisões foi acidentalmente descoberta em fevereiro de 1967, no decurso de trabalhos agrícolas, tendo as escavações arqueológicas então iniciadas revelado uma villa de grande interesse do ponto de vista do património histórico. Subsistem, no Alentejo, inúmeros testemunhos arqueológicos destas estruturas agrárias romanas, designadas por villae, que caracterizam um tipo de ocupação e exploração agrícola do território.

Nelas, culturas como a da vinha e da oliveira, produção de cereais e de gado, destinar-se-iam ao abastecimento dos mercados de Pax Iulia (designação de Beja na época romana) ou de outrascidades do Alentejo e Algarve, bem como do exército e de coutos mineiros como Vipasca (Aljustrel) e Mina de S. Domingos. Eventualmente, alguns produtos poderiam ser exportados para outras regiões do Império Romano. A villa de Pisões, ocupada no período romano entre os séculos I e IV d.C., só se encontra parcialmente escavada, compreendendo parte significativa da pars urbana (parte da villa que servia de residência aos seus proprietários), com mais de quarenta divisões dispostas em torno de um pátio central descoberto, denominado peristilo. A fachada, que seria porticada, estaria virada a sul, abrindo sobre um grande tanque ainda hoje bem conservado. São os mosaicos da villa romana de Pisões que constituem a sua maior riqueza plástica, podendo admirar-se uma apreciável diversidade de painéis de diferentes períodos da história romana, destacando-se vários estilos decorativos e iconográficos. Dignos de destaque são, igualmente, o edifício termal, com a sua planta bem definida e o hipocausto muito bem conservado, e o paredão de uma barragem romana, situado a cerca de duzentos metros da villa, a qual teria como função constituir-se como uma reserva de água para o abastecimento da exploração agrícola e para a vida doméstica. Para além de Pisões conhecem-se, no atual concelho de Beja, vários sítios identificados como villae, que não foram objeto de escavações sistemáticas, mas que apontam para uma forte exploração do espaço agrícola da zona envolvente da antiga Pax Julia.

(Foto: Castela)

A suástica aparece frequentemente representada em mosaicos romanos como motivo decorativo. É evidente que a sua simbologia atual não existia no tempo da Antiguidade Clássica. Mesmo na Índia e no Paquistão atuais, a suástica é abundantemente representada como símbolo solar e não como símbolo maléfico (Foto: AlMare)

(Foto de autor desconhecido)

(Foto: Castela)

(Foto: José Ferrolho)

14 maio 2022

Arpa Eolea, de Cláudio Carneyro


Arpa Eolea, peça musical para piano escrita em 1948 pelo compositor português Cláudio Carneyro (1895–1963), numa interpretação pela pianista, também portuguesa, Catarina Real Oliveira

07 maio 2022

Eduardo Viana


Interior, 1914, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

K4, Quadro do Azul, c. 1916, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

"La Petite", 1916, técnica mista sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

A Revolta das Bonecas, 1916, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

As Três Abóboras, 1919, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Coleção particular

O Homem das Louças, 1919, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Coleção particular

Pousada dos Ciganos, c. 1923, óleo sobre cartão de Eduardo Viana (1881–1967). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

Nu, 1925, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

Nu, 1925, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

Ponte D. Maria (Porto), 1925, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

Natureza Morta, 1957, óleo sobre tela de Eduardo Viana (1881–1967). Coleção particular


Eduardo Afonso Viana foi, sem qualquer dúvida, um dos maiores pintores portugueses do séc. XX. Nasceu em Lisboa em 1881, frequentou o curso de pintura da Academia de Belas-Artes de Lisboa até 1905 e concluiu os seus estudos em Paris, onde ficou a viver até 1914. De volta a Portugal, por causa da 1.ª Guerra Mundial, fixou residência em Vila do Conde, onde estabeleceu laços de amizade com Robert Delaunay e Sonia Delaunay, que tiveram uma influência marcante na sua obra, assim como com Amadeo de Sousa-Cardoso, que vivia então em Manhufe, Amarante. Em 1925, Eduardo Viana voltou a sair do país e radicou-se primeiro em Paris e depois na Bélgica, onde ficou a viver até 1940. Regressou então a Lisboa em consequência da 2.ª Guerra Mundial e faleceu também em Lisboa em 1967.

01 maio 2022

Soneto do trabalho


Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos e das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.

Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas,
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas.

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reação não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu Povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.

José Carlos Ary dos Santos (1936–1984)


Moeda italiana de 50 liras, cunhada em 1972 e representando o deus Vulcano (Foto de autor desconhecido)