Assinalada no mapa, a região da Ribeira do Sado (clicar na imagem para ampliar)
Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.
Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão.
(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal)
Ribeira do Sado é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio Sado, no sul de Portugal, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de Grândola, a
Vila Morena. São Romão do Sado é uma das aldeias existentes na referida região.
Quem agora for passear pela Ribeira do Sado, já não verá gente completamente preta diante dos seus olhos, nem na aldeia de São Romão encontrará moças da cor do carvão propriamente dita. A mestiçagem já se consumou por completo. Mas são por demais evidentes os traços fisionómicos observáveis em muitos dos habitantes da região, assim como a cor mais escura da sua pele, que nos remetem imediatamente para a África a Sul do Sahara.
Nem sequer é preciso percorrer a Ribeira do Sado. Se nos limitarmos a dar uma ou duas voltas pelas ruas de Alcácer do Sal, por certo nos cruzaremos com uma ou mais pessoas que apresentam as características físicas referidas. São os chamados
mulatos de Alcácer, por vezes designados também
carapinhas do Sado.
O seu aspeto é semelhante ao de muitos cabo-verdianos, mas não possuem quaisquer laços com as ilhas crioulas. São portugueses, filhos de portugueses, netos de portugueses, bisnetos de portugueses e assim sucessivamente. Quando falam, fazem-no com a característica pronúncia local. São alentejanos.
É frequente atribuir-se ao Marquês de Pombal a iniciativa de promover a fixação de populações negras no vale do Rio Sado. Mas não é verdade. Existem registos paroquiais e do Santo Ofício que referem a existência de uma elevada percentagem de negros e de mestiços em épocas muito anteriores a Pombal. Segundo tais registos, já no séc. XVI havia pessoas de cor negra vivendo nas terras de Alcácer.
No troço chamado Ribeira do Sado, o vale do Rio Sado é bastante alagadiço e nele se cultiva arroz. Até há menos de cem anos, havia muitos casos de paludismo neste troço. A mortalidade causada pelas febres palustres fazia com que as pessoas evitassem fixar-se na região. Além disso, no séc. XVI, muitos portugueses embarcaram nas naus que demandaram outras terras e outras riquezas, o que agravou ainda mais o défice demográfico. Terá sido esta a razão por que, naquela época, os proprietários das férteis terras banhadas pelo Sado terão resolvido povoá-las com negros, comprados nos mercados de escravos. Os
mulatos do Sado dos nossos dias são, portanto, descendentes desses antigos escravos negros.
A comprovar a antiguidade do povoamento negro no vale do Sado está o facto de que os atuais
mulatos não possuem quaisquer manifestações culturais distintas das dos seus outros conterrâneos, sejam essas manifestações de raiz africana ou outra. Com a passagem dos anos e dos séculos, os costumes, as crenças e as tradições dos antigos escravos negros dissolveram-se por completo na cultura local de raiz europeia e mourisca, integrando-se nela. Também do ponto de vista cultural, portanto, os
mulatos de Alcácer são alentejanos legítimos, tão legítimos como os restantes.
Há uma outra região em Portugal onde ocorreu uma fixação de populações negras em número significativo. É o vale do Rio Sorraia, onde fica a vila de Coruche, já em terras do Ribatejo. Tal como no vale do Rio Sado, também no vale do Sorraia havia muito paludismo. As razões para se ter feito com negros o povoamento desta outra região terão sido, por isso, as mesmas. Mas, ao contrário do que acontece em Alcácer do Sal, dificilmente vislumbraremos traços africanos entre os atuais habitantes de Coruche. Os genes "negros" estão presentes em muitos coruchenses, mas não são facilmente observáveis à vista desarmada.
Tal como no vale do Sado, também no vale do Rio Sorraia se cultiva muito arroz. Por isso, quando comermos arroz português, estaremos a comer arroz que pode muito bem ter sido cultivado por honrados compatriotas nossos que são descendentes de pessoas de pele negra.
Vendo bem as coisas, qual é afinal o português que poderá garantir, com absoluta certeza, que não tem antepassados negros?