26 junho 2010

Mãe Preta


Mãe Preta é uma canção que surgiu no Brasil na década de 30 do século passado, sobre o drama pungente de uma ama negra no tempo da escravatura. Com música composta por "Caco Velho" (Matheus Nunes) e letra de "Piratini" (António Amabile), Mãe Preta chegou a Portugal nos primeiros anos da década de 50 pela voz da fadista Maria da Conceição. Esta versão portuguesa foi um êxito colossal, que as rádios tocavam sem cessar e que as pessoas cantarolavam e assobiavam por todo o lado. Até que, de repente, a Mãe Preta deixou de se ouvir nas rádios. E as pessoas interrogavam-se sobre este silêncio subitamente instalado:

-- O que é que aconteceu à Mãe Preta, que nunca mais ouvi no rádio?

-- Não sabe? O Salazar proibiu.

-- Oh, que pena! Era tão bonita!

Entretanto, novos êxitos musicais foram surgindo, nas vozes de Amália Rodrigues, Maria de Lourdes Resende, Francisco José e outros. Mesmo assim, a Mãe Preta continuava presente na memória dos portugueses, com as suas palavras que a ditadura pretendeu calar:

Pele encarquilhada, carapinha branca,
gandola de renda caindo na anca,
embalando o berço do filho do sinhô,
que há pouco tempo a sinhá ganhou.

Era assim que Mãe Preta fazia.
Tratava todo o branco com muita alegria.
Enquanto na sanzala Pai João apanhava,
Mãe Preta mais uma lágrima enxugava.

Mãe Preta, Mãe Preta!

Enquanto a chibata batia no seu amor,
Mãe Preta embalava o filho branco do sinhô.

Poucos anos depois, tirando partido das saudades que as pessoas conservavam da canção Mãe Preta, Amália Rodrigues gravou um fado chamado Barco Negro, com um poema de David Mourão-Ferreira sobre a música da Mãe Preta. Este fado, que tem como tema o amor de uma mulher por um homem morto num naufrágio, foi um dos maiores êxitos de toda a carreira de Amália. Foi um êxito tão grande, que a letra original da Mãe Preta acabou mesmo por cair no esquecimento em Portugal.




Barco Negro, por Amália Rodrigues

Seria de esperar que, depois da queda da ditadura em 25 de Abril de 1974, a Mãe Preta reaparecesse em Portugal com a sua letra original, cantada por uma das novas vozes saídas após a Revolução. Porém, tal quase não aconteceu. O que aconteceu foi que as novas fadistas voltaram a cantar o Barco Negro, que Amália Rodrigues cantara, e não a original Mãe Preta, que Maria da Conceição tinha popularizado. Foi o que fez Mariza e foi o que fez, mesmo, o brasileiro Ney Matogrosso. No meio das várias vozes que cantaram de novo o Barco Negro, uma voz, pelo menos, se fez ouvir com a "velhinha" Mãe Preta: a de Dulce Pontes.




Mãe Preta, por Dulce Pontes

23 junho 2010

Antigas tradições do São João no Porto


Quando eu era criança, também fazia cascatas iguais a esta (Foto: Agrupamento Musical Música & Som)


(...) Festa cíclica, de raiz nitidamente pagã, o S. João do Porto assenta, fundamentalmente em “sortes” amorosas, encantamentos e divinações que se devem relacionar, por um lado, com o casamento, a saúde e a felicidade, mas que andam também estreitamente ligadas aos antigos cultos pagãos do Sol e do fogo e às virtudes das ervas bentas, ao orvalho, às fogueiras, à água dos rios, do mar e das fontes.

Quem saltar a fogueira na noite de S. João, em número ímpar de saltos e no mínimo três vezes, fica por todo o ano protegido de todos os males. Diz a tradição que as cinzas de uma fogueira de S. João curam certas doenças de pele. Para certos males, são benéficos os banhos que se tomem na manhã do dia de S. João, mas antes de o sol nascer. No Porto, os que se tomavam nas praias do rio Douro ou nos areais da Foz valiam por nove...

As orvalhadas têm a ver com a fecundidade. Uma mulher que se rebole de madrugada sobre a erva húmida dos campos (“...para tomar orvalhadas / nos campos de Cedofeita”) fica apta para conceber. Segundo um conceito antigo, as orvalhadas eram entendidas como o suor ou a saliva dos deuses da fertilidade. Uma outra velha tradição assegura que os namoros arranjados pelo S. João são muito mais duradouros do que os que se formam pelo Carnaval, “que não vêem chegar o Natal..."

Um antigo costume são-joanino consiste em fazer subir balões confeccionados com papéis de várias cores. Sobem ao ar como sóis iluminados sob o impulso do fumo e o calor de uma chama que consome uma mecha de petróleo ou resina. Estas práticas são velhos resquícios de um antigo culto ao Sol.

S. João é também casamenteiro. Ao toque da meia noite a menina casadoira atira um cravo para a rua. Se for apanhado por um rapaz, em breve ela casará. O mês de Junho passa célere por entre o canto fruste das cigarras e a risada vermelha das papoilas. Mas a folha da oliveira também entra no sortilégio das cantigas de amores: “Ó meu S. João Baptista / ouvi-me que eu sou solteira / destinai o meu marido / nestas folhas de oliveira...” Havia no Porto, ainda há relativamente pouco tempo, o costume de se erguerem arcos de madeira com que se enfeitavam determinadas ruas para a grande festa. O cimo desses arcos terminava em triângulo, que era a forma ou o símbolo do Sol para certas religiões antigas.

O cristianismo soube, de forma inteligente, reconheça-se, cristianizar as festas pagãs em geral e o S. João em particular. O nome do santo precursor passou, depois disso, a dominar e a proclamar uma festa que no Porto se celebra na noite de 23 para 24 de Junho com desfiles de marchas, arraiais nos quatro cantos da cidade e bailaricos. O S. João do Porto é o povo na rua, a multidão que transborda de avenidas, praças e ruas, desemboca de vielas e azinhagas, de alho porro na mão ou brandindo o martelinho, mas sempre com um chiste travesso na boca, a descambar, em regra, para o brejeiro mas que atirado ao ar em jeito de chalaça assume o sentido de um verdadeiro hino de solidariedade. (...)

Germano Silva, in Porto Turismo



Este balão é dos grandes... (Foto: Ana Isa)

19 junho 2010

22


José Saramago (caricatura de Sergei)


E porque os antigos deuses haviam morrido por inúteis os homens descobriram outros que sempre tinham existido encobertos pela sua não necessidade

O primeiro de todos foi a montanha porque era ela que no seu mais alto pico sustentava o peso do céu

Aquele mesmo céu que os velhos deuses em tempos idos habitaram e donde de pais para filhos desprezaram os homens porque desprezo fora impor-lhes salvações contra a sua própria humanidade

O segundo deus foi o sol porque ensinara a redescobrir a roda embora houvesse tribos que veneravam a lua pela mesma razão

Essas porém em noites de quarto minguante ou crescente traziam os olhos baixos

Provando assim que sempre cada tribo tem o deus que prefere e não outros

Mas a nova mitologia a isto se resumiu porque um dia houve um homem que subiu ao pico da montanha e por essa maneira se viu que sozinho levantara o céu

E outro pegou nas rodas que haviam sido o sol e a lua e lançou-as para longe onde não brilharam

Definitivamente deus só ficou o rio porque os homens vão mergulhar nele as mãos e o rosto e têm estrelas nos olhos quando se levantam

Enquanto as águas por sua vez transportam ao céu e ao sol se o há a turvidão salgada das lágrimas e do suor

E as plantas verdes que dentro de água vivem estremecem sob o vento que traz aquele cheiro de homem a que a terra ainda não se habituou


José Saramago (1922-2010), in O Ano de 1993, págs. 87-88, Editorial Caminho, Lisboa

15 junho 2010

O esplendor do Barroco no Algarve


Interior da Igreja de São Lourenço dos Matos, Almancil, Loulé (Foto: herbert.schlemmer)


Apesar de ser pequena e de ter um aspeto exterior relativamente modesto, a Igreja de São Lourenço dos Matos, mais conhecida como Igreja de São Lourenço de Almancil, merece uma visita muito atenta. Localiza-se na freguesia de Almancil, concelho de Loulé, nas imediações da Estrada Nacional 125. É identificável pela sua cúpula, dado que não é frequente encontrar-se uma igreja tão pequena provida de cúpula.

O que esta igreja tem de notável é o seu interior, que está revestido de painéis de azulejos azuis e brancos que representam a vida de São Lourenço. Estes painéis foram feitos em 1730, por Policarpo de Oliveira Bernardes, e dão uma atmosfera de extraordinária frescura ao interior do templo.

Em Portugal, ao contrário do que sucede em outros países europeus, as igrejas barrocas costumam ser sombrias, pesadas e soturnas. Isto deve-se ao uso e abuso da talha dourada, que costuma ser tanta e estar tão carregada de volutas e floreados, que os templos acabam por perder toda a beleza e toda a harmonia. A Igreja de São Lourenço dos Matos, pelo contrário, consegue transmitir uma sensação diametralmente oposta, ainda que os seus painéis de azulejos também estejam carregadíssimos de elementos decorativos e ainda que também possua talha dourada no seu altar-mor. Na verdade, enquanto as outras igrejas barrocas portuguesas são quase todas opressivas e sufocantes, esta é libertadora e gloriosa. Vale a pena conhecê-la.



Exterior da Igreja de São Lourenço dos Matos, Almancil, Loulé (Foto: iguana_intertainment)

10 junho 2010

Um soneto de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões



Cópia de um retrato de Luís de Camões feito por Fernão Gomes (1548-1612)

08 junho 2010

Um génio do Romantismo


Robert Schumann e a sua musa Clara


O compositor alemão Robert Schumann (1810-1856) foi decididamente um homem do seu tempo. A música que criou exprime, como poucas, um vastíssimo leque de emoções e de sentimentos, que vão da melancolia mais profunda até à paixão mais intensa, expresso num conjunto de obras inesquecíveis, como as Cenas Infantis, a Kreisleriana, o Concerto para Piano e Orquestra, a Sinfonia Renana e outras mais.

No vídeo que se segue dou a palavra a quem sabe disto muito mais do que eu. Antes, porém, não posso deixar de chamar a atenção para o pianista que se vê e ouve no início da peça jornalística. O seu nome não é referido, o que é uma tremenda injustiça, porque ele é "apenas" um dos maiores pianistas do mundo: o brasileiro Nelson Freire.




Escute-se a seguir a peça mais popular de Schumann: o 7º andamento das Cenas Infantis, op. 15, chamado Träumerei (Sonho). Toca o grande pianista, já falecido, Vladimir Horowitz.


01 junho 2010

Crianças de Angola


Brinquedos de crianças pobres de Angola feitos por elas mesmas (Foto: Salucombo_Jr.)


São motivo de muita admiração a habilidade e o engenho demonstrados pelas crianças africanas, sejam elas do campo, sejam da cidade.

O músico angolano Victor Gama (compositor, inventor de instrumentos musicais, investigador, etc.) pediu a crianças da localidade de Xangongo, na província do Cunene, sul de Angola, para construirem instrumentos musicais, os quais se destinavam a ser tocados numa peça escrita por Gama para o Kronos Quartet, um dos melhores e mais prestigiados agrupamentos musicais da atualidade.

O vídeo que se segue mostra a construção de dois destes instrumentos: um tambor feito a partir de uma cápsula de bala de canhão e um instrumento de cordas cuja caixa de ressonância é um cunhete de munições usado.

Este projeto foi organizado em Angola por Victor Gama, com a assistência da equipa Tsikaya em novembro de 2008.



Tradução das legendas

«Durante o conflito de 30 anos em Angola, as crianças usaram restos de material militar que encontravam nos campos de batalha para construir os seus brinquedos, entre os quais instrumentos musicais.»

«No âmbito da sua pesquisa e nas suas viagens através do país, nos anos 90, Gama encontrou e gravou crianças acompanhadas dos seus instrumentos, em regiões remotas afetadas pelo conflito armado.»

«Agora em paz, as crianças de Angola têm cada vez mais acesso a brinquedos convencionais, tais como guitarras, tambores, etc.»

«Organizado em Angola por Victor Gama com a equipa Tsikaya, província do Cunene.»

«Kronos Quarteto, a criança de Angola está consigo.»