Quando o José pensa na América
Carta para a Doreen Martin
Doreen:
Na Mafalala quando o José pensa na América
não inveja nem um só arranha-céus de Manhattan
não deslumbram José os feéricos letreiros da Broadway
e não convencem José as vitórias do marinheiro Popeye
só depois de ingerir uma lata de espinafres de publicidade.
Na Mafalala quando o José pensa na América
velhas lágrimas de spiritual salgam os encardidos
asfaltos de água do grande Mississipi com muitas recordações
e numa alegre avenida central da cidade de Chicago
uma farra de tiros desconsidera a camisa
de um cliente que ia comprar no supermercado
uma coca-cola para o seu lanche na fábrica
e a seguir ainda pretendem que o tal José
admire o modernismo da cidade de Chicago
quando de vez em quando ele põe-se
a pensar para que servem por exemplo
uma meia dúzia de Packards novos
para duzentos milhões de americanos
nas mil e uma auto-estradas da América
E nas fábulas verídicas
de locais como Nova Orleans e Harlem
entra Louis Armstrong
sai Jesse Owens.
Entra Joe Louis
sai Marian Anderson.
Entra Duke Ellington
sai Lena Horne.
Entra Paul Robeson
e sai Richard Wright todos com suas quinhentas
mil famílias incluindo a família do José
e que Duke Ellington faz o piano
resolver uma série de problemas
de jazz enquanto um obsceno
Cadillac azul lascivo brilha
os cromados por conta
da General Motors.
Enfim!
Tudo isto, Doreen, tudo isto
é sempre uma fortuita coincidência
entre os firmes princípios da Casa Branca
algumas toneladas de pacotes de chewing-gum
muitas palmas à voz de Nat King Cole e à sua carapinha alisada
e os efeitos da excessiva pintura dos bastões
pincelando de vermelho o suor
dos negros democraticamente.
E
mais ou menos trata-se de uma questão
abstracta mas as crianças que nascem obrigatoriamente
no Xipamanine ou brincam no anti-luxuoso lixo do Harlem
quando puderem falar hão-de nos gritar na cara o contrário
mesmo que um agente especial oiça em Nova Iorque
e comunique logo a certos funcionários de L. M.
Agora, amiga Doreen
agora que o José viu com os próprios olhos a Marilyn
12 meses com um sorriso e nada mais a tapá-la
e das unhas aos cabelos toda ela colorida
ao relento a aquecer as 12 páginas do calendário
o José admira sinceramente mais o Pato Donald
o José gosta sinceramente mais de Bucha e Estica
o José aprecia sinceramente mais um Rato Mickey
e além disso o José simpatiza sinceramente mais
com a filosofia inverosímil dos irmãos Marx
a ouvirem os ancestrais dialectos do ritmo
a bater nos metais o feitiço dos blues
de olhos afundados para dentro como os surumeiros
à décima quinta fumaça quando o medo não tem sentido
e a verem o novo dogma dos sprinters chegando em 1.° à meta
ou de luvas dois homens definindo a ideologia de um “nocaut”
ou ainda a descobrirem a magia revelatória dos livros
com os avós e os netos nos paraísos de minérios
como os pais e as filhas no gozo dos algodoeiros
e tudo junto na esquina do Mundo a meio metro
de um lindo juke-box a tocar-lhe barato
“made in Estados Unidos da América”
enfiando-lhe um simples cêntimo.
E no meio disto tudo, Doreen
sai uma terrível foto feminina publicamente confidencial
mas não passa de Marilyn Monroe uma star cheia de hipóteses
mas o José da Mafalala quando pensa na América
por acaso não pensa nas hipóteses da Marilyn
a mostrar a toda a gente o lucro lógico
dos sistemas de propaganda da América
U.S.A…. U.S.A…. U.S.A.!!!
Mas sabes, Doreen?
Uma espessa sombra de gente oscila os pés indolentemente
no terceiro poste de uma rua em frente a uma esquadra
e o José lembra-se que Jesse Owens foi aos Jogos
e contra todas as expectativas nazis ganhou 4 de ouro
e sabem onde foi isso? Mesmo no blindado coração do Hitler.
E além do mais o José também se lembra que Joe Louis na
[desforra
pôs Max Schmmeling K.O. logo ao primeiro round
que Armstrong quando assopra o trompete
os agudos dão resposta concludente
às dúvidas sentimentais da Klu-Klux-Klan
e o retórico par de botas de Charlot
E para terminar esta carta, Doreen
os membros da Klu-Klux-Klan podem zangar-se comigo
mas pouco mais ou menos já sabem quase tudo
o que o José pensa sozinho ali na Mafalala
quando o José pensa na loura Marylin Monroe
pobre milionária da América do Norte
a descontar as insónias
dos outros o ano inteiro
toda nua.
José Craveirinha (1922–2003), poeta moçambicano
(Foto: munshots)
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