Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!
Um retângulo oco na parede caiada Mãe
Três barras de ferro horizontais Mãe
Na vertical oito varões Mãe
Ao todo
vinte e quatro quadrados Mãe
No aro exterior
Dois caixilhos Mãe
somam
doze retângulos de vidro Mãe
As barras e os varões nos vidros
projetam sombras nos vidros
feitos espelhos Mãe
Lá fora é noite Mãe
O Campo
a povoação
a ilha
o arquipélago
o mundo que não se vê Mãe
Dum lado e doutro, a Morte, Mãe
A morte como a sombra que passa pela vidraça Mãe
A morte sem boca sem rosto sem gritos Mãe
E lá fora é o lá fora que se não vê Mãe
Cale-se o que não se vê Mãe
e veja-se o que se sente Mãe
que o poema está no que
e como se vê, Mãe
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!
Mãe
aqui não há poesia
É triste, Mãe
Já não haver poesia
Mãe, não há poesia, não há
Mãe
Num cavalo de nuvens brancas
o luar incendeia carícias
e vem, por sobre meu rosto magro
deixar teus beijos Mãe, teus beijos Mãe
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!
António Jacinto (1924–1991), poeta angolano e antigo prisioneiro do "Campo de Trabalho de Chão Bom", Tarrafal, Santiago, Cabo Verde
Pormenor de um portão de entrada para as celas do campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde (Foto: Jorge Jacinto)
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