20 abril 2020

Espoliada da própria vida


Quando me comunicaram que eu iria comandar uma operação militar helitransportada, não entrei em pânico, mas pouco faltou. «Como é que se comanda uma operação helitransportada?», pensei eu, sobressaltado. «Nunca me ensinaram!» Passei mentalmente em revista o Curso de Oficiais Milicianos que frequentei em Mafra e concluí que ninguém, em momento algum, me ensinou fosse o que fosse que estivesse relacionado com operações deste tipo. «Porque não entregam o comando da operação a alguém que tenha um mínimo de conhecimentos sobre o assunto?», interroguei-me ainda, concluindo logo a seguir que em todo o batalhão não havia um só oficial nessa situação. Nenhum alferes ou capitão parecia estar à altura de poder comandar uma operação helitransportada. Todos pareciam saber tanto como eu, ou seja, nada. Quis o acaso que fosse a mim, e não a outro, que calhasse uma tal responsabilidade.

Pouco a pouco, fui-me tranquilizando a mim mesmo, concluindo que tudo iria correr bem, pois a sorte que sempre me acompanhara na guerra, o meu instinto de sobrevivência e a minha intuição me iriam valer nessa operação, como já me tinham valido em operações anteriores. Quaisquer que fossem as dificuldades que me viessem a surgir, eu iria ser capaz de resolvêlas e tudo iria correr da melhor maneira possível. Sempre assim tinha sido e com certeza assim voltaria a ser. Quando embarquei no helicóptero que me iria largar nas proximidades do objetivo, já eu me sentia relativamente confiante e mentalmente pronto para enfrentar as dificuldades que me viessem a aparecer.

A operação foi mais fácil do que eu alguma vez poderia ter imaginado. Foi, incomparavelmente, a menos cansativa de todas as operações militares que fiz, e também foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma das menos arriscadas.

Esta operação teve como objetivo uma base da FNLA chamada Quiuanda, situada bastantes quilómetros a norte de Cambamba, e nela participaram dois grupos de combate da minha companhia: o 2.º grupo, que era o meu próprio, e o 4.º grupo, que era comandado pelo alferes miliciano Peixoto. A operação decorreu entre 20 de abril (Sexta-Feira Santa) e 22 de abril (Domingo de Páscoa) de 1973.


Um helicóptero Puma SA-330, de fabrico francês, recolhendo militares paraquedistas algures no norte de Angola (Foto: Rui Ferreira)

Fomos levados "ao colo" por helicópteros Puma até às proximidades do objetivo. Estes helicópteros eram grandes e muito fechados. Embarquei no primeiro que levantou de Zemba e fui um dos primeiros militares a saltar do helicóptero (que ficou a pairar a cerca de metro e meio de altura do chão), com a intenção de dirigir a colocação no terreno dos meus homens à chegada. À medida que eles iam saltando, eu encaminhava-os de maneira a formarem uma ampla circunferência em volta do local do desembarque, deitados no solo e com as armas apontadas para fora. Ainda hoje não sei se era assim que eu devia proceder; fiz o que me ocorreu naquele momento.


Um jato F-84 Thunderjet, de fabrico norte-americano, sendo abastecido de combustível na Base Aérea 9, em Luanda. Esta aeronave, em concreto, pode ter atuado na operação ao Quiuanda (Foto: Soares da Silva)

Um avião Dornier DO-27, de fabrico alemão (Foto de autor desconhecido)

Ao mesmo tempo que saltávamos dos helicópteros, diversas aeronaves da Força Aérea faziam fogo à nossa volta, provocando uma barulheira infernal. Fui tomado de uma enorme euforia, que só consegui refrear com muito custo, porque me senti invencível, rodeado que estava por um tão grande poder de fogo. Eu estava no meio de um inferno, mas o inferno era "bom", porque me protegia. Confesso que tive muita dificuldade em conseguir dominar-me e tomar consciência da real situação em que me encontrava.

As aeronaves que evolucionavam à nossa volta eram dois ou mais jatos F-84, um avião a hélice DO-27 e um helicanhão, o qual consistia num pequeno canhão MG-151 montado a bordo de um helicóptero Alouette III.


Um helicanhão idêntico ao utilizado no ataque ao Quiuanda (Foto: Mais Alto)

Os rebentamentos dos rockets lançados  pelos aviões e as rajadas do helicanhão faziam um barulho ensurdecedor. Este barulho durou até ao momento em que o último dos meus homens saltou para o chão. Então, todas as aeronaves se calaram e partiram de regresso a Luanda, deixando-nos sozinhos no terreno. Ordenei logo ao meu pessoal que se levantasse e se preparasse para partir. Dirigimo-nos imediatamente para a base que deveríamos destruir.

Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base de Quiuanda era pequena e não justificava um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea. Os poucos guerrilheiros que deviam guarnecer a base puseram-se em fuga antes de entrarmos nela. Encontramos a base vazia.

Os guerrilheiros deviam ter sido apanhados de surpresa pelo ataque, pois deixaram pequenas fogueiras acesas com latas cheias de água em cima, em jeito de cafeteiras, provavelmente para prepararem o pequeno-almoço, em Angola chamado mata‑bicho. Os guerrilheiros e a população que os apoiava costumavam utilizar as latas vazias e as colheres de plástico das rações de combate que a tropa portuguesa abandonava na mata durante as operações.

No centro da base estava hasteada uma bandeira da FNLA, que um militar que não consegui identificar retirou. Julguei que ele mais tarde me iria entregar a bandeira, para juntar ao restante espólio da operação, mas tal não aconteceu. O militar ficou com ela.


Bandeira da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA)

Depois de termos destruído a base, saímos dela por um trilho, a fim de explorarmos a região envolvente. Mais adiante, na beira do caminho, encontramos uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão, cujas balas costumavam ser de ponta explosiva. Uma bala deve ter atingido a mulher na cara, abrindo-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue.

O soldado Domingos Cangúia, que era natural do Cuanza Norte e era generoso e puro como poucos, chorou convulsivamente a morte gratuita daquela desgraçada mulher, a quem até a vida tiraram. Dizia o soldado, por entre soluços:

— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos?

E chorava inconsolavelmente. Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas.

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Ainda que os meus olhos estejam a piorar visivelmente, continuarei a acompanhar estas memórias de combate.

Abraço

20 abril, 2020 08:05  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Fico-lhe muito agradecido, Maria João. Embora nem sempre tenha a oportunidade de comentar, eu também continuarei sempre a acompanhar com muito gosto os seus belos poemas. Não perco nenhum.

24 abril, 2020 18:34  

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