Pensamentos esdrúxulos
“
Por alguma razão estás sempre nua no meu pensamento.”
O meu pensamento, artista de haute couture inversa, revela a beleza do tecido vivo da tua pele. A tua nudez como beleza desnuda prova que toda a criação humana é supérflua, e que a verdade das coisas está sempre subjacente a todo o artifício.
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A suprema lucidez torna evidente que é preciso ajudar a realidade a ir ao encontro das nossas ilusões.
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Ah a tentação de uma rosa sobre o muro! Hirsuta a roseira eriçada de espinhos. Rapina a mão a tentar colhê-la. A mão e a rosa. A beleza e a líbido — o mais sublime conflito da natureza.
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Quando os nossos corpos se unem, não sei quem possui quem. Não é o sabre que possui a bainha mas sim a bainha que possui o sabre.
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O que aprendi na guerra contraria a ordem natural das coisas. Só é possível ser corajoso se se sentir medo do perigo.
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Ignorar um perigo não é coragem, é cobardia. O evitamento e a negação são fugas para enfrentar o medo. A maior cobardia é o medo de ter medo.
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Os estúpidos nunca são corajosos, a experiência diz-lhes que são sempre os outros a morrer.
A estupidez pode chegar a esse nível cognitivo, e não é de estranhar que escolham para seus líderes quem tenha o mesmo nível intelectual. Frequentemente, admiram quem ostente a bravata quase sempre inútil de se expor ao perigo ignorando o inimigo, apenas porque não o veem, e confundem essa imbecilidade com coragem. Pobres dos que lutam lado a lado com soldados desses, melhor fora praticarem hara-kiri.
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Em África não odiávamos o inimigo, combatíamos por um estranho instinto do cumprimento do dever.
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Do chão do corredor do Hospital Militar da Beira vê-se o mundo de baixo para cima.
O condutor da ambulância a fazer street racing e o soldado por cima de mim a esvair-se em sangue. Agora ali parece que dorme, sereno. As pessoas passam e ignoram-no porque o sangue dele está todo sobre mim.
O mundo visto de baixo para cima torna as caras cómicas. Os pés, esses, passam rentes à minha cabeça. Às vezes, a indiferença das pessoas é interrompida pela visão de um soldado todo coberto de sangue e com o lençol murcho onde devia estar a perna esquerda.
“Olha-me este paradoxo!” Diz uma cara cómica para outra cara cómica, apontando para o meu emblema hippie e a outra cara cómica ganha agora também um ar estúpido.
“Um símbolo da paz num ferido de guerra.” Depois da explicação, a cara estúpida, agora com ar filosófico, olhando o medalhão de madeira feito por um artista de arte cava maconde.
Finalmente as duas caras olhando, como se eu não estivesse lá, como fazemos nos zoos, por acharmos que os animais não ficam ofendidos por serem tratados como pessoas que desprezamos.
O convívio constante com o drama e a tragédia leva as pessoas à insensibilidade por fadiga de compaixão.
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A mãe do meu amigo morto na Guiné:
— No te enxergo baim Manelzito, mas alembro-me baim da tua cara. Mas nã tenho uma luz da cara do mê Tó. Afirmo-me baim no retrato dele mas só veijo uma névoa. Alembro-me de toda a gente e do mê rico filho não. Porque me lo há de Deus ter levado e naim a lembrança da cara dele me deixô?
E eu procurando palavras para lhe dizer, palavras que ainda ninguém inventou para explicar as coisas estupidamente cruéis desta vida.
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Sorrio ao ouvir dizer que os ex-combatentes evitam falar da guerra. Esta é a confusão habitual entre silêncio e surdez. Nós vimos falando da guerra em altos berros, pá, tu é que estás surdo!
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Se salvaste a vida de uma pessoa és de certo um herói, se salvaste a vida a 100 pessoas deves ser apenas uma enfermeira.
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Hoje pensei que não iria falar de Deus. Ter pensado nisto prova que Deus existe, pelo menos enquanto conceito, e é omnipotente, mas também prova que precisa do nosso pensamento para isso.
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Guardo nítida a forma da tua silhueta frente ao mar. Uma ligeira dormência que sempre sucede a um esforço demorado guardou essa imagem no diretório dos meus sonhos.
O meu cansaço teve hoje outra origem, mas ao olhar a janela do quarto de hotel que dá para a aridez da cidade, é o mar que vejo e a tua silhueta que percebo nítida… e a certeza de te ter amado toda a noite.
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Tocas-me, e há uma alteração em todo o meu ser e uma perspectiva de prazer irrecusável e irreversível.
O chão transforma-se em caminho mal começamos a andar nele.
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Não devemos confiar nos otimistas, eles contentam-se com copos meio cheios. Já os pessimistas, que os veem meio vazios, tenderão a enchê-los.
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O que há de verdadeiramente perigoso no amor, é que trazemos para viver connosco precisamente quem pode dar cabo da nossa vida.
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Hoje estou tao calmo como dois cisnes deslizando nas águas lisas de um lago. Acalmam-me o silêncio e a solidão, porque sei que do outro lado da parede, do outro lado da rua, do outro lado do mundo tu estás disponível para mim.
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A rosa obsessiva sobre o muro. A mão inquieta. A escada que sobes de glúteos inocentemente provocatórios. Que culpa tenho eu, Rosa, que culpa tenho eu?
mcbastos, Elo, mensário da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, setembro–outubro de 2020
Comentários: 2
Depois de tudo ler
e de tudo voltar a ler
escolho
«O chão transforma-se em caminho mal começamos a andar nele.»
Essa frase faz lembrar o poeta espanhol Antonio Machado, que escreveu num seu poema: «Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar». O cantor Joan Manuel Serrat pegou neste poema e com ele fez uma canção, acrescentando-lhe mais alguns versos.
Os versos de Antonio Machado podem ser lidos aqui e a canção de Joan Manuel Serrat pode ser ouvida aqui.
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