17 agosto 2020

Crenças e superstições (que já não há?)


Ferradura pregada numa porta (Foto: Rafael Carvalho)


Para tirar as sardas — trovisco macho, sangue de toupeira, unto de cobra ribeirinha e vinagre puro.

Amassa-se tudo e põe-se na cara, ao deitar na cama, três noites a fio, mas só se lava a cara no fim dos três dias. É «remédio santo».


(…)


Remédio para a dor de cabeça — alecrim, rosmaninho, arruda, politaira, aipo, mentrastos e segurelha. É tudo bem pisado e posto na cova-do-ladrão ao deitar, dizendo-se em seguida:

Com Deus me deito,
Aqui neste leito,
Deito-me doente
E levanto-me escorreito.
Em louvor de Santa Maria,
Paz téco, aleluia.
— Amen.

Como aborrecer o vinho — pega-se numa cobra viva e afoga-se em meia canada de vinho. Se não for tempo de cobras, também remedeia uma enguia, mas a cobra é melhor.

Quando o bêbedo pedir vinho, dá-se-lhe deste. Ao cabo de 24 horas, nunca mais torna a fazê-lo.

Para o pão levedar depressa — pega-se nas calças de um homem (que não use ceroulas), viram-se do avesso e põem-se sobre a massa, com um rosário bento em cima. (De notar a analogia entre o símbolo da potência masculina e o crescimento da massa.)

Para tirar o pano da cara — esfrega-se bem a cara com cueiros ainda húmidos.

Para conservar a vista — esfrega-se os olhos com ovos ainda quentes e pouco limpos.

Para curar ougamentos1 — come-se atrás da porta um bolo quente, com azeite e alho, e enterra-se o que sobrar. Aliás, fica ougado o animal que o comer.

Para preservar do diabo as casas — prega-se em cada porta, postigo e janela, uma cruzinha de trovisco macho.

Mas neste arsenal, existem igualmente os acautelatórios. E assim, quem quiser «zombar de bruxas e feiticeiras» deve trincar e mastigar, todos os dias, ao levantar da cama, um bocado de alho verde.

E, finalmente, esta «receita» que poderá, eventualmente, ser útil a alguma leitora em transes semelhantes:

Para a moça fazer andar o rapaz sempre «à cordinha», até que ele se resolva a casar com ela — traga, numa bolsinha pregada no colete, sobre o peito esquerdo, um osso de cão, outro de gato e outro de defunto, com um bocadinho de terra do caixão do mesmo, três folhas de ruda (arruda), três de alecrim macho e um alho verde. Lave bem o corpo em cruz — desde as pontas dos dedos da mão direita até às pontas dos dedos do pé esquerdo — e das pontas dos dedos da mão esquerda até às pontas dos dedos do pé direito. Sirva depois ao dito cujo rapaz café ou chocolate, preparado com aquela água, e ovos fritos, partidos no cachaço dele. É receita magnífica e muito experimentada.

Fizemos a amostragem de um receituário que nos chegou, pelo menos do século XIX (mas com origem certamente mais remota) Disparates, infantilidades, crenças pueris. Instantâneos de certa vida portuense — cada um chame-lhe o que entender — são, também, componentes de outra face da personalidade tripeira que se desvenda. Sem nenhum propósito apologético. Sem nenhuma simpatia pelas práticas. (Mas com muita simpatia pelas pessoas que as praticavam. Com as suas razões: abandono, atraso cívico, dificuldades, analfabetismo, isolamento, más habitações, superstição. Mudámos assim tanto as causas do sofrimento e do subdesenvolvimento para nos rirmos delas? E será a crença nas virtudes de um pó ou de uma bisnaga, impostos pela TV, superior à crença nas mulheres de virtude? Vale mais a «crença» electrónica do que a crença nas palavras e nos gestos — que se crêem — mágicos?)


1 De ougar: palavra que significa «aguar», muito usada pelas camadas populares do Porto. O ougamento é o desejo de comer ou beber qualquer coisa (à mulher grávida, deve-se dar tudo o que lhe apetecer, para que ela «não ougue»).


Hélder Pacheco, Tradições Populares do Porto, 3.ª Edição, Editorial Presença, Lisboa, 1991


GLOSSÁRIO (segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020)

Cova-do-ladrão — Depressão entre o pescoço e a nuca.

Pano — Nódoa amarelada no rosto ou noutra parte do corpo.

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Não conhecia nenhuma das receitas deste interessante leque de crenças e superstições, Fernando.
Quanto à sua pergunta, garanto que mais ou menos "metamorfoseadas", ainda as há, ainda as há...

Abraço!

18 agosto, 2020 10:25  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amiga Maria João,

Há sempre crenças e superstições, mas não são necessariamente estas, que pertencem a um tempo passado e enterrado. Mesmo assim, algumas crenças muito antigas sobrevivem. Estou a lembrar-me, por exemplo, da Cadeira de S. Gens, em Lisboa.

No miradouro da Senhora do Monte, próximo da Graça, existe uma capela muito antiga, diz-se que do tempo da conquista de Lisboa aos mouros. Além da magnífica vista sobre Lisboa que a Senhora do Monte proporciona, existe no interior da capela uma cadeira de pedra que diz-se ter pertencido a S. Gens, que foi um dos primeiros bispos de Lisboa, ainda no tempo dos romanos. S. Gens terá sido o primeiro bispo olisiponense a ter sido martirizado. Por isso, ele foi canonizado e é considerado santo pela Igreja Católica.

Conta-se que, quando S. Gens nasceu, a sua mãe morreu do parto. É tradição em Lisboa e arredores que as senhoras que estão grávidas se vão sentar na cadeira de S. Gens durante alguns momentos, enquanto rezam algumas orações, para que a milagrosa cadeira do antigo bispo lhes proporcione um parto feliz. Disse-me o sacristão da capela, que até de Torres Vedras e de Vila Franca de Xira vêm grávidas a Lisboa com o único propósito de se sentarem na cadeira de S. Gens.

A capela da Senhora do Monte é muito pequena e a cadeira de S. Gens está no canto imediatamente à direita de quem entra, por detrás de uma porta em diagonal que está habitualmente fechada à chave. É o sacristão que tem a chave da porta. Eu pedi-lhe para me mostrar a milagrosa cadeira de S. Gens e ele mostrou-ma de muito bom grado.

22 agosto, 2020 02:28  

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