Com a morte não se brinca
Nunca me ocorreu a ideia de fugir do país para escapar à Guerra Colonial. Se eu não fosse à guerra, outro iria na minha vez. Que paz de espírito teria eu, sabendo que o meu substituto poderia ser morto ou ficar mutilado em meu lugar?
A história que vou contar, e que é absolutamente verdadeira, aconteceu em fevereiro de 1973. O capitão da minha companhia tinha-se ido embora e o oficial que o substituiu (o alferes miliciano Arrifana) estava ausente em gozo de licença anual. Encontrava-me eu a comandar a companhia.
Para esse mês de fevereiro de 1973 estava planeada uma operação militar que envolvia duas companhias (a minha e uma outra), com dois grupos de combate cada uma, operação esta cujo comando foi atribuído ao capitão da outra companhia. O objetivo da operação consistia no assalto e destruição de uma base da UPA/FNLA, a base de Quindembe. A base em causa ficava no extremo noroeste da área da responsabilidade da companhia de Zemba, concretamente a leste de Quixico e a sul de Quipedro. Em Quixico estava uma companhia do batalhão de Nambuangongo e em Quipedro encontrava-se instalada uma companhia independente.
O quartel da guerrilha que nós devíamos atacar não era um quartel qualquer. Era uma central, uma das bases mais importantes da UPA/FNLA. Hierarquicamente acima de uma central, no interior de Angola só havia o chamado COBA (Comando Operacional dos Batalhões em Angola), que era o comando supremo da guerrilha da UPA/FNLA em território angolano e que se dizia (e eu acredito) estar situado perto de Zala. As centrais, portanto, eram as bases de estatuto mais elevado que a UPA/FNLA tinha no interior do território, com exceção do próprio COBA. O comandante da central que nós deveríamos atacar era um indivíduo chamado João Damião Batista de Carvalho, a quem chamavam "Homem das Barbas" e de quem o povo não gostava, por ser excessivamente severo na aplicação de castigos, segundo me contaram.
Tendo tomado conhecimento de que eu iria participar nessa operação, procurei informar-me e preparar-me para ela, pois, no caso de acontecer algum azar ao capitão, quem passaria a comandá-la seria eu. Convinha que eu estivesse minimamente preparado para uma tal eventualidade. Para tal fim, consultei mapas, no sentido de determinar possíveis rotas de aproximação ao objetivo e de retirada, e fui ao gabinete do comandante da minha companhia (que naquela altura era provisoriamente o meu próprio gabinete), para consultar as cópias aí guardadas dos relatórios de anteriores operações que tivessem tido lugar na região de Quindembe.
Numa estante existente no gabinete do comandante da companhia havia umas quantas cópias de relatórios antigos de operações, que descreviam os factos passados durante operações que tinham sido efetuadas pelas companhias que nos precederam em Zemba. Todos estes relatórios, sem uma única exceção, caracterizavam-se por uma grande sobriedade e honestidade, relatando os fracassos tanto como os êxitos com igual destaque. Mesmo os relatórios que tinham sido escritos por oficiais do quadro permanente tinham esta característica que, aliás, era exatamente a mesma que apresentavam os da minha companhia, incluindo os relatórios que eu próprio escrevi. Ainda que ninguém, ao nível do comando do batalhão, acreditasse no que escrevíamos, o que é facto é que procuramos sempre contar a verdade, descrevendo o que tinha realmente acontecido durante as operações que comandamos. Nós não estávamos à espera de ganhar medalhas e louvores naquela guerra, não ansiávamos receber beijinhos e abraços do Américo Tomás no 10 de Junho, nem tencionávamos entrar para o quadro permanente. Não tínhamos razão nenhuma para mentir e NÃO MENTÍAMOS.
Como ia dizendo, procurei no gabinete do comandante da minha companhia cópias de relatórios escritos sobre operações que tivessem ocorrido em Quindembe. Para minha surpresa, só encontrei a cópia de um relatório, o qual se referia a uma operação ocorrida muito pouco tempo antes da nossa chegada a Zemba e que tinha sido realizada pelos Comandos. O relatório tinha sido escrito pelo capitão dos Comandos que conduziu a operação. Li o texto com grande interesse e, logo desde o início, fiquei muito surpreendido pelo tom épico em que ele estava escrito. No relatório, o capitão dos Comandos dizia que as suas forças tinham feito trinta por uma linha, mataram que se fartaram, destruíram tudo e mais alguma coisa, arrasaram a base de Quindembe e regressaram a Luanda cobertos de glória. Apesar do tom grandiloquente em que o relatório estava escrito, que destoava de forma gritante com o de todos os outros, eu acreditei nele. Não tinha razões nenhumas para não acreditar. Atribuí o tom épico do relatório à proverbial basófia dos Comandos.
O guia da operação que iríamos realizar ia ser um habitante local chamado Eusébio. Falei com ele. O Eusébio era o melhor guia que nós poderíamos ter para uma operação como aquela. Muito pequeno de corpo, mas extraordinariamente destemido, o Eusébio não só conhecia a região como a palma das suas mãos, mas também percebia de guerrilha, sabia como ninguém como atuava a UPA/FNLA e até já tinha conhecido pessoalmente o comandante da base de Quindembe, o referido Carvalho, o "Homem das Barbas". Disse-me o Eusébio, entre outras coisas, que estava disposto a levar-nos ao objetivo, se era isso o que nós queríamos, mas que esperássemos porrada depois, porque o "Homem das Barbas" não era pessoa para se ficar. E garantiu-me, com absoluta certeza, que a base de Quindembe se mantinha de pé e que o "Homem das Barbas" estava lá. Esta afirmação, feita pelo Eusébio de modo absolutamente categórico, contrariava frontalmente o que estava escrito no relatório do capitão dos Comandos. Decidi esquecer o relatório. O que o capitão dos Comandos escreveu, não foi o relatório de uma operação; foi um filme.
(…)
A progressão das nossas tropas em direção ao objetivo processou-se de modo exatamente contrário ao que se faria se fosse eu o comandante da operação. O capitão estava habituado a fazer operações num terreno bastante aberto e plano, coberto por uma vegetação de savana, em que predominava o capim, e apenas interrompida por florestas-galerias que se estendiam ao longo dos rios e linhas de água. Ora o terreno de Zemba era diferente: muito mais montanhoso e coberto por densíssimas e vastas florestas. Se fosse eu a comandar a operação, procuraria fazer com que progredíssemos dentro das florestas, a fim de que o inimigo não nos detetasse e nós pudéssemos atacar de surpresa ou, pelo menos, sem dar tempo ao inimigo para preparar uma defesa e um contra-ataque em tempo útil. Como foi o capitão que comandou a operação, a nossa progressão foi feita tanto quanto possível a descoberto, através do capim, evitando as florestas. Ora uma coluna de homens avançando a descoberto pelo meio do capim, pelas encostas dos montes acima e abaixo, via-se a quilómetros de distância. Em consequência, fomos descobertos quase desde a primeira hora, pelas sentinelas que a UPA/FNLA tinha colocadas no cimo dos montes.
Além de uma arma automática, com que os guerrilheiros da UPA/FNLA estavam individualmente equipados, e que era habitualmente uma pistola-metralhadora Beretta, igual à que equipava a Infantaria italiana, cada sentinela deste movimento tinha consigo uma espingarda de calibre bastante grande, quase sempre uma Mauser, para disparar tiros de aviso. Um tiro desta espingarda de repetição era muito mais sonoro e ouvia-se muito mais longe do que um tiro de pistola‑metralhadora. Estes tiros de espingarda tinham por fim avisar quem estivesse na região de que nos encontrávamos nas proximidades. Um tiro bastava; quase nunca era disparado mais do que um. Assim, sempre que nós ouvíssemos um tiro isolado no decurso de uma operação, ficávamos logo a saber que tínhamos sido avistados por uma sentinela inimiga.
Durante a nossa progressão em direção a Quindembe, nós fomos ouvindo tiros de aviso das sentinelas da UPA/FNLA. Num dado momento, um tiro à esquerda; dois pares de horas mais tarde, um tiro à direita; depois de mais algumas horas, um tiro à frente; etc. Além de a nossa presença ir sendo revelada a cada tiro, a nossa trajetória ia sendo assinalada, permitindo ao inimigo determinar de onde é que nós vínhamos e para onde é que nós íamos.
Indiferente aos tiros que ia ouvindo, o capitão insistia em fazer-nos progredir por terreno descoberto, à vista de toda a gente. Eu, por minha parte, não me sentia nada confortável com aquela progressão. Enquanto nós avançávamos, os guerrilheiros poderiam estar a preparar-nos uma "comissão de festas" para quando chegássemos ao destino. Eles tinham o tempo todo para o fazer. Só Deus sabia o que nos esperava no fim.
No terceiro dia de operação, o meu grupo de combate avançou à frente de todos, de acordo com o que tinha sido previamente combinado. Ao anoitecer, acampamos a cerca de dois quilómetros do objetivo (…).
A partir de um dado momento, um deslumbrante fenómeno da Natureza fez-me esquecer todas as preocupações e deixou-me maravilhado. Milhares de pirilampos reuniram-se no local onde nos encontrávamos e proporcionaram-nos um espetáculo inesquecível. Um bailado de luzes envolveu-nos completamente naquela noite. Era como se eu estivesse numa nave espacial, rodeado de estrelas por todos os lados. Eu olhava para a esquerda e para a direita e só via estrelas. Olhava para o chão e só via estrelas. Olhava para o céu e via muitíssimas mais estrelas; não era capaz de distinguir as estrelas verdadeiras dos pirilampos. Na noite do mato africano, as estrelas do céu já são incontáveis, mas naquela noite elas foram muitas mais ainda. Assisti a um espetáculo de sonho.
Provavelmente, aquela noite terá sido a noite em que os pirilampos deviam acasalar. Para meu deslumbramento, eles escolheram o local em que nos encontrávamos para o fazer. Mas a orgia não durou sempre. Pouco a pouco, os pirilampos foram desaparecendo e acabamos por ficar a sós com as verdadeiras estrelas, brilhando num céu escuríssimo, sem luar. Regressei à realidade.
A ansiedade que eu sentira, antes do espetáculo dos pirilampos, transformou-se em angústia depois dele, e a angústia em pavor. Comecei a imaginar, por exemplo, que naquele preciso momento poderíamos estar a ser cercados por um numeroso grupo de guerrilheiros, que se preparariam para nos atacar a altas horas da noite. Qualquer restolhada que eu ouvisse, feita por um javali, um macaco ou mesmo por um insignificante rato, parecia-me provocado pela movimentação de pessoas à nossa volta. Entrei em pânico e comecei a tremer… de medo! Pela única vez na minha vida, tremi de medo. Tremi de uma forma completamente descontrolada, como se estivesse com a doença de Parkinson. Por mais que tentasse, não conseguia parar de tremer. Tremi durante alguns minutos, até que o tremor parou por si mesmo.
«Felizmente está escuro como breu e ninguém me viu tremer», pensei. «O que julgaria o pessoal se me visse tremer de medo? Perderia a confiança em mim e então é que estaríamos arrumados». Eu não podia mostrar medo diante dos meus subordinados. A coesão e a disciplina do grupo dependiam vitalmente disso. Como ninguém me viu tremer, continuei a representar o papel do alferes valentão, que sabia sempre o que tinha a fazer, nunca se enganava e raramente tinha dúvidas…
(…)
Primeiro dilema que tive que resolver: iríamos avançar até ao objetivo ou recuar? Achei que já era tarde demais para recuarmos. Já tínhamos avançado demais, já estávamos metidos na boca do lobo e eu tinha como garantido que iríamos levar porrada de qualquer maneira, se não fosse na ida, seria no regresso. «Já que chegamos até aqui, vamos até ao fim e seja o que Deus quiser», decidi. Chamei o guia, dei-lhe conta da minha decisão e ele concordou em nos conduzir ao objetivo. O Eusébio era um homem valente e isso verificou-se logo a seguir.
Andamos poucas dezenas de metros quando nos apareceu uma bifurcação. Dois trilhos apareceram diante de nós: à esquerda, um trilho muito desgastado, mas sem pegadas; à direita, um trilho quase sem desgaste, mas com numerosas marcas de ter sido utilizado recentemente. Perguntei ao Eusébio que trilhos eram aqueles. Respondeu-me que ambos os trilhos conduziam diretamente ao quartel de Quindembe. O da esquerda era um trilho antigo, que deixou de ser usado quando abriram o da direita. Para que não pudesse ser usado por mais ninguém (nomeadamente pelas nossas tropas), os guerrilheiros minaram-no. O trilho da direita não tinha minas, mas podíamos ter a certeza absoluta de que os guerrilheiros estavam lá emboscados, à nossa espera. Se quiséssemos chegar à base, disse ele, seria melhor seguirmos pelo trilho minado.
«E agora? O que é que eu faço?», perguntei-me, angustiado. «Isto equivale a escolher de que maneira é que quero morrer». Refleti mais um pouco e achei que, se o Eusébio (que era o guia e como tal seguiria à frente de todos) achava que conseguia chegar são e salvo ao fim do trilho minado, então nós também seríamos capazes de conseguir. Tomei então aquela que foi, talvez, a decisão mais difícil e arriscada de toda a minha vida: avançar pelo trilho minado.
Avisei o meu pessoal que iríamos avançar por um trilho minado, esperando uma recusa, pelo menos uma resistência, talvez mesmo uma revolta aberta. Mas para minha admiração, ninguém protestou, ninguém resistiu, ninguém resmungou, ninguém se lamentou. E no entanto, numa operação anterior, um camarada já tinha ficado mutilado por ter pisado uma mina. Fiz inúmeras recomendações aos meus homens sobre a forma como deveriam progredir, para evitarem pisar uma mina, e quando dei a ordem para avançar, todos avançaram imediatamente, sem a mais pequena hesitação. Todos, absolutamente todos, soldados, cabos e furriéis; europeus e africanos; todos sem distinção. Todos cerraram os dentes e fizeram-se ao caminho. O bravo furriel Macedo foi o primeiro a avançar.
Senti um orgulho imenso nos meus homens. Quando eu digo que comandei o melhor grupo de combate do mundo, estou mesmo convencido disso. Porque aqueles rapazes tinham sido humilhados nos primeiros tempos, quando o batalhão se formou em Évora, no caso dos europeus, e quando os africanos foram incorporados na companhia, no Grafanil. Eles tinham sido humilhados, porque os outros alferes recusaram incluí-los nos seus pelotões, por os considerarem imprestáveis. Só eu é que aceitei comandá-los, porque não tinha outra escolha. E ali iam os que tinham sido considerados o rebotalho da companhia, que ninguém quis, avançando lenta mas decididamente por um caminho que tinha sido minado, dando uma extraordinária lição de coragem e de determinação! Como as aparências enganam!
Eu também avancei, tomando o lugar que costumava ocupar durante as progressões, que era o quinto ou o sexto da coluna. Eu não podia tomar outro lugar, mais para trás, por muito que o desejasse. Se o tivesse feito, teria mostrado medo perante os meus subordinados, que perderiam a sua confiança em mim. Avancei pé ante pé, com suores frios a escorrerem-me pela cara abaixo, contando os segundos que me pareciam séculos. Procurava colocar os pés em sítios onde não pudesse haver minas. Rocha nua era coisa que não havia naquele trilho, mas havia numerosas raízes, bem duras e bem sólidas, das muitas e grandes árvores que ladeavam o caminho. O problema era que as raízes não eram planas, mas sim muito abauladas, proporcionando um equilíbrio extremamente instável. A qualquer momento, eu podia desequilibrar-me e colocar inadvertidamente um pé num local onde estivesse uma mina escondida. Receava também, cheio de angústia, ouvir a qualquer momento uma explosão provocada por um dos meus subordinados, pelos mesmos motivos, mas tal não aconteceu. Se tivesse acontecido, nunca eu me perdoaria, por mais anos que vivesse, porque fui eu que dei a ordem para avançar por aquele trilho. Nunca mais eu teria paz de espírito para o resto da minha vida.
A certa altura, apareceu no meio do caminho uma cratera de uma mina rebentada, que tinha sido acionada por um animal qualquer. Era a prova de que aquele trilho tinha sido mesmo minado. Aquela mina já tinha rebentado, mas quantas mais haveria naquele trilho, escondidas, à espera de que alguém lhe pusesse um pé em cima? Estranhamente, ao ver o buraco da mina, senti um fugaz momento de alívio e pensei: «Posso pôr os pés com toda a confiança dentro deste buraco, porque aqui já não há mina nenhuma. A que cá estava já rebentou». E fiquei parado uma fração de segundo dentro da cratera, saboreando aquele instante de passageira segurança e ganhando coragem para continuar a seguir em frente. Apareceram-nos mais três ou quatro buracos de minas rebentadas por animais, no caminho que parecia não ter fim. Eu envelheci dezenas de anos em cada minuto que passou.
À medida que íamos avançando, a floresta que nos rodeava foi-se tornando cada vez mais densa. A partir de certa altura, não nos apareceram mais crateras de minas, mas em contrapartida começaram a aparecer-nos bocas-de-lobo. Quatro ou cinco bocas-de-lobo no total. Com estas é que eu não contava, porque o guia não me tinha falado nelas.
Quando os primeiros militares que tinham sido mobilizados para Angola, no princípio da guerra, regressaram no fim da sua comissão, eles falaram na existência de bocas-de-lobo nos caminhos, feitas pela UPA/FNLA. Mas depois disso, nunca mais eu voltei a ouvir falar em bocas-de-lobo. Contudo, mais de dez anos depois do início da guerra, ali estavam elas, as bocas-de-lobo, diante de mim. Afinal a UPA/FNLA ainda as fazia, embora já ninguém falasse nelas.
«Mas afinal que coisas eram essas a que davam o nome de bocas-de-lobo?», poder‑se-á perguntar. As bocas-de-lobo eram armadilhas que consistiam num buraco escavado no chão, com cerca de um metro e meio de profundidade, no fundo do qual havia paus aguçados, espetados verticalmente e com a ponta afiada virada para cima. O buraco era tapado por ramos e folhas, de tal maneira que a sua existência naquele local ficasse disfarçada. Alguma pessoa que inadvertidamente caísse no buraco morria espetada nos paus aguçados lá no fundo. Devia ter uma morte horrível.
Por muitos arrepios que a visão de uma boca-de-lobo nos causasse, as que nos apareceram não constituíram grande motivo de preocupação, felizmente. Foram até muito fáceis de detetar. Duas delas, salvo erro, estavam mesmo destapadas, pois a cobertura de folhas e ramos tinha desabado, deixando o buraco a descoberto. As restantes também foram muito fáceis de descobrir. O chão da selva africana, como era aquela que nós atravessávamos, estava permanentemente húmido ou mesmo molhado e as folhas mortas que se amontoavam no chão apodreciam. Mas as folhas e os ramos que se encontravam a tapar uma boca‑de‑lobo não apodreciam, porque não estavam pousadas em solo húmido. Por baixo delas só havia ar, por causa do buraco, e as folhas e os ramos secavam, em vez de apodrecerem. Sempre que à nossa frente nos aparecia uma mancha de folhas secas no meio do caminho, não havia que enganar: ali estava uma boca-de-lobo. E estava mesmo. Por isso, ninguém caiu numa boca-de-lobo nem correu o risco de cair. Note‑se que eu não estou a descrever isto porque alguém, que esteve em Angola no início da guerra, me contou. Estou a descrever o que eu mesmo vi com os meus próprios olhos. De resto, já tinha visto uma ou duas bocas-de-lobo em operações anteriores.
Quando já estávamos muito perto da base, talvez a uns meros cem metros de distância, o trilho por onde seguíamos reuniu-se ao outro que dele se tinha bifurcado. Mais ou menos nesse local de reencontro dos trilhos havia um posto de observação da UPA/FNLA, que encontramos vazio. O que se via desse posto de observação deixou-me totalmente surpreendido e arrepiado. Nós estávamos no cimo de um monte e lá em baixo via-se… uma fazenda. Por momentos pensei estar vendo o quartel da companhia de Quipedro, mas logo a seguir concluí que não. O quartel deveria ser maior. Deduzi que talvez fosse uma fazenda, mas só muito recentemente é que fiquei a saber que de facto se tratava de uma fazenda.
Em 2017 consegui entrar em contacto com um antigo alferes miliciano da C. Caç. 3482, do B. Caç. 3869, que me informou que o que eu tinha visto do posto de observação do inimigo era a Fazenda Lué. Mais me comunicou que próximo da fazenda havia um destacamento militar, o destacamento do Lué, onde se encontrava aquartelado um pelotão da sua companhia. Eu não consegui ver este destacamento lá do alto, por se encontrar ocultado pelas copas das árvores que cobriam a encosta do monte. Na base do monte corria o rio Lué, que também não era visível lá de cima, mas cuja existência era do meu conhecimento graças à carta militar que trazia.
Daquele posto de observação do inimigo situado no cimo do monte via-se e ouvia-se (claramente visto e claramente ouvido) tudo o que se passava na Fazenda Lué. Viam-se as edificações, viam-se pessoas movimentando-se, enfim, via-se TUDO e ouvia-se TUDO o que lá se passava, embora não se entendesse o que as pessoas diziam. A UPA/FNLA tinha ali um observatório privilegiado sobre aquela fazenda. Se os guerrilheiros quisessem flagelar a fazenda, atacar o destacamento, montar uma emboscada, sabotar a ponte sobre o rio ou colocar uma mina na picada, só tinham que descer a encosta. Mais nada. Impressionante!!!
No centro desta fotografia está o destacamento militar do Lué, tal como era visto a partir da Fazenda Lué. Nesse destacamento encontrava-se instalado um pelotão pertencente à companhia de Quixico. A fazenda, além de ter os seus próprios guardas armados, recebia à noite uma secção vinda do destacamento militar para reforço da sua defesa. A seta assinala a clareira onde provavelmente se localizava o posto de observação da UPA/FNLA referido no texto. A base central de Quindembe encontrar-se-ia um pouco mais para a direita e para trás do local assinalado, escondida pelas árvores. A nossa aproximação à base fez-se pelo lado de lá relativamente a esta fotografia. A serra mais longínqua que se vê em último plano, à esquerda, era por nós chamada "Zemba Turra" e também foi palco de algumas operações feitas por mim (Foto: Mário Ferreira da Silva; eu acrescentei a seta)
Depois de passarmos pelo posto de observação da UPA/FNLA que acabo de referir, chegamos finalmente ao nosso objetivo. Ali estava ela, diante de mim, a base central de Quindembe, também ela vazia e silenciosa como o posto de observação. A base de guerrilheiros que o capitão dos Comandos tinha dito no seu relatório que tinha sido destruída e reduzida a cinzas estava à minha frente… intacta!
(…)
Quando a minha companhia entrou na base, o guia, que continuava comigo, exclamou entusiasmado:
— Esta é a primeira vez, desde o princípio da “confusão” [isto é, da guerra], que a tropa entra aqui dentro. Nunca tropa nenhuma chegou aqui antes.
— Então… E os Comandos? — perguntou alguém.
O guia riu-se e respondeu:
— Os Comandos não vieram aqui. Eu também fui guia deles e quis trazê-los cá, mas o capitão deles não aceitou. O que os Comandos atacaram foi um acampamento que há ali para baixo.
O guia contou então que a população civil que estava no acampamento atacado pelos Comandos foi apanhada de surpresa e fugiu apavorada. Na confusão da fuga, uma criança pequena ficou esquecida para trás. Ficou a chorar sozinha no meio do acampamento. O próprio capitão dos Comandos matou-a. O guia acrescentou, em tom de grande indignação, alguns comentários sobre a atitude do capitão dos Comandos que me abstenho de reproduzir.
Quando eu e a minha companhia entramos finalmente na central, já passava da hora do almoço. A fome apertava e comemos a nossa ração de combate mesmo dentro da própria base do inimigo.
Perguntar-me-ão:
— Como era a base do inimigo?
A base central de Quindembe apresentava as características que eram comuns às restantes bases da UPA/FNLA. A única diferença em relação às outras consistia em ser consideravelmente maior do que elas.
Para começar, poderei dizer que a base de Quindembe era um quartel de guerrilheiros e não um acampamento. Logo, não tinha população civil vivendo no seu interior; os acampamentos é que tinham. Se na base de Quindembe houvesse civis, eu não teria avançado contra ela. Por uma questão de consciência, a minha companhia procurava sempre que possível evitar envolver a população civil na guerra, não atacando os seus acampamentos nem destruindo as suas lavras.
Um aspeto que as bases da guerrilha tinham em comum com os acampamentos consistia no facto de se encontrarem bem escondidas no meio da floresta. Quem estivesse dentro delas e olhasse para cima, não veria sequer uma nesga de céu. Só veria as copas das árvores, que impediam que algum avião que passasse por cima avistasse o que estava cá em baixo.
As bases da guerrilha eram constituídas por um conjunto de cubatas sólidas e bem construídas (e grandes, no caso de Quindembe), dispostas de forma ordenada e regular, de modo a que o conjunto do quartel tomasse a forma de um retângulo ou de um quadrado. No meio, um espaço relativamente amplo e tanto quanto possível desimpedido fazia de parada do quartel. Em rigor, não era bem uma parada, pois havia algumas árvores de grande porte pelo meio, para que com as suas copas tapassem a vista aos aviões. Mas dava para fazer uma formatura e para que o comandante da base pudesse fazer discursos e alocuções aos seus guerrilheiros.
No meio da “parada” ou a um lado dela encontrava-se o “mastro” da bandeira, que na verdade não era um mastro, mas uma árvore também. A bandeira da UPA/FNLA não era içada, mas sim dependurada num pau espetado horizontalmente no tronco da árvore, a uma altura um pouco superior à de um homem.
A limpeza e arrumação das bases da UPA/FNLA era notável. Apesar de elas estarem debaixo de árvores (que têm a “mania” de largar folhas), não se via uma só folha no chão. Todo o recinto das bases era mantido impecavelmente varrido. Além disso, havia canteiros, o que era surpreendente, porque o sol nunca chegava cá abaixo e não podiam crescer flores naqueles canteiros. E de facto não cresciam. Mas os canteiros lá estavam, um em volta da árvore que fazia de “mastro” da bandeira e outros contornando as cubatas e outras construções que por lá houvesse. Quem diria?
Eu não faço esta descrição porque alguém me contou ou porque eu inventei. Fui eu próprio que vi o que acabei de descrever, com estes que a terra há de comer. Vi mesmo, claramente visto, porque estive lá.
Do ponto de vista do espólio encontrado na base, a operação a Quindembe foi um completo fracasso. Como os guerrilheiros tinham vindo a seguir a nossa progressão desde o princípio da operação, eles tiveram tempo de sobra para evacuar a base e retirar de lá as armas, munições, documentos e tudo o mais que nos pudesse interessar. Só lá deixaram trastes velhos e inúteis, como, por exemplo, uma máquina de escrever estragada. Tantos perigos que corremos e tantos sacrifícios que fizemos, para saírmos de lá de mãos a abanar!
Um possível resultado positivo para nós foi o próprio facto de termos lá entrado, o que deve ter tido um efeito psicológico marcante nos guerrilheiros. Desde aquele dia, eles deixaram de poder contar com um lugar seguro onde se pudessem refugiar, num raio de muitos quilómetros. A partir daquele momento, já nem na sua própria central eles poderiam sentir-se tranquilos, porque as nossas tropas também já lá podiam chegar. O Quindembe deixou de ser um “santuário” para a UPA/FNLA.
Quando saímos da base para regressarmos ao nosso quartel, pegamos fogo àquilo tudo, como é evidente. A operação estava terminada e havia que regressar depressa a Zemba, pois as nossas rações de combate estavam nas últimas. Por isso, o capitão decidiu, contra o que recomendava a mais elementar prudência, tomar o caminho mais direto, mais rápido e mais óbvio. Resultado: caímos numa emboscada. A emboscada aconteceu perto das ruínas de uma antiga fazenda, a Fazenda José Luís de Sá, e foi muito rija.
Quando estamos debaixo de fogo, nós perdemos a noção do tempo: os segundos parecem-nos dias e os minutos parecem-nos anos. Mesmo assim, atrevo-me a dizer que esta emboscada não durou muito tempo. Pelo menos, foi esta a impressão com que fiquei. Com efeito, sem que nada o fizesse prever, a dado momento o inimigo abandonou o campo de batalha e fugiu, deixando-nos sozinhos no terreno. O nosso pessoal foi ao local onde os guerrilheiros estiveram emboscados e encontrou sangue no chão. Os guerrilheiros tinham sofrido pelo menos um ferido e terá sido essa a razão pela qual abreviaram a emboscada. Nós, por nossa parte, não sofremos baixas. Pensei: «Esta emboscada foi a vingança do “Homem das Barbas”, por lhe termos dado cabo do quartel». Regressamos a Zemba sem mais novidades.
Comentários: 6
Demorei - estes olhos mancos estendem-me armadilhas a cada palavra - mas acompanhei até ao fim esta interessantíssima viagem pelas suas memórias de combate.
Abraço
Maria João,
Para mim, esta foi a mãe de todas as operações militares que fiz, pois concentrou, nos seus quatro dias de duração, quase tudo o que me poderia acontecer naquela guerra de guerrilhas. O seu trágico resultado final, para cúmulo, afetou-me moralmente muitíssimo. Por mais anos que viva, não poderei nunca esquecê-la. De resto, fiz muitas outras operações além desta, algumas das quais também recordo por uma razão ou por outra. Corri perigo muitas vezes, vi a morte à minha frente algumas vezes, vi pessoas a morrer diante de mim uma vez e em outubro de 1973 estava em Luanda a frequentar as consultas externas de Psiquiatria. Quando digo que fiz uma comissão militar em Angola, as pessoas respondem-me: «Ah, então tiveste sorte! Em Angola quase não havia guerra...»
Afirmar isso é menosprezar os tantos que por lá combateram e por lá deixaram as suas vidas, bem como todos os que lutaram pela libertação de Angola.
A primeira atitude que tomei, assim que tive oportunidade logo a seguir à Revolução dos Cravos, foi reunir os meus soldados e comunicar-lhes duas coisas. Uma foi o meu apoio à Revolução. A outra foi o meu reconhecimento do direito dos angolanos a serem senhores dos seus próprios destinos, incluindo a independência. A partir desse momento, procurei ter para com os meus subordinados uma atitude didática, no sentido de todos respeitarem as opiniões e os sentimentos uns dos outros. Esforcei-me por colocar a tolerância e o respeito mútuo acima de todas as outras considerações.
Duas notas
Primeira: "Quando estamos debaixo de fogo, nós perdemos a noção do tempo"
Segunda: A base central de Quindembe estava mais limpa que agora o bairro em que resido
(gostei do teu escrito
logo, desde o seu inicio)
Rogério, eu nunca gostei da UPA/FNLA, como movimento que cometeu horrendos massacres no norte de Angola em 1961 e foi apoiado pelos americanos e pelo ditador zairense Mobutu Sese Seko. Mas eu não odiava os guerrilheiros desse movimento, muitos dos quais tinham sido recrutados à força entre os angolanos refugiados na República do Zaire, e muito menos odiava a população civil que os apoiava. Nunca odiei ninguém. Mas eu tinha que tomar uma atitude ativa naquela guerra, se quisesse sair dela com vida e se quisesse preservar a vida dos rapazes que comandava e que confiavam em mim. Por paradoxal que pareça, eu tinha que correr riscos, para evitar riscos maiores no futuro. E como isso custava! Quase me custou a integridade psíquica.
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