Apontamentos sobre redes neuronais
A chamada inteligência artificial (IA), de que tanto se tem falado recentemente, não existe no vácuo nem flutua no ciberespaço ou no que lhe quiserem chamar. Ela existe no nosso mundo, que é real, e por isso funciona em máquinas reais, isto é, em gigantescas redes de computadores especializados, que ocupam edifícios e edifícios inteiros, espalhados pelo mundo e cheios de equipamento até ao telhado, e que consomem imensa energia elétrica, apesar da miniaturização conseguida pela indústria de semicondutores.
A intenção que preside ao desenvolvimento da IA consiste em fazer máquinas que emulem por meios eletrónicos o funcionamento do cérebro humano, e até que o ultrapassem, por exemplo na velocidade de "raciocínio". Isto não se consegue com processadores semelhantes aos que até agora têm estado — e continuarão a estar — no "coração" dos nossos computadores, telemóveis, "smart TV" e outros dispositivos digitais (processadores chamados CPU ou "central processing units"), nem mesmo com processadores gráficos (chamados GPU ou "graphics processing units"), mas sim com recurso a redes neuronais artificiais, criadas especificamente para o efeito. As redes neuronais artificiais (há quem lhes chame neurais) são redes de processadores, batizados de "neurónios", que são bastante simples na sua arquitetura interna, mas que são em grande quantidade, os quais comunicam uns com os outros de maneira a formarem uma densa rede de trocas de informações. O que se pretende, ao construir redes neuronais artificiais, é imitar as redes de neurónios que compõem um sistema nervoso biológico, como o dos seres humanos. Porém, existem muitas diferenças.
Os circuitos biológicos presentes no sistema nervoso dos organismos vivos funcionam por meio de fluxos de iões, que são átomos ou moléculas com carga elétrica positiva ou negativa, por terem eletrões a mais ou a menos. Os iões são movimentados de dentro das células para fora e vice-versa, ou então são retidos nas células ou fora delas para utilização ulterior, quando houver oportunidade para isso.
Por seu lado, e tal como o nome indica, a eletrónica, seja ela digital ou analógica, funciona por meio de fluxos de eletrões, que são partículas subatómicas com carga elétrica negativa, que se fazem movimentar de um lado para o outro sob a forma de correntes elétricas, ou então são armazenadas sob a forma de cargas elétricas para ulterior utilização, em dispositivos chamados condensadores, no Brasil capacitores.
Esta comparação entre circuitos biológicos e circuitos eletrónicos, tal como está descrita, é demasiado simplista, é verdade que sim, mas o que importa sublinhar é o que estes circuitos têm em comum: a utilização de cargas elétricas como veículos de processamento e comunicação, independentemente de estas cargas serem iónicas ou eletrónicas.
A célula de base de um sistema nervoso é chamada neurónio. Um feixe de neurónios é um nervo, enquanto um grande emaranhado de neurónios pode ser um cérebro. Os neurónios comunicam uns com os outros através de terminais chamados sinapses.
Quase todas as células, sejam elas nervosas ou não, estão envolvidas por uma membrana, exceto no caso das amibas, que são seres unicelulares sem membrana. A membrana de uma célula protege-a das agressões exteriores, mas não é totalmente impermeável. Possui pequeníssimos poros, através dos quais a célula efetua trocas de iões com o exterior. No caso dos neurónios, concretamente, estes comunicam através de poros existentes nas suas sinapses com as células suas vizinhas, células vizinhas estas que podem ser outros neurónios, podem ser células musculares (a jusante) ou então células sensoriais, que transformam a luz, o som, o paladar, o olfacto, o tacto, etc. em impulsos elétricos (a montante).
Se aproximarmos um dedo de uma chama, por exemplo, as células receptoras da dor que estão no dedo enviam um sinal de alarme, que o sistema nervoso comunica ao cérebro. Este, ao interpretar o sinal recebido como sendo de dor, envia de volta um sinal às células musculares envolvidas no movimento do braço, para que estas retirem imediatamente o dedo da chama. Entretanto, as células olfativas poderão comunicar ao cérebro a sensação de cheiro a carne assada… Enquanto tudo isto acontece, as células do cérebro associadas à memória registam o incidente como tendo sido desagradável (no mínimo), e o cérebro começa a evitar a proximidade do fogo, porque passa a achar que ele é perigoso. O cérebro aprende mais uma lição.
Como se verifica pelo exemplo dado, o órgão principal de um sistema nervoso biológico é o cérebro, que sente, comanda, memoriza, deduz e decide. O cérebro é um emaranhado extremamente complexo de milhares de milhões de neurónios, cada um dos quais possui milhares de sinapses! Tudo dentro do espaço de um crânio! Como se poderá replicar um órgão tão extraordinário num equivalente artificial? Não pode. Ainda por cima, falta considerar outros aspetos que também envolvem o cérebro e que também fazem parte da inteligência humana: os sentimentos, as emoções, a intuição, a criatividade, os afetos, etc. O que se tem tentado fazer, é procurar replicar, por meios eletrónicos, algumas das características dedutivas e indutivas do raciocínio presente num cérebro biológico.
Com vista a emular o funcionamento de um sistema nervoso biológico baseado em processos eletroquímicos, foi inventada a rede neuronal artificial baseada na eletrónica, como já se disse. A principal razão para o uso da eletrónica consiste na extrema miniaturização que a indústria de chips conseguiu atingir, da qual nenhuma outra tecnologia sequer se aproxima. Há outras vantagens para o uso da eletrónica, sendo uma das mais importantes a velocidade de processamento conseguido pelos chips. É incomparavelmente mais rápido processar informação por meios eletrónicos do que por meios iónicos. Por muito poderoso que um sistema nervoso biológico seja — e de facto é — ele é incrivelmente lento no envio e tratamento dos sinais elétricos veiculados por iões. Demoram um tempo considerável as movimentações de iões de dentro para fora duma célula e inversamente, também de um lado de uma sinapse para o outro, e ainda por cima existem fenómenos de despolarização elétrica presentes num tipo de neurónios (chamados "mielínicos") que os inibe de funcionar durante um período de tempo da ordem dos 3 milissegundos após a passagem de um impulso elétrico. Para um sistema eletrónico, 3 milissegundos são uma eternidade.
Os sinais presentes nas células de um sistema nervoso biológico são constituídos por sequências de impulsos elétricos. Todos estes impulsos têm aproximadamente a mesma forma e a mesma amplitude. O interior de um neurónio biológico em repouso encontra-se a uma diferença de potencial, relativamente ao meio envolvente, que é da ordem dos -70 mV (0,07 Volts negativos); diz-se então que a célula está polarizada. Quando passa um impulso pela célula, o interior desta atinge momentaneamente uma diferença de potencial de cerca de +30 mV (0,03 Volts positivos) relativamente ao exterior; então diz-se que a célula ficou despolarizada. Na passagem de -70 mV para +30 mV, a variação total de potencial é da ordem dos 100 mV, que é uma barbaridade, porque a membrana é extremamente fina. De facto, a membrana é sujeita a uma diferença de potencial tão extrema, que esta equivale à aplicação de vários milhares de Volts entre os dois lados de uma folha de papel! Se aplicássemos esta diferença de potencial a uma folha de papel, ela não resistiria, romper-se-ia instantâneamente e o papel acabaria por se desfazer em fumo. Pois uma membrana celular tem características dielétricas (isoladoras) tais, que é capaz de resistir sem se danificar!
A amplitude dos impulsos transmitidos por um neurónio biológico não é importante para a informação por eles veiculada. O que é importante é a frequência dos impulsos, isto é, a quantidade de impulsos que passam pelo neurónio num determinado período de tempo. Forneçamos um exemplo do que acontece: se quisermos agarrar um objeto com força, o nosso cérebro irá emitir uma sequência de impulsos dirigida aos músculos da nossa mão, para que estes fiquem contraídos e mantenham o objeto agarrado; a partir do momento em que o cérebro deixar de emitir impulsos aos músculos, estes ficam relaxados e o objeto cai ao chão. Outro exemplo: um clarão luminoso irá levar o nervo ótico a enviar para o cérebro uma sequência de impulsos; o cérebro entenderá então que está a ver um clarão; assim que o nervo ótico deixar de enviar impulsos, o cérebro perceberá que se restabeleceu a escuridão.
Para os sinais usados nas redes neuronais artificiais, por outro lado, é a amplitude dos sinais que é importante e não a sua frequência. Na generalidade dos sistemas eletrónicos digitais, a amplitude dos sinais só pode tomar o valor 0 (habitualmente correspondente a 0 Volts) e o valor 1 (habitualmente correspondente à tensão com que o circuito é alimentado, que pode ser de 3V, 2V, 5V ou outro valor). Nas redes neuronais artificiais, porém, os sinais veiculados através das sinapses (que ligam dois neurónios de diferentes camadas) não só podem tomar os valores 0 e 1, como podem tomar qualquer valor intermédio, por exemplo 0,7. Este valor, a que se convencionou chamar "peso", é um valor atribuído pelo próprio neurónio a cada um dos sinais que receber. Quanto maior for o peso, maior será a importância do sinal. Se o peso atribuído for bastante pequeno, isso quererá dizer que o sinal terá uma influência desprezível sobre o resultado e por isso poderá ser descartado. Um sinal que estiver abaixo de um dado limiar, portanto, passa automaticamente a zero e não conta para nada.
De um modo geral e como ponto de partida, os neurónios da camada de entrada só poderão tomar os valores 0 ou 1 (que podem ser arbitrários ou não), os quais virão a ser modificados a jusante para valores intermédios com a atribuição de pesos. Os sinais presentes nos neurónios da camada de saída também são arredondados para 0 ou 1, conforme estiverem abaixo ou acima de um dado limiar, quanto mais não seja porque a rede neuronal está inserida num sistema digital.
Antes de poderem desempenhar uma função útil, as redes neuronais artificiais passam por uma série de sessões de treinos, até que os seus resultados correspondam ao que se pretende delas, como o reconhecimento de padrões, por exemplo. No fim dos treinos, os neurónios memorizam os valores dos pesos que passarão a atribuir a cada sinapse. Não vamos entrar em pormenores sobre o modo como a rede chegou a estes resultados (em rigor, ninguém consegue saber o que realmente se passa nas camadas escondidas), nem sobre os tipos de arquitetura que uma rede pode tomar, pois tudo depende da utilização que se quiser fazer da rede. Dizemos apenas que, após as sessões de treinos, a rede passou a "saber" como deverá processar a informação nova que a partir daí lhe for apresentada.
Nós vivemos na era da informação. Os sistemas de inteligência artificial que atualmente existem são mastodônticas redes neuronais. Além disso, memorizam uma aterradora quantidade de dados, que são imagens (fixas e em movimento), textos, sons e tudo o mais que for considerado potencialmente útil ou vantajoso do ponto de vista económico. Tudo isto é reunido e memorizado em data centres, com vista a ser trabalhado pela IA, com resultados que são tão surpreendentes que até parecem milagre. É o que fazem o popular ChatGPT e os sistemas de IA da Google, da Microsoft, da Apple, da Meta, etc. Estamos a falar de sistemas que enchem edifícios e edifícios inteiros de equipamento e que consomem uma quantidade astronómica de energia. Só para dar uma ideia do gigantismo que a IA já atingiu, lembremos que a Google pretende construir pequenas centrais nucleares, só para alimentar a sua insaciável IA! Este crescimento não pode continuar indefinidamente. Um limite terá que aparecer mais tarde ou mais cedo, dê lá por onde der.
A inteligência artificial está na moda, sem dúvida. As pessoas recorrem a ela para os mais diversos fins e sentem-se satisfeitíssimas com os resultado obtidos. A presente euforia em relação à IA leva-as a julgar que estão na presença de uma forma de inteligência infalível e que tem respostas para tudo, porque acham que os computadores não erram. Puro engano. A IA é, pelo menos, tão falível como os seres humanos que a criaram. Ela até sofre, por vezes, de "alucinações" e debita respostas disparatadas, sem pés nem cabeça. Não se pode confiar cegamente na inteligência artificial. É preciso manter um espírito crítico, sempre e em todas as circunstâncias. No dia em que a humanidade deixar de pensar, porque julga que as máquinas pensam melhor do que ela, transformar-se-á numa imensa multidão de seres estúpidos, sem moral, sem honra e sem dignidade. Eu sei que isso não vai acontecer, mas... mais vale prevenir do que remediar.
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