07 julho 2025

A Bela-Menina


(Desenho de De Knutseljuf Ede)


Era um homem; vivia numa cidade e trazia navegações no mar, e depois foi ele e deu em decadência por se lhe perderem as navegações. Ele teve o seu pesar e não podia viver com aquela decência com que vivia no povoado e tinha umas terrinhas na aldeia e disse-lhes para a mulher e para as filhas: «Não temos remédio senão irmos para as nossas terrinhas; se vivemos com menos decência que até aqui somos pregoados dos nossos inimigos.»

A mulher e uma filha aceitaram, mas as outras duas filhas começaram a chorar muito. E depois foram. A que tinha ido de sua vontade era a mais nova e chamava-se Bela‑Menina; cantava muito e era a que cozinhava e ia buscar erva para o gado, de pés descalços; as outras metiam-se no quarto e não faziam senão chorar. Quando o pai ia para alguma parte, as mais velhas sempre lhe pediam que lhes trouxesse alguma cousa e a mais nova não lhe pedia nada. Vai nisto veio-lhe uma carta dum amigo dizendo que as navegações que vinham aí, que tiveram notícia e que fosse vê-las.

O homem caminhou mais um criado saber das tais navegações; quando saiu, disseram as suas filhas mais velhas que se as navegações fossem as dele lhes levasse algumas cousas que lhe declararam. E ele disse à mais nova. «Ora todas me pedem que lhes traga alguma cousa, só tu não me pedes nada?» «Vou pedir-lhe tambem uma cousa; onde o meu pai vir o mais belo jardim, traga me a mais bela flor que lá houver». O pai foi e chegou a uma cidade e reconheceu que as navegações não eram dele e foi‑se embora com a bolsa vazia. Chegou a um monte e anouteceu-lhe; ele viu uma luz e dirigiu-se para ela a ver se encontrava quem o acolhesse. Chegou lá e viu uma casa grande e estropeou à porta; não lhe falaram; tornou a estropear; não lhe falaram. E disse ao moço: «Vai aí por o portal de baixo ver se vês alguém». O moço foi e voltou: «Vejo lá muitas luzes dentro e cavalos a comer e penso para lhe botar; mas não vejo ninguém».

Então o homem mandou meter o cavalo na cavalhariça e entraram para a cozinha. Acharam lá que comer e como a fome não era pequena, foram comendo muito. E nisto aí vem por essa casa adiante uma cousa fazendo um grande arruído, assim como umas cadeias que vinham a rastos pela casa adiante e depois chegou ao pé deles um bicho de rastos e disse-lhes: «Boas noites». E eles puseram-se a pé com medo, e disseram-lhe: «Nós viemos aqui por não acharmos abrigo nem que comer noutra parte; mas não vimos fazer mal a ninguém». «Deixai-vos estar e comei». Demorou-se um pouco o bicho e disse-lhes: «Ora ide-vos deitar que eu tambem cá vou para o meu curral». E começou-se a arrastar pela cozinha e foi. Ao outro dia o homem foi ao jardim que era o mais belo que tinha visto e disse: «Já que não posso levar nada para as minhas filhas mais velhas, quero ao menos levar a flor para a Bela‑Menina…» Estava a cortar a flor e nisto o bicho salta-lhe: «Ah ladrão! Depois de t’eu acolher em minha casa, tu vens-me colher o meu sustento, que eu não me sustento senão em rosas». E ele disse: «Eu fiz mal, fiz; mas eu tenho lá uma filha que me pediu que lhe levasse a mais bela flor que eu visse na viagem, e não podendo levar nada às outras filhas, queria ao menos levar a flor; mas se a quereis ela aí fica». «Não, levai-a e se me trouxerdes cá essa filha, ficais ricos». O homem caminhou e chegou a casa muito apaixonado por não trazer nada às outras filhas e não achar as navegações e pegou na flor e deu-a à Bela‑Menina.

A filha assim que viu a flor disse: «Oh que bela flor! Onde a achou meu pai?» O pai contou-lhe o que vira e a filha disse: «Oh meu pai eu quero ir ver». «Olha que o bicho fala e disse também que te queria ver». «Pois vamos». E foram. A filha assim que viu o tal bicho disse: «Oh pai eu quero cá ficar com este bicho, que ele é muito bonito». O pai teve a sua pena, mas deixou-a. Passado algum tempo, ela disse: «Oh meu bichinho! Tu não me deixas ir ver os meus pais?» E ele disse-lhe: «Não; tu não vais lá por ora; teu pai vem cá». O pai veio e disse ao bicho: «Eu queria levar a rapariga». «Não me leves daqui a rapariga, senão eu morro e tu vai ali àquela porta e abre-a e leva dali a riqueza que tu quiseres e casa as tuas filhas». O homem que mais quis?

Um dia o bicho disse à Bela‑Menina: «A tua irmã mais velha lá vem de se receber; tu queres vê-la?» «Quero». «Vai ali e abre aquela porta». Ela foi e viu vir a irmã com o noivo e os pais. «Agora deixa-me ir ver o meu cunhado». «Eu deixava, deixava; mas tu não tornas». «Torno; dá-me só três dias que eu em dia e meio chego lá e torno cá noutro dia e meio». «Se não vieres nestes três dias, quando voltares achas-me morto». Ela foi; no fim dos três dias ela veio, mas tardou mais um pouquito que os três dias; ela foi ao jardim e viu-o deitado como morto. Chegou ao pé dele: «Ai meu bichinho!» E começou a chorar. Ele caiu e ela disse: «Coitadinho está morto; vou dar-lhe um beijinho.» E deu-lhe um beijo, mas o bicho fez-se num belo rapaz. Era um príncipe encantado que ali estava e que casou com ela.



Conto popular recolhido em Ourilhe, Celorico de Basto, por Adolfo Coelho (1847-1919)

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Li o conto todo sempre convicta de que o bicho era um sapo, pois foi assim que este conto - ou outro muito semelhante - chegou aos meus ouvidos de criança... Mas sapo, ou não, o bicho lá se metamorfoseou num garboso mancebo e casou com a bela menina cujo retrato
de De Knutseljuf Ede muito me agradou.

boa semana e um abraço, Fernando!

07 julho, 2025 14:23  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Há muitos anos (tantos, que já não me lembro de quantos é que foram) li algures (certamente num livro de Antropologia ou de Etnologia) que existe um conjunto de padrões básicos que enformam os contos da tradição oral de todos os povos do mundo, independentemente da sua cultura, cor de pele, localização geográfica, etc. Estes padrões corresponderiam a contos primordiais, surgidos há muitos milhares de anos, ainda antes de a humanidade se espalhar pelo mundo, que foram sendo adaptados e alterados ao longo dos tempos de acordo com as vivências próprias de cada povo e de cada cultura, sem no entanto perderem totalmente as suas milenares características originais. Este padrão em concreto, de quebra de um encanto com um beijo, trocado entre um princípe e uma rapariga humilde ou entre uma princesa e um rapaz humilde, seria um deles e encontra-se reproduzido sob mil e uma formas: a Bela e o Monstro, Branca de Neve, a Bela Adormecida, etc. etc. E no fim, acabam todos por se casar e por ser muito felizes…

Boa semana, Maria João!

09 julho, 2025 16:53  

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