As percussionistas
(Foto: José Alberto Pires) |
Eu conheço esta fotografia quase desde que me conheço. Ela e mais algumas, de características semelhantes, fazem parte das recordações que eu tenho da minha mais remota infância, passada aqui no Porto. Não consigo lembrar-me onde as vi, só sei que as vi diversas vezes. Tantos anos depois, para meu espanto, voltei a encontrar esta fotografia, agora na Internet. Reconheci-a imediatamente.
A imagem retrata duas jovens tocadoras de tambor pertencentes à etnia Humbi, do grupo etno-linguístico Nyaneka-Humbi, que vive na província do Cunene, no sul de Angola.
Repare-se na boca da tocadora que está em primeiro plano. Parece que lhe falta um dente, ou mesmo dois, mas não falta. A verdade é que no maxilar superior, pelo menos, não lhe deve faltar dente nenhum. A faltarem-lhe dentes, serão dois incisivos inferiores, não superiores. O que aconteceu foi que os incisivos superiores do meio foram parcialmente limados, o que é uma prática tradicional entre as mulheres de algumas etnias do sul de Angola. A limagem dos incisivos é feita obliquamente, de modo a que eles fiquem com um formato triangular e apresentem um V invertido no meio da dentição. É este V que se observa na boca da tocadora.
Além de se fazer a limagem dos incisivos superiores, tradicionalmente também se arrancam muitas vezes os dois incisivos inferiores do meio. Na fotografia não se consegue ver se a moça os tem ou não.
Nunca encontrei uma explicação cabal para esta prática, a não ser uma razão de ordem puramente estética. Ora esta explicação não me convence. Os camponeses angolanos nunca fazem uma coisa só porque "fica bonito". Existe sempre uma razão para tudo quanto fazem, seja ela de ordem material ou prática, seja ela de ordem espiritual ou sobrenatural. Um costume tão doloroso como é este, de extrair e limar dentes, tem que ter uma explicação. Eu é que não sei qual é.
De resto e para que não fiquem dúvidas a este respeito, os camponeses angolanos são extremamente cuidadosos com os seus dentes. A higiene oral é um assunto que eles levam muito a sério. Não havendo escovas e pastas de dentes no mato, os camponeses limpam os seus dentes esfregando-os com o topo de um pauzinho de junco, o qual, com o uso, fica com um conjunto de pêlos curtos muito finos e muito sedosos na sua ponta, como os de uma escova muito pequena. Este pau é que é a sua escova de dentes, que eles usam sempre depois das refeições, para retirarem meticulosamente os restos de comida dos seus dentes, um a um, assim como dos interstícios.
Um camponês angolano pode não trazer mais nada consigo, mas traz sempre um pauzinho de junco, para onde quer que vá. Do pauzinho é que ele não prescinde. Resulta daqui que, de uma maneira geral, em Angola, os camponeses apresentam a sua dentição em muito melhor estado do que os citadinos.
Comentários: 3
isso me interessa muito. estudo etnomusicologia e ando fascinada por percussão.
poderias me passar mais textos???
gostei do blog. voltarei sempre.
Lamento muito, cara Janaína, mas não tenho textos para lhe passar sobre a percussão ou a etnomusicologia em geral. A única coisa que lhe posso passar é um par de links relativos a Angola. O primeiro tem uma descrição de diversos instrumentos angolanos: http://www.sanzalangola.com/etno040.php
O segundo link dá acesso a três muito curtos videos gravados no Leste de Angola: http://www.tucokwe.org/cultura/recursos/arquivos/colecoes_especiais.html
Recomendo-lhe, sobretudo, que veja o primeiro video, que tem uma "força" colossal; o corpo suado do tocador de cuíca e o ritmo frenético que ele acompanha são África em estado puro.
Dê também uma volta por todo o site http://www.tucokwe.org/, para ficar a conhecer um pouco de uma das mais ricas culturas de Angola, a cultura Cokwe (a letra C lê-se, aproximadamente, TCH), do Leste do país.
Como complemento ao artigo original e a propósito da existência de mulheres com dentes limados entre alguns povos do sul de Angola, nesta fotografia de uma kuvale (mucubal) podem-se ver claramente os dentes incisivos superiores limados em diagonal e formando um V invertido, de acordo com a tradição.
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