Angola, país da Sagrada Esperança
OUTRAS MARGENS DA MESMA LÍNGUA
Depois de Língua conquistadora, a Língua conquistada virou raiz reprodutora - arma e fogo artificial; embrião e simultânea gravidez.
E é sabido pelos mais-velhos que uma Língua grávida pode parir culturas, cores novas e contornos imprevistos em pessoas humanas. E todas as grávidas levadas, e todos os séculos extraídos e a terra sangrando em lágrimas de saudade, e todos os navios idos haviam de levar, além de fomes e músculos, sementes de uma flor mestiça com condimentos de diferença e criativa ramagem. Na fogueira do tempo, as chamas cercaram o lacrau, o lacrau picou o próprio corpo, e o veneno circulou feito febre nova, nova temperatura, temperatura de uma nova errância.
(...)
Porque a História também dá golpes num corpo linguístico que, lá longe, é a sombra de uma mesma imagem. As investidas políticas, e as de letras, e as sociais, e as mundanas, e as imprevistas, numa dança alargada - e mesmo que controlada - libertam-se das correntes pré-concebidas e o inesperado vence. O Kinaxixi com as crianças e os pássaros luandinizados, vencem; um santo de pessoa como o Arnaldo Santos vence; o Pepe solta um cão entre os caluandas e o cão morde a realidade; assim o cão do Honwana tomba mas a Isaura segue nos nossos sonhos de criança; as crianças do Manuel Rui, depois da fogueira e das estrelas do povo, só querem ser ondas; as mumuílas fazem transumância num poema da Paula; os olhos do Mia brilham à passagem dos flamingos e o leite de cabra lá do Sul se entorna meio azedo nas palavras do Ruy Duarte de Carvalho. E mesmo assim ficam nomes por celebrar.
A Língua, à velha maneira de Brecht, retira passividade às margens e intimida o rio a ser mais plural; o rio que corria estreito e manso, agora caudaloso faz uso de uma rebeldia saudável. Porque a natureza da água (da cultura) é mover-se, descendo o vale ou trepando a montanha, em luta de vaivém ternurento com a vã pressão dos homens. E se a margem toca o rio, o rio beija a margem numa dúvida aquática sem limite de exactidão.
As Línguas faladas e escritas, e as sonhadas, e as censuradas, nunca foram pertença de ninguém. Afinal, o maleável não pode ser amarrado, e à força de tanto contacto, o original fez da sombra verdade, e o resto também.
(...)
Nesse refluxo musical vindo de outras margens, há uma coloração que no tempo se espalha devolvendo à Língua uma faceta adequada para enfrentar futuros.
À mistura estão as pessoas - que são as margens da cultura, e os destinos da Língua revistos por aqueles que a manejam como utensílio quotidiano. Que esta linguagem seja, pois, ferramenta e prazer, veículo seguro mas maleável; que as gerações vindouras nela vejam molde aberto para memória e labor criativo. Porque bonitas são as Línguas depois de manejadas e celebradas pelas pessoas.
(Ondjaki, escritor e artista angolano; trechos de uma comunicação lida na conferência "A Língua Portuguesa: Presente e Futuro", realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, dias 6 e 7 de Dezembro de 2004, em Lisboa.)
Música tradicional dos Tucokwe (Quiocos), do Leste de Angola (fragmento)
Cântico religioso da Igreja Metodista, Luanda
Mona Ki Ngixisa, por Bonga
Comentários: 11
um post maravilhoso... gosto muito da obra de Ondjaki, embora não a conheça na totalidade... amei "O assobiador"... e linda é também a bailarina amarela...
mais uma vez, prova de bom gosto...
Inominável, não sei se já reparou que no seu próprio blog tem um link para o blog da bailarina amarela... Ela também mantém, em parceria com Tony Araújo, o sítio Tucokwe.org, que é dedicado a um dos povos culturalmente mais ricos de Angola (talvez o mais rico de todos): os Tucokwe, ou Quiocos como são chamados em português.
De Ondjaki, li há cerca de três meses o seu livro de contos "E se Amanhã o Medo". Agora estou curioso sobre o filme que ele fez com Kiluanje Liberdade, chamado "Oxalá Cresçam Pitangas", salvo erro, mas duvido que o filme venha a ser exibido aqui em Portugal no circuito comercial. Os cinemas portugueses estão completamente dependentes da indústria cinematográfica de Hollywood e é raríssimo passarem filmes que não sejam dos States. Talvez só se possa ver o filme em círculos restritos, como cineclubes e outras agremiações.
Caros amigos, a "bailarina amarela", Ana Clara Guerra Marques acaba de vencer em Angola o Prémio Nacional de Cultura e Artes edição de 2006, na modalidade Dança.
Embora tardio, porque o nosso país é assim com alguns preconceitos, reconheceram o seu trabalho.
Estamos orgulhosos!
Por desejo de sonho, saudade de onde nunca estive mas onde de algum modo apareci (os meus pais conheceram-se em Angola), fico sempre emocionalmente agarrada a esta cujo cheiro já me contaram e nunca mais me saiu das narinas...
João P. Matos, fico-lhe muito agradecido pela informação. É bom ver reconhecidos os méritos de quem merece.
Inominável, Angola tem vários cheiros que são inesquecíveis, mas é o cheiro das fantásticas matas angolanas que mais sinto ainda hoje.
Denudado,
Caso queira aproveitar a oportunidade de visionar o doc "Oxalá Cresçam Pitangas" esteja em Lisboa, no Cinema S.Jorge no próximo Domingo 26 de Novembro. O Doc vai ser re-exibido no âmbito do Festival de Cinema Africano:
http://outrasrotas.blogspot.com/2006/11/kanema.html#links
Eu já vi e vou voltar a ver. Imperdível! E se os circuitos comerciais pegarem nele, sinto que os autores (Ondjaki e Kiluanje) vão fazer uma edição de autor!
Um abraço!
P.s. Vejo que já foram dados os merecidos créditos ao Tony Araújo! ;-}}}
Cara Sensia,
Já lhe fica mal essa inveja mesquinha que a move contra a bailarina em qustão. Disfarce melhor pois nota-se bem o despeito relativamente a alguém que tanto quanto me parece não lhe passa cartão, pois se calhar nem sabe que você existe.
Seria interessante colocar-se no seu lugar de meditação e falar da cultura angolana apenas quando souber e não enquanto pessoa retornada de Angola que olha para o país com um romantismo demagogo.
Amiga Sensia, parece-me que não vou poder ver o filme, pelo menos desta vez. Moro no Porto e tenho compromissos familiares para o fim-de-semana. Os compromissos, enfim, talvez possam ser adiados, mas o facto de o filme ser exibido às 19 horas de domingo é um obstáculo. Mal acabasse a sessão teria que vir "a correr" para o Porto, pois no dia seguinte tenho que me levantar muito cedo para ir trabalhar. Se ao menos o filme fosse exibido no sábado, iria e aproveitaria o resto do fim-de-semana para ver outras coisas em Lisboa. Seja como for, fico-lhe muito agradecido pela recomendação.
Senhor Bruno, muito me espanta este seu ataque pessoal dirigido à Sensia, que é tanto mais descabido quanto ele é feito a uma pessoa que não fez a mínima referência à bailarina!!! Quero que saiba que me desagradou profundamente este seu ataque a uma pessoa que muito prezo, e que ainda por cima é feito no meu blog pessoal.
Amigo Denudado.
Tem toda a razão e aqui lhe peço as minhas desculpas.
Apenas eu sei bem quem é essa senhora e não sempre tenho paciência para os seus achaques isotéricos e histerismos sobre a África exótica.
Enfim... de facto coisas minhas e de quem a conhece bem e às crises dos quarentas.
Uma vez mais as minhas desculpas.
Caro Bruno, sinto que estou involuntariamente metido numa disputa que não me diz respeito. Se não se importa, vou continuar a dialogar com essa senhora, pelo menos enquanto ela o desejar. Não tenho a mínima razão de queixa da Sensia. Os comentários dela sempre foram de uma correcção extrema, reflectindo uma paixão pela terra que a viu nascer e onde ela passou os primeiros e, certamente, os mais felizes anos da sua vida.
Se o Bruno entender também comentar no meu blog, farei de conta que este incidente não aconteceu e terei muito gosto em que o faça.
Car@ Brun@,
Lamento muito que alguém que eu não conheço e com quem nunca me cruzei quer no ciberespaço como em qualquer outro espaço (a não ser que o seu nome seja outro que não Brun@) se me dirija e fale de mim de uma forma tão despropositadamente ácida quanto em delírio. Apenas lhe posso recomendar que em caso de persistência ou agravamento dos sintomas consulte o seu médico ou farmacêutico ou...o seu Kimbanda!
Caro Denudado,
Agradeço as suas palavras de apreço e justas no que à minha atitude se refere enquanto visita do seu blog. Aliás essa é a minha atitude em qualquer outro lugar em que me mova. Não serão brun@s que me demoverão!
Um abraço!
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