11 novembro 2006

Angola, país da Sagrada Esperança

Quedas de KalandulaQuedas de Kalandula (Foto: Nuno)


OUTRAS MARGENS DA MESMA LÍNGUA

Depois de Língua conquistadora, a Língua conquistada virou raiz reprodutora - arma e fogo artificial; embrião e simultânea gravidez.

E é sabido pelos mais-velhos que uma Língua grávida pode parir culturas, cores novas e contornos imprevistos em pessoas humanas. E todas as grávidas levadas, e todos os séculos extraídos e a terra sangrando em lágrimas de saudade, e todos os navios idos haviam de levar, além de fomes e músculos, sementes de uma flor mestiça com condimentos de diferença e criativa ramagem. Na fogueira do tempo, as chamas cercaram o lacrau, o lacrau picou o próprio corpo, e o veneno circulou feito febre nova, nova temperatura, temperatura de uma nova errância.

(...)

MumwilaPorque a História também dá golpes num corpo linguístico que, lá longe, é a sombra de uma mesma imagem. As investidas políticas, e as de letras, e as sociais, e as mundanas, e as imprevistas, numa dança alargada - e mesmo que controlada - libertam-se das correntes pré-concebidas e o inesperado vence. O Kinaxixi com as crianças e os pássaros luandinizados, vencem; um santo de pessoa como o Arnaldo Santos vence; o Pepe solta um cão entre os caluandas e o cão morde a realidade; assim o cão do Honwana tomba mas a Isaura segue nos nossos sonhos de criança; as crianças do Manuel Rui, depois da fogueira e das estrelas do povo, só querem ser ondas; as mumuílas fazem transumância num poema da Paula; os olhos do Mia brilham à passagem dos flamingos e o leite de cabra lá do Sul se entorna meio azedo nas palavras do Ruy Duarte de Carvalho. E mesmo assim ficam nomes por celebrar.

A Língua, à velha maneira de Brecht, retira passividade às margens e intimida o rio a ser mais plural; o rio que corria estreito e manso, agora caudaloso faz uso de uma rebeldia saudável. Porque a natureza da água (da cultura) é mover-se, descendo o vale ou trepando a montanha, em luta de vaivém ternurento com a vã pressão dos homens. E se a margem toca o rio, o rio beija a margem numa dúvida aquática sem limite de exactidão.

As Línguas faladas e escritas, e as sonhadas, e as censuradas, nunca foram pertença de ninguém. Afinal, o maleável não pode ser amarrado, e à força de tanto contacto, o original fez da sombra verdade, e o resto também.

(...)

Nesse refluxo musical vindo de outras margens, há uma coloração que no tempo se espalha devolvendo à Língua uma faceta adequada para enfrentar futuros.

À mistura estão as pessoas - que são as margens da cultura, e os destinos da Língua revistos por aqueles que a manejam como utensílio quotidiano. Que esta linguagem seja, pois, ferramenta e prazer, veículo seguro mas maleável; que as gerações vindouras nela vejam molde aberto para memória e labor criativo. Porque bonitas são as Línguas depois de manejadas e celebradas pelas pessoas.

(Ondjaki, escritor e artista angolano; trechos de uma comunicação lida na conferência "A Língua Portuguesa: Presente e Futuro", realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, dias 6 e 7 de Dezembro de 2004, em Lisboa.)


Música tradicional dos Tucokwe (Quiocos), do Leste de Angola (fragmento)

Cântico religioso da Igreja Metodista, Luanda

Mona Ki Ngixisa, por Bonga


Ana Clara Guerra Marques, bailarina e coreógrafa angolana (Foto: Rui Tavares)

Comentários: 11

Blogger inominável escreveu...

um post maravilhoso... gosto muito da obra de Ondjaki, embora não a conheça na totalidade... amei "O assobiador"... e linda é também a bailarina amarela...

mais uma vez, prova de bom gosto...

11 novembro, 2006 15:27  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Inominável, não sei se já reparou que no seu próprio blog tem um link para o blog da bailarina amarela... Ela também mantém, em parceria com Tony Araújo, o sítio Tucokwe.org, que é dedicado a um dos povos culturalmente mais ricos de Angola (talvez o mais rico de todos): os Tucokwe, ou Quiocos como são chamados em português.

De Ondjaki, li há cerca de três meses o seu livro de contos "E se Amanhã o Medo". Agora estou curioso sobre o filme que ele fez com Kiluanje Liberdade, chamado "Oxalá Cresçam Pitangas", salvo erro, mas duvido que o filme venha a ser exibido aqui em Portugal no circuito comercial. Os cinemas portugueses estão completamente dependentes da indústria cinematográfica de Hollywood e é raríssimo passarem filmes que não sejam dos States. Talvez só se possa ver o filme em círculos restritos, como cineclubes e outras agremiações.

12 novembro, 2006 00:49  
Anonymous Anónimo escreveu...

Caros amigos, a "bailarina amarela", Ana Clara Guerra Marques acaba de vencer em Angola o Prémio Nacional de Cultura e Artes edição de 2006, na modalidade Dança.
Embora tardio, porque o nosso país é assim com alguns preconceitos, reconheceram o seu trabalho.
Estamos orgulhosos!

15 novembro, 2006 16:31  
Blogger inominável escreveu...

Por desejo de sonho, saudade de onde nunca estive mas onde de algum modo apareci (os meus pais conheceram-se em Angola), fico sempre emocionalmente agarrada a esta cujo cheiro já me contaram e nunca mais me saiu das narinas...

15 novembro, 2006 23:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

João P. Matos, fico-lhe muito agradecido pela informação. É bom ver reconhecidos os méritos de quem merece.

Inominável, Angola tem vários cheiros que são inesquecíveis, mas é o cheiro das fantásticas matas angolanas que mais sinto ainda hoje.

16 novembro, 2006 00:37  
Blogger ZENsia escreveu...

Denudado,

Caso queira aproveitar a oportunidade de visionar o doc "Oxalá Cresçam Pitangas" esteja em Lisboa, no Cinema S.Jorge no próximo Domingo 26 de Novembro. O Doc vai ser re-exibido no âmbito do Festival de Cinema Africano:

http://outrasrotas.blogspot.com/2006/11/kanema.html#links

Eu já vi e vou voltar a ver. Imperdível! E se os circuitos comerciais pegarem nele, sinto que os autores (Ondjaki e Kiluanje) vão fazer uma edição de autor!

Um abraço!

P.s. Vejo que já foram dados os merecidos créditos ao Tony Araújo! ;-}}}

19 novembro, 2006 12:30  
Anonymous Anónimo escreveu...

Cara Sensia,
Já lhe fica mal essa inveja mesquinha que a move contra a bailarina em qustão. Disfarce melhor pois nota-se bem o despeito relativamente a alguém que tanto quanto me parece não lhe passa cartão, pois se calhar nem sabe que você existe.
Seria interessante colocar-se no seu lugar de meditação e falar da cultura angolana apenas quando souber e não enquanto pessoa retornada de Angola que olha para o país com um romantismo demagogo.

20 novembro, 2006 14:50  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amiga Sensia, parece-me que não vou poder ver o filme, pelo menos desta vez. Moro no Porto e tenho compromissos familiares para o fim-de-semana. Os compromissos, enfim, talvez possam ser adiados, mas o facto de o filme ser exibido às 19 horas de domingo é um obstáculo. Mal acabasse a sessão teria que vir "a correr" para o Porto, pois no dia seguinte tenho que me levantar muito cedo para ir trabalhar. Se ao menos o filme fosse exibido no sábado, iria e aproveitaria o resto do fim-de-semana para ver outras coisas em Lisboa. Seja como for, fico-lhe muito agradecido pela recomendação.

Senhor Bruno, muito me espanta este seu ataque pessoal dirigido à Sensia, que é tanto mais descabido quanto ele é feito a uma pessoa que não fez a mínima referência à bailarina!!! Quero que saiba que me desagradou profundamente este seu ataque a uma pessoa que muito prezo, e que ainda por cima é feito no meu blog pessoal.

20 novembro, 2006 22:55  
Anonymous Anónimo escreveu...

Amigo Denudado.
Tem toda a razão e aqui lhe peço as minhas desculpas.
Apenas eu sei bem quem é essa senhora e não sempre tenho paciência para os seus achaques isotéricos e histerismos sobre a África exótica.
Enfim... de facto coisas minhas e de quem a conhece bem e às crises dos quarentas.
Uma vez mais as minhas desculpas.

22 novembro, 2006 19:04  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro Bruno, sinto que estou involuntariamente metido numa disputa que não me diz respeito. Se não se importa, vou continuar a dialogar com essa senhora, pelo menos enquanto ela o desejar. Não tenho a mínima razão de queixa da Sensia. Os comentários dela sempre foram de uma correcção extrema, reflectindo uma paixão pela terra que a viu nascer e onde ela passou os primeiros e, certamente, os mais felizes anos da sua vida.

Se o Bruno entender também comentar no meu blog, farei de conta que este incidente não aconteceu e terei muito gosto em que o faça.

23 novembro, 2006 23:07  
Blogger ZENsia escreveu...

Car@ Brun@,
Lamento muito que alguém que eu não conheço e com quem nunca me cruzei quer no ciberespaço como em qualquer outro espaço (a não ser que o seu nome seja outro que não Brun@) se me dirija e fale de mim de uma forma tão despropositadamente ácida quanto em delírio. Apenas lhe posso recomendar que em caso de persistência ou agravamento dos sintomas consulte o seu médico ou farmacêutico ou...o seu Kimbanda!

Caro Denudado,
Agradeço as suas palavras de apreço e justas no que à minha atitude se refere enquanto visita do seu blog. Aliás essa é a minha atitude em qualquer outro lugar em que me mova. Não serão brun@s que me demoverão!
Um abraço!

27 novembro, 2006 08:27  

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