Mário Cesariny (1923 -- 2006)
Conheci o poeta e artista plástico Mário Cesariny há alguns anos. Já era ele então um velhinho muito frágil e com pavor das doenças. Os seus olhos vivos e penetrantes, porém, denunciavam um espírito crítico e incisivo, que contrastava com o seu aspecto franzino. Da conversa que com ele tive, conservei na memória a sua enorme admiração por Antero de Quental, assim como um profundo desprezo pela escola neo-realista, que ele considerava "quadrada" e com uma visão do mundo "a preto e branco". De resto, Cesariny não era um conversador, embora apreciasse, manifestamente, a convivência com outras pessoas. Morreu aos 83 anos. Esta é a minha modesta homenagem ao maior de todos os surrealistas portugueses: Mário Cesariny de Vasconcelos.
PASTELARIA
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora -- ah, lá fora! -- rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
(Mário Cesariny de Vasconcelos)
Mário Cesariny de Vasconcelos, O Operário, 1947
Comentários: 2
Este poema lembra-me O`Neil.
É verdade, Paulo Costa, este e outros poemas de Cesariny lembram o Alexandre O'Neil, o que não é de admirar, pois eles foram muito amigos; devem ter-se influenciado um ao outro. No entanto, há poemas do Cesariny que são de um outro tipo, são mais... herméticos, digamos. É o caso de "O Virgem Negra".
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