10 abril 2007

Os avieiros


Barco tradicional dos avieiros (Foto: Rui Pedro)


Confesso que nunca li o romance "Avieiros", de Alves Redol. Talvez devesse tê-lo feito antes de me aventurar a escrever algumas linhas sobre os avieiros. Peço desculpa, mas vou cometer esse atrevimento. Aqui vai.

Como na costa portuguesa o mar se apresenta habitualmente alteroso durante o Inverno, até há muito poucas dezenas de anos os pescadores passavam verdadeira fome durante essa época, por estarem impossibilitados de pescar. E quando digo que eles passavam fome, quero dizer que eles passavam mesmo fome, no mais cruel sentido da palavra. Fome pura e dura.

A fim de fugirem a esta situação aflitiva, a partir dos primeiros anos do séc. XX pescadores da Praia da Vieira, que fica junto à foz do Rio Lis, no concelho de Leiria, começaram a ir no Inverno para o Rio Tejo pescar o sável e outras espécies de água doce. Terminado o Inverno, regressavam à Praia da Vieira, onde voltavam a pescar no mar. Deu-se assim início a uma migração sazonal de pescadores que, por serem oriundos da Praia da Vieira, foram chamados "avieiros" no Ribatejo.

Pouco a pouco, muitos desses pescadores passaram a residir permanentemente na Borda d'Água ribatejana, deixando de regressar à sua praia de origem. Assim nasceram pequenas comunidades de pescadores espalhadas ao longo do curso inferior do Tejo, pelo menos desde a Chamusca até à Póvoa de Santa Iria. Há comunidades de avieiros nas proximidades da Chamusca, de Alpiarça, em Benfica do Ribatejo, na Palhota (uma pequena aldeia habitada praticamente só por avieiros, no concelho do Cartaxo), em Escaroupim (outra aldeia quase só de avieiros, no concelho de Salvaterra de Magos), em Vila Franca de Xira, na Póvoa de Santa Iria, etc.

As povoações que os avieiros construíram junto aos canais e pauis do Tejo eram constituídas por miseráveis casas de madeira erguidas sobre estacas, à semelhança dos palheiros existentes nas praias do litoral. Ainda há alguns restos destas habitações palafíticas em várias pontos do Ribatejo, mas já não em Vila Franca de Xira, por exemplo.

Com efeito, uma comunidade avieira de cerca de vinte famílias, mais ou menos, vivia quase debaixo do tabuleiro da ponte de Vila Franca, em casas de madeira erguidas sobre estacas, estando estas permanentemente mergulhadas nas águas do Tejo. Um passadiço, também de madeira, servia de acesso às precárias habitações. Como é por demais sabido, o Tejo é um rio muito poluído. À sua superfície flutua toda a espécie de imundícies. Empurradas pelo vento, as imundícies acumulavam-se debaixo dos casebres dos avieiros, tornando aquele local verdadeiramente nauseabundo e infecto. Eram arrepiantes as condições de vida daquela gente.

Há alguns anos, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira resolveu pôr fim a tão insalubre bairro, demolindo-o. Os avieiros foram mudados para casas situadas longe do rio, o que naturalmente muito os contrariou. Julgo saber que finalmente a Câmara os alojou em casas propositadamente feitas para eles perto do Tejo. Não sei ao certo onde fica o novo bairro, mas certamente ficará entre a linha do comboio e o rio. Da próxima vez que for a Vila Franca de Xira (não sei quando será), procurarei o novo bairro avieiro da cidade.

Além dos palheiros, também os barcos dos avieiros fazem lembrar a origem marítima daquela gente. Embora sejam incomparavelmente mais pequenos do que os barcos usados na Praia da Vieira, os barcos dos avieiros no Tejo apresentam quase o mesmo formato que aqueles, com a sua proa erguida, como se precisassem de furar as ondas do mar... São uma visão insólita, para quem não está habituado a ver barcos assim num rio, mas os avieiros usam-nos quase como se fossem uma extensão de si próprios. É preciso vê-los a bordo das suas embarcações para se compreender até que ponto homens e barcos podem ser um só.

Uma sugestão a quem possuir cartão de campista: acampar no tranquilo parque de Escaroupim (Salvaterra de Magos) e contactar os avieiros que vivem na aldeia.

Comentários: 13

Anonymous Anónimo escreveu...

Olá! Tomei a liberdade de comentar...gostei muito deste post, porque identifico-me com ele, fala da história que sempre me habituei a ouvir dos meus avós!
Tenho muito orgulho das minhas origens...
Tenho 25 anos e morei até aos 15 anos no bairro dos Avieros de Vila Franca de Xira, como muitos, saimos de lá, em busca de uma habitação melhor fornecida pela câmara! Custo-me muito sair de lá, porque fui criada lá, deixei lá família, e para além disso toda a gente se conhecia e respeitava-se!
Devo dizer que o bairro já está praticamente construido e encontra-se no mesmo local, nem todas as casas foram demolidas...
Vou voltar a passar por aqui...
Obrigado pelo post!

27 maio, 2007 16:21  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado pelo seu comentário. Fico contente por saber que o meu artigo lhe agradou e fico também contente por saber que a comunidade dos Avieiros de Vila Franca de Xira não se desmembrou, pelo menos por completo.

Talvez agora no mês de Junho eu possa ir a Vila Franca. Se isso acontecer, aproveitarei a oportunidade para dar uma espreitadela ao novo bairro. Tudo irá depender das circunstâncias.

Muito obrigado e volte sempre.

28 maio, 2007 22:42  
Blogger Alberto Cruz escreveu...

Sou filho de um homem que conhecia o Tejo como ninguém e era muito respeitado pelo "povo" avieiro dava pelo nome de "Zé Beseguim" e o seu ancoradouro era a Doca dos Olivais.
Visite e divulgue
http://vontadeseplanos.blogspot.com/
Obrigado

17 julho, 2009 15:40  
Anonymous Anónimo escreveu...

Tenho lido muitos blogs sobre avieiros.... mas, infelizmente, tambem muita asneira... Venham á Ria de Aveiro e vejam as origens das embarcações do tipo CANOA DE TABUAS ou mesoptamica que se encontram ao longo do litoral portugues e alguns rios e lá encontrarão a origem de Avieiros....de nazarenos......e de muitos outros descendentes de Ilhavos e restantes povos da Ria... Leiam tambem o primeiro capitulo das «Viagens na minha terra» de Garrett.....«Os pescadores» de Raul Brandão... e tambem «Varinos» de Micaela Soares.... Tambem por eles podem ver quem colonizou o litoral, o Rio Tejo e Sado... Não façam como a avestruz que enterra a cabeça na areia.... Leiam e façam blogs capazes...

Antonio Angeja

07 setembro, 2010 09:47  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro António Angeja,
Lamento não conseguir fazer blogues capazes, mas garanto-lhe que faço o melhor que me é dado fazer.

Quanto às origens dos avieiros, não há nada melhor do que perguntar-lhes pessoalmente de onde é que vieram os seus próprios pais e os seus próprios avós. Eles responderão que vieram da Praia da Vieira e deverão sabê-lo melhor do que ninguém.

Uma outra questão será saber de onde é que vieram os pescadores que vivem na Praia da Vieira. Pela parte que me toca, não tenho dúvidas de que vieram da Ria de Aveiro. Basta comparar a Praia da Vieira com o Furadouro, por exemplo. Tanto num lado como no outro, as artes de pesca são as mesmas, os barcos são iguais e por aí fora. Mas nada disto tem já a ver com o Ribatejo.

Com o Ribatejo tem, sim, a ver a fixação de populações oriundas da Ria de Aveiro em épocas anteriores à vinda dos avieiros. Mas uma coisa não invalida a outra. No tempo de Almeida Garrett ainda não existiam avieiros e no de Raul Brandão eles estariam apenas a iniciar o processo de fixação na Borda d'Água.

07 setembro, 2010 16:19  
Anonymous Anónimo escreveu...

Os seus conhecimentos são muito superficiais.... Ao falar de vieira de leiria terá que comparar com muitas outras praias semelantes ao Furadouro...Rspinho, Torreira, S.Jacinto, Costa Nova, Vagueia e muitas outras até ao Algarve.... E em todas elas os povos da Ria de Aveiro incluindo os Ilhavos pescaram e se intalaram... Tambem não misture VARINOS com VAREIROS Porque os primeiros eram todos aqueles que usavam barcos que usavam varas para sairem da praia...

Quanto aos seus Avieiros do seculo XX são aqueles que resultaram de uma mistura do seculo passado com os anteriores lá chegados... Os ILHAVOS.... Os quais abandonaram a colonização do litoral para voltarem á pesca do bacalhau...

Já agora a bateira que apresentou no blog pode encontrá-la na Ria, na Figueira da Foz, no Tejo...na Cascalheira, em Santo André e em Olhão...

Amigo eu não falei com os Avieiros...SIMPLESMENTE INVESTIGUEI e já passei por quase todos os locais onde os Ilhavos pararam...

Digo-lhe tambem que no Tejo na zona das Portas de Rodão há uma bateira mais tosca de painel

Antonio Angeja

11 setembro, 2010 12:08  
Anonymous Anónimo escreveu...

Os seus conhecimentos são muito superficiais.... Ao falar de vieira de leiria terá que comparar com muitas outras praias semelantes ao Furadouro...Rspinho, Torreira, S.Jacinto, Costa Nova, Vagueia e muitas outras até ao Algarve.... E em todas elas os povos da Ria de Aveiro incluindo os Ilhavos pescaram e se intalaram... Tambem não misture VARINOS com VAREIROS Porque os primeiros eram todos aqueles que usavam barcos que usavam varas para sairem da praia...

Quanto aos seus Avieiros do seculo XX são aqueles que resultaram de uma mistura do seculo passado com os anteriores lá chegados... Os ILHAVOS.... Os quais abandonaram a colonização do litoral para voltarem á pesca do bacalhau...

Já agora a bateira que apresentou no blog pode encontrá-la na Ria, na Figueira da Foz, no Tejo...na Cascalheira, em Santo André e em Olhão...

Amigo eu não falei com os Avieiros...SIMPLESMENTE INVESTIGUEI e já passei por quase todos os locais onde os Ilhavos pararam...

Digo-lhe tambem que no Tejo na zona das Portas de Rodão há uma bateira mais tosca de painel

Antonio Angeja

11 setembro, 2010 12:09  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Eu falei na praia do Furadouro apenas como exemplo, como explicitamente referi: «Basta comparar a Praia da Vieira com o Furadouro, por exemplo». Em vez do Furadouro, eu poderia ter falado na Praia de Mira, na de Cortegaça, Tocha ou outra. Falei na do Furadouro porque foi a primeira que me veio à cabeça.

Eu vivi vários anos em Lisboa e sempre ouvi dizer (sempre!) que as peixeiras em Lisboa eram chamadas varinas, porque eram originárias da região de Ovar e não porque tirassem embarcações do areal com varas. Desculpe, mas mantenho firmemente o que disse. As varinas foram cantadas em milhares de fados e de outras cantigas, porque possuíam a graça e a elegância das mulheres da Ria.

Há cerca de dois anos, vi atracado no cais de Vila Franca de Xira o barco do tipo varino chamado "Liberdade" que se vê nesta fotografia. Como facilmente notará, se nós não soubéssemos que este barco foi construído e navega no Rio Tejo, diríamos que ele pertencia ao Rio Vouga e à Ria. Até prova em contrário, permaneço convencido de que o nome varino dado a este tipo de embarcação é uma referência a Ovar e não ao facto de ele ser tirado da praia com o auxílio de varas. Para movimentar sobre a areia uma embarcação destas, com 40 toneladas de peso, seriam precisas várias varas e das grossas. Não digo que não fosse impossível, mas seria decerto trabalhoso.

11 setembro, 2010 17:47  
Anonymous Anónimo escreveu...

Caro Amigo,
Já vi que o senhor nunca viu utilisar o barco «meia lua» antes de serem utilizados tractores... É verdade...eles deslizavam em cima de rolos que se apoiavam em longas varas para não serem engolidos(os rolos) pelas areias e era uma azafama dos pescadores a tirarem as varas e rolos que ficavam pata trás e a colocarem-nas na frente do barco até ele começar a galear(momento em que descola da areia e navega)....

Nos seus fados nunca ouvi dizer que as varinas eram de Ovar(algumas até seriam)...e se finalmente ler o primeiro capitulo das «Viagens na minha terra» pode ver que Garret chama pelo menos uma vez VARINOS aos ILHAVOS... A varina era a mulher do varino e vendia com canastra o cunhão que calhava ao seu companheiro... Naquele tempo pescadores e homens da terra eram pagos em generos que eles vendiam para terem algum dinheiro... Ainda nos anos 60 os pescadores das traineiras, já motorizadas, recebiam uma parte em peixe e outra em dinheiro...

Mas amigo,
Faça uma pesquisa mais séria... não escreva só o que ouve ou vê... Até há na net textos e fotos com os barcos antigos de todo o país e logicamente os do tejo....
Pode pôr no GOOGLE duas palavras....PESCADORES DE ILHAVO e pesquise....

Há bibliografia sobre as embarcações e artes do Tejo..... INVESTIGE...

Veja os meus trabalhos:

http://www.prof2000.pt/users/hjco/hjco/diversos/diasporadosilhavos.htm

http://www.prof2000.pt/users/hjco/hjco/diversos/bacalhaunaepocadasdescobertas.htm

http://cid-3a3d32dd93263dc4.skydrive.live.com/browse.aspx/PPS%20Portugal/Ilhavo

http://www.memoriamedia.net/central/index.php?option=com_content&view=article&id=336&Itemid=246

Os dois primeiros são textos... no terceiro tem powerpoints e no ultimo um filme do que disse num seminário...

O senhor precisa ainda de ler muito para falar com alguma exatidão da colonização feita pelos povos da ria ao longo da costa portuguesa e em alguns rios, pelo menos desde o sec XVII ao XX...

Mas infelizmente não é assim que gosto de falar dos pescadores...
preferia trocar ideias com outros que têm base cultural para trocar ideias...

Antonio Angeja

12 setembro, 2010 13:13  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro António Angeja,
Eu nunca quis -- nem nunca poderia fazê-lo -- falar com exatidão da colonização feita pelos povos da Ria ao longo da costa portuguesa. Muito menos foi essa colonização o tema do presente artigo, que fala no caso muito particular, no tempo e no espaço, da fixação no Ribatejo de pescadores da Praia da Vieira, que fica junto à foz do Rio Lis, como sabe muito bem.

Não é na meia dúzia de linhas que constituem um artigo de um blogue que os assuntos podem ser tratados com rigor e exatidão. É em sítios próprios que criamos na Internet, em que discutimos e analizamos o assunto em várias páginas e com um mínimo de rigor. Os blogues são superficiais pela sua própria natureza. Este meu blogue é-o, também, assumidamente, como deixei escrito no próprio cabeçalho: «Gostos, interesses, paixões e desamores que se vão materializando com o fluir do tempo».

Eu sou, portanto, um simples curioso destas e doutras coisas e nada mais. A minha área profissional é completa e radicalmente estranha a estes assuntos. Eu nunca poderia tratá-los com profundidade, porque não são da minha especialidade, nem pouco mais ou menos. Ainda por cima, não sou cagaréu, nem nada que se pareça. Não sou de Ílhavo, nem de Aveiro, nem da Murtosa, nem do «Diabo-a-Quatro». Sou tripeiro. Por isso, não me exija aquilo que eu não posso dar.

Cumprimentos

13 setembro, 2010 01:07  
Anonymous Anónimo escreveu...

Como habitante do ribatejo e com paixão pela fotografia, nestes ultimos anos tenho tido muitos contactos com avieiros desde Vila Velha de Rodão até Escaroupim (Salvaterra de Magos)e sublinho até Escaroupim apesar de conhecer bem a Carrasqueira (Alcacer do Sal) e o seu artigo é de facto um resumo veridico dos avieiros também designados por "ciganos do tejo" pelas dificuldades que tiveram na altura em se instalar nas margens, com muitas gerações a nascer nos barcos, histórias estas contadas pelos próprios avieiros a mim, ou seja na 1ª pessoa. Aliás, em alguns locais do tejo ainda existe a tradição do casal em que a mulher está nos remos e o homem nas redes. Os meus parabéns Fernando Ribeiro por este resumo e sublinho VERIDICO.
Deixo-lho um link da actividade prevista pela Associação para a Promoção da Cultura Avieira (APCA) que pretende até que faça parte do Património da Humanidade. No próximo dia 1 de Maio irá haver um encontro, com exposição de fotografia e lançamento de um livro sobre os avieiros.

https://www.facebook.com/events/275677622521158/

Cumprimentos
António Kool

16 abril, 2012 12:19  
Anonymous Anónimo escreveu...

Corrijo a minha informação anterior - a APCA pretende efectuar candidatura da Cultura Avieira a Património Nacional e Imaterial da UNESCO.
Cumprimentos
António Kool

16 abril, 2012 17:04  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Prezado António Kool

Muito obrigado pelas suas amáveis palavras. Desconhecia que havia avieiros em Vila Velha de Ródão, já tão longe do estuário do Tejo, mas... porque não? Afinal o Tejo é navegável até Vila Velha de Ródão mesmo, não é assim? Não é de admirar que também por lá haja avieiros.

Fico a "torcer" pela candidatura que, se der resultado, será importantíssima para ajudar a conservar e a dignificar a cultura avieira.

17 abril, 2012 01:21  

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