A fome
(origem Kwanyama)
Quem pouco fala não diz nem bem nem mal
e o morto, no caixão
não tem voz ativa.
Tu, quando falas
matas os da cobra
e os da hiena
vão para a sepultura.
Para que nós, na desgraça, não roubemos
para que nós, viajantes, não roubemos ninguém
Senhor, Deus de Nangobe
dá-nos a chuva.
Avô dos miseráveis
Mãe dos pobres
Tio dos famintos
Mãe, Avô e Tio dos que caem nos caminhos da fome
faz sair a chuva
faz crescer os mantimentos
inunda-nos com a tua água.
Ajuda os pobres, Deus de Nangobe.
Cai chuva
e traz-nos a bênção
do canto das rãs.
Aonde dorme, a chuva?
Na figueira da Haudila?
Nos grandes paus de Solela?
Eu queria o vento.
Eu queria a tempestade
e a faísca que levanta
pela raiz
a pequena palmeira.
Rei Mahondi de Mwaeta
soberano Kahondi do Muvale:
Senhor!
O calor já está a prolongar-se.
A massambala seca
a semente definha
e a rama murcha.
A fome aproxima-se, Senhor!
A seca já chegou às nossas portas
e até já se instalou em nossas casas.
Levou alguns para a lagoa
outros foram para o Lubango.
Não há para onde fugir
quando se é presa da fome.
A fome é filha das feras
está no teu estômago e diz:
vai roubar, vai roubar.
Os seus cornos são agudos e direitos
mais finos do que azagaias.
Não deixam marca
nem ferida nem chaga.
Oh meu boi magro
quando a chuva morre
não há casa que não faça o inventário.
Luto pesado!
Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), in Ondula, savana branca
(Foto de autor desconhecido)
NOTA
Esta oração, que aparentemente é do povo Kwanyama (Cuanhama), do sul de Angola, e que o poeta, prosador, antropólogo e cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho terá adaptado para a língua portuguesa, retrata uma realidade que é verdadeiramente terrível para quem a viver: a iminência da fome provocada por uma seca.
Nós, que só vemos a seca e a fome na televisão, sentimo-nos apiedados e até chocados com as imagens de crianças esqueléticas, no limiar da morte, ao colo das suas desgraçadas mães e com a boca coberta de moscas. Mas talvez não nos demos verdadeiramente conta do enorme sofrimento que uma seca pode provocar a quem lhe sofre as consequências, um sofrimento que é muito maior do que tudo quanto conseguimos imaginar, por mais que nos esforcemos.
A seca não é uma dessas calamidades que subitamente caem em cima das pessoas, deixando-as em estado de choque. A seca é uma calamidade que se vê vir, len-ta-men-te, mui-to de-va-ga-ri-nho. É um espetro que um dia se vê surgir no horizonte e que se agiganta cada vez mais, e mais, e mais, e mais. À medida que os dias, as semanas e os meses vão passando, uns após outros, sem que caia uma pinga de chuva, a angústia vai crescendo no coração das pessoas, cada vez mais, e mais, e mais, e mais, até se transformar em desespero puro e simples. Não queiramos nunca saber o que é que uma pessoa sente perante a perspetiva de uma fome e de uma morte provocadas por uma seca.
Primeiro, chega a estação das chuvas, mas a chuva não cai. Já com uma ponta de angústia, mas ainda com muita esperança, as pessoas lançam à terra seca as sementes do seu milho. Esperam elas que a chuva acabe finalmente por cair, mais dia, menos dia, e o milho consiga nascer e crescer. Mas os dias passam, a chuva teima em não cair e o milho semeado acaba por morrer na terra ressequida.
Com um nó na garganta, as pessoas fazem nova semeadura de milho, ao mesmo tempo que rezam fervorosas orações ao Criador, para que faça chover. Esperam elas que as orações consigam fazer efeito e acabe finalmente por chover. Mas os dias continuam a passar, a chuva continua a não cair e o milho morre outra vez.
O nó que as pessoas sentiam na garganta cresce até se tornar num novelo. Já se passaram várias semanas desde que a chuva deveria ter começado a cair. Profundamente angustiadas, as pessoas valem-se do último recurso que ainda lhes resta: semear um outro cereal, a massambala (painço), que, embora não tenha tanto valor nutritivo como o milho, é mais resistente à seca. Mas a terra já está tão ressequida que nem o painço consegue vingar.
O desespero toma então conta das pessoas. Parece que o ar se tornou sólido. As pessoas querem respirar e não podem. Querem mexer-se, mas não sabem como nem para onde. Deambulam de olhar vazio, como mortos-vivos. Não sabem -- desesperadamente não sabem! -- o que fazer à vida. Já começam a vislumbrar a fome e a morte a aproximar-se delas.
E de repente dá-se um milagre. Subitamente, o céu escurece e a chuva começa a cair, torrencial. Mesmo a tempo, in extremis, de evitar a fome que já parecia inevitável. Toda a gente ri e canta e dança e abraça-se. Os seus olhos, que a angústia tinha mantido irredutivelmente secos, tão secos como a terra sequiosa, enchem-se de lágrimas. Torrentes de lágrimas correm pela cara das pessoas. É tão bom chorar de alegria!
As pessoas apressam-se a semear os últimos grãos de milho que lhes restam. O milho germina e multiplica-se em douradas espigas. A vida renasce.
Desgraçadamente, há neste momento regiões na Somália e noutros países vizinhos em que a vida não renasceu e as pessoas morrem, aos milhares, no meio de um sofrimento indescritível. De fome e também de guerra.
Comentários: 3
Canto saído da dor impossível de ser imaginada por quem não a vive ou viveu, como disse muito bem. A primeira vez que vi miséria foi gente retirando de contêiner de lixo (com monte de lixo espalhado também ao redor), algo para comer. Aquilo deveria estar misturado com larvas, ratos e nem sei mais o quê. Foi imagem que me fez chorar e tremer sem controle por alguns minutos. Essa imagem nunca mais me largou. Vi repetir-se muitas e muitas vezes!
A fome não se instala de um dia para outro, verdade! A história de fome da Somália vem sendo anunciada há cerca de 30 anos, sem qualquer iniciativa para impedi-la. Mas para que evitar a fome? Assim pensam os donos do mundo que condenam à morte prematura os miseráveis. Mas não desisto da esperança de humanização do homem.
Excelente e triste trabalho.
Girassóis nos seus dias. Beijos
E de indeferença, também, se morre na Somália, e noutros sítios.
É sempre bom, lê-lo.
Passar por cá.
Celina e UmBhalane,
Muito obrigado pelas vossas visitas e pelas vossas simpáticas palavras.
O relato da seca que fiz em jeito de nota de rodapé é verdadeiro, tanto quanto me foi possível narrá-lo. Aconteceu em Angola.
No norte, começou a chover no mês de setembro, como é do calendário, mas no sul de Angola a chuva não apareceu. Ninguém ficou preocupado, porque os atrasos na chegada da chuva são frequentes. Quando o mês de outubro chegou ao fim, sem que chovesse, as pessoas começaram a ficar preocupadas. No fim de novembro, quando se viu que o milho não nascia, as pessoas passaram a sentir-se angustiadas. Quando chegou o ano novo e a chuva teimava em não aparecer, a angústia assumiu proporções muito consideráveis. Quando acabou o mês de janeiro, a angústia atingiu o seu clímax. No fim de fevereiro, as pessoas perderam toda e qualquer esperança. Parecia-lhes que a fome era absolutamente inevitável. Foi só em março, a dois meses do fim da época das chuvas, que começou a chover! Foi mesmo à justa!
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