09 março 2012

«Água!»

Uma Berliet no Planalto dos Macondes, norte de Moçambique (Foto: Manuel Bastos)

-- Lembras-te, Tino, do Úcua? Andavas sempre à rasca com sede -- recordou o Vergas ao cair da noite.

Se se lembrava! Por essa sede sem fundo que o perseguia como a sombra, o pequeno soldado do Porto, embarcador e desembarcador de terra e mar, esteve quase a ser eliminado logo no início do curso de comandos, durante a semana da sede, sete dias de inferno no Norte de Angola, nos Dembos, com direito apenas a um cantil de água por dia.

Não fosse a prática da vida e teria perdido logo na primeira prova as esperanças de algum dia vir a ser um soldado de elite para se impor ao respeito da rufiagem das docas de Leixões, ou pior, teria rebentado como um peixe fora de água, os rins desfeitos a mijarem sangue, os pulmões secos que nem bacalhaus!

O Tino encontrou maneira de tirar do atrelado de água dos instrutores muito mais do que a ração considerada suficiente para a sobrevivência dum candidato a comando na fornalha do Úcua. Tanta que até deu para distribuir pelos camaradas de provação.

Nesta noite, na coluna da Volta ao Mundo, a palavra que corria na boca de todos os homens também era: «Água!» e, tal como no Úcua, essa zona de más recordações em Angola, o Tino tinha, de novo, inventado o modo de a obter. Estava com o Vergas debaixo do motor de uma Berliet, a retirar a água do radiador para o cantil através dum tubo ladrão.

-- Isto é a pior mixórdia que já bebi. Pior que o xarope dos cabarés das putas! -- afirmou o Vergas depois de engolir o líquido.

Os dois homens emparelhados nos comandos, o soldado e o cabo, o pequeno e o grande, o do Norte e o do Sul, unidos pelo acaso, regressaram ao seu lugar com a boca a arder com o sabor metálico a ferrugem, mas reconfortados. A ideia genial do Tino arrastou, como todas as promessas de salvação, uma multidão de seguidores. No seu rasto formou-se uma procissão de silhuetas recortadas a desfilar em direcção aos motores das viaturas, projectando as sombras de vultos negros dobrados, de cantil desrolhado na mão, sobre o fundo da noite clara. Formavam uma fila silenciosa junto aos radiadores, ansiosos, na esperança de que das tetas metálicas escorresse algum líquido.

Os contemplados bebiam sofregamente a água fervida de arrefecer o coração das máquinas e depois deitavam-se um pouco menos sequiosos, mas com um travo amargo de óleo na boca.

A primeira consequência do assalto aos radiadores surgiu logo de manhã quando, passados alguns poucos quilómetros, os motores das Berliets, dos Unimogs, dos camiões rafeiros sem marca definida, das Fox, começaram a fumegar devido ao aumento da temperatura.

Os condutores conheciam a causa do mal e mandaram o cabo mecânico ir explicá-la ao capitão.

-- Beberam a água dos radiadores? -- repetiu, incrédulo. Abanou a cabeça. -- Devia ter-me lembrado dessa...

Devia estar preparado para tudo. Conhecia os homens que constituíam a companhia e devia saber que deles podia esperar tudo. O melhor e o pior. Era essa certeza quanto à ocorrência do imprevisto que o fascinava no seu papel de chefe daquele grupo. Com a mesma facilidade e inconsciência que criavam as dificuldades também as aceitavam. Não lhe restava mais que esperar a chegada do helicóptero com a água que pedira para M e deu ordem para montarem segurança ao redor do estacionamento.

Dois Unimogs (Foto: a.leitão)

O Alouette aterrou depois do meio-dia trazendo um carregamento de água em jerricãs metálicos para ser distribuído por homens e viaturas.

Os homens beberam-na sofregamente e só depois acharam que sabia muito mal. Os mecânicos atestaram os radiadores das viaturas e a coluna recomeçou a deslocar-se.

A situação parecia ter voltado ao normal, com o lento avanço pela mata de vegetação de arbustos espinhosos e resistentes à seca e de árvores esguias, na direcção dum ponto no mapa que deixara de fazer sentido como futura zona de ataque à grande base Beira. Retardado o avanço da coluna dos comandos, esta dirigia-se apenas para o local no planalto dos Macondes onde se reuniria à dos pára-quedistas, que trazia a artilharia de acompanhamento, agora mais um peso inútil.

A coluna arrastava-se com a dolência dum réptil enjaulado e nada fazia prever que o ataque viesse de dentro de si mesma. Os primeiros sintomas surgiram quando Tino caiu da Berliet onde seguia, rebolando agarrado à barriga com uma cólica. Contraiu o corpo em vómitos sucessivos, de olhos cerrados, e a cara branca como a cal, foi tomando uma coloração esverdeada.

-- Que tem ele? -- perguntou o capitão ao enfermeiro.

-- Parece uma intoxicação.

Logo de seguida surgiram os mesmos sintomas noutros homens da coluna.

-- Descobre depressa donde vem esta merda de doença! -- mandou o capitão ao Cardoso com rispidez, como se este fosse o culpado.

O enfermeiro enfrentou-o por um brevíssimo momento e afastou-se para desrolhar o cantil de um dos atacados pelo estranho mal.

-- Cheira a gasóleo.

-- Os tipos de M mandaram água nos jerricãs do gasóleo e nem sequer os lavaram. Filhos da puta! -- exclamou antes de mandar o Transmissões enviar uma mensagem a pedir urgentemente um médico.

-- Urgente, meu capitão? -- perguntou o Brandão com o inexpressivo tom de voz de quem flutuava ausente noutra dimensão da vida.

-- Zero horas, seu maricas!

O capitão chegara ao seu ponto de ruptura. Agredia tudo e todos. Queria lá saber se o Brandão era maricas! Ou drogado. Fosse, ou não fosse, não era certamente culpado de os homens terem bebido a água dos radiadores e depois dos depósitos com gasóleo enviados pelo oficial da logística de M, um capitão que viera de soldado, sempre agarrado aos papéis e que nunca pusera o cu no mato! Um «chico» lateiro!

A coluna parava mais uma vez na floresta cinzenta, plana, chata, sem horizontes, como um veleiro num mar de azeite sem um sopro de vento. À espera dum médico vindo de helicóptero para avaliar a situação e evacuar os casos mais graves.

Excerto do livro Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (pseudónimo literário de Carlos Matos Gomes), editado pela Casa das Letras

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