18 junho 2019

Leni Riefenstahl


Leni Riefenstahl ao lado de Adolf Hitler

Se alguém tiver vontade de ler o livro Mein Kampf ("A Minha Luta"), de Adolf Hitler, mas não o fizer por receio de se deixar convencer por ele, pode ler à vontade. O Mein Kampf não convence ninguém. É uma medíocre autobiografia de Hitler, que destila ódio por todas as páginas, mas este ódio é tão irracional, que só converte ao nazismo os já convertidos. É uma completa perda de tempo ler tal coisa. Não faltam livros incomparavelmente mais interessantes do que esse. Mas se fizerem questão em lê-lo, façam favor, estejam à vontade. Depois não digam que ninguém os avisou.

Se alguém quiser ver algum filme de Leni Riefenstahl, nomeadamente o filme Triumph des Willens ("O Triunfo da Vontade"), realizado em 1934, tenha cuidado. Pode não se converter à ideologia nazi, mas ficará por certo perturbado. Costuma-se dizer que «uma imagem vale mais do que mil palavras», o que é quase sempre verdade. Se se tratar de imagens trabalhadas de uma forma absolutamente magistral, como Leni Riefenstahl fez, então elas valem mais do que tudo quanto a propaganda nazi conseguiu produzir para além delas. Leni Riefenstahl foi um génio do mal. Os seus filmes figuram na história do cinema na galeria dos filmes malditos, juntamente com The Birth of a Nation ("O Nascimento de uma Nação"), de D. W. Griffith, por exemplo, que glorifica o Ku Klux Klan.

Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, Leni Riefenstahl foi levada a julgamento perante o Tribunal de Nuremberga, mas acabou por ser absolvida, por não ter havido qualquer implicação pessoal direta sua no genocídio do Holocausto. Foi considerada apenas "simpatizante".


Nas Montanhas Nuba, Kordofan do Sul, Sudão, 1949. Após um combate corpo a corpo, o lutador vencido transporta em ombros o vencedor (Foto: George Rodger/Magnum)

Igualmente após o fim da 2.ª Guerra Mundial, o fotógrafo inglês George Rodger, que foi cofundador da Agência Magnum, decidiu partir para a África profunda, com o fim de tentar esquecer os horrores da guerra que testemunhou pessoalmente e de que deu conta na revista americana Life. Em 1951, a revista National Geographic publicou um conjunto de fotografias feitas por Rodger em África, que deixaram o mundo de boca aberta de espanto. Estas fotografias retratavam uma sociedade africana em estado aparentemente puro e supostamente imune a qualquer influência do mundo exterior, em que as pessoas apresentavam uma beleza física, uma altivez e um vigor que eram verdadeiramente extraordinários. Rodger, porém, não especificou em que parte de África captou as suas imagens, para que os forasteiros não a invadissem e não estragassem a sua alegada genuinidade. Mesmo assim, acabou por se saber onde ele tinha feito as suas incomparáveis fotografias: as Montanhas Nuba, no sul do Sudão. Mas não se confundam as Montanhas Nuba com a Núbia, que é uma região distinta, apesar da semelhança do nome. A Núbia fica no extremo norte do Sudão e as Montanhas Nuba ficam no sul.


Nas Montanhas Nuba, Kordofan do Sul, Sudão (Foto: Leni Riefenstahl)

Entretanto, Leni Riefenstahl era impedida de realizar filmes na Europa e na América, por causa do seu passado nazi, além de sofrer várias outras limitações. Ficando a saber onde George Rodger tinha tirado as suas espantosas fotografias, também ela decidiu ir até às Montanhas Nuba, ver ao vivo o que tinha visto nas imagens do grande fotógrafo inglês e fazer, ela também, as suas próprias fotografias no local. Leni Riefenstahl foi até às Montanhas Nuba e ficou apaixonada pelas gentes que lá encontrou. Em vez de ficar por alguns dias, algumas semanas ou mesmo alguns meses, ficou vários anos. Relacionou-se com os nubas e criou laços de amizade pessoais com alguns deles, apesar da aparente diferença cultural entre ela e os seus anfitriões. Descobriu que os seres humanos são essencialmente os mesmos, onde quer que vivam e quem quer que sejam, por mais exótica que a sua cultura possa parecer. Enquanto lá esteve, Leni foi enviando reportagens fotográficas suas para diversos órgãos de comunicação social, como "Paris Match", "L'Europeo", "Newsweek", etc. Também publicou livros de fotografia sobre os povos nubas, com algumas das suas melhores imagens.


Leni Riefenstahl de mão dada com um nuba, que lhe leva a caixa do equipamento fotográfico

Em 1972, Leni Riefenstahl tomou-se de uma nova paixão: a fotografia subaquática. Aprendeu a mergulhar e em 1978 publicou um livro com algumas das suas fotografias submarinas, chamado Korallengärten ("Jardins de Coral"), ao qual se seguiram outros. Com noventa e cinco anos, ainda ela fotografou tubarões debaixo de água! Quando tinha cem anos, foi estreado um seu novo filme, chamado Impressionen unter Wasser ("Impressões debaixo de Água"). Morreu em 2003, com 101 anos de idade.


Leni Riefenstahl acarinha uma criança nuba

A história da vida de Leni Riefenstahl não acaba aqui. Voltemos ao Sudão. Quando Leni Riefenstahl se instalou nas Montanhas Nuba, o Sudão era governado por um ditador chamado Gaafar Nimeiry, o qual foi derrubado em 1989 por um coronel do exército chamado Omar al-Bashir. Se Nimeiry não era flor que se cheirasse, Omar al-Bashir ainda era menos. Quis este tirano impor a islamização forçada de toda a população do país, o que provocou de imediato uma revolta no sul, cujos habitantes, incluindo os das Montanhas Nuba, eram maioritariamente cristãos e animistas. Seguiu-se uma terrível guerra civil entre o norte e o sul do Sudão.

Leni Riefenstahl, que já tinha regressado das Montanhas Nuba há muito tempo, assustada com as notícias que ia recebendo do Sudão e preocupada com a sorte dos seus amigos nubas, pediu ao governo sudanês autorização para visitar as Montanhas Nuba. A autorização foi-lhe negada, porque as referidas montanhas estavam em guerra. Determinada a ir de qualquer maneira, Leni Riefenstahl fez também o mesmo pedido ao movimento rebelde do sul do Sudão, o SPLM (Sudan Peoples Liberation Movement). Depois de duras e insistentes negociações com ambas as partes, foi o governo de Cartum que cedeu primeiro. Leni Riefenstahl deslocou-se, por fim, às Montanhas Nuba no ano 2000, integrada numa coluna militar sudanesa. Esta sua última visita resultou num desastre em todos os sentidos.

Quando chegou às Montanhas Nuba, Leni Riefenstahl foi recebida por milhares de pessoas. Levava consigo fotografias dos amigos que desejava voltar a encontrar. Mostrou as fotografias às pessoas, pedindo-lhes informações sobre os retratados, e teve como resposta que eles tinham morrido todos na guerra. Para seu desespero, Leni não encontrou um só amigo nuba que ainda estivesse vivo.

Ainda ela não tinha desistido completamente da sua busca, quando se desencadearam novos combates entre o exército e os rebeldes na zona onde ela estava. Fugiu à pressa num helicóptero, que veio a despenhar-se depois de ter feito escala em El Obeid, a capital do estado de Kordofan do Norte. Leni Riefenstahl ficou ferida na queda do helicóptero, sofrendo a fratura de algumas costelas e a perfuração de um pulmão, mas sobreviveu apesar da sua avançadíssima idade. Contudo, ela não viveria muito mais tempo. Um cancro matou-a três anos depois.


Leni Riefenstahl a seguir a um acidente de helicóptero sofrido no sul do Sudão

Este post devia ter acabado aqui. Mas os acontecimentos ocorridos nos últimos dias no Sudão levam-me a desenvolver um pouco mais o assunto das guerras provocadas por Omar al-Bashir, assim como da deposição deste facínora. Sobre o futuro do Sudão não me pronunciarei, pois não pretendo fazer concorrência a Nuno Rogeiro, o "especialista" em política internacional da nossa televisão…

Como disse mais acima, a islamização forçada de todo o Sudão pretendida por Omar al-Bashir levou o país a uma guerra civil, que opôs o Sul, maioritariamente animista e cristão, ao Norte, maioritariamente muçulmano. Esta guerra custou milhares e milhares de vidas humanas e resultou na secessão do Sul em 2011, o qual veio a ser um novo estado independente, com capital em Juba e chamado Sudão do Sul. As Montanhas Nuba, no entanto, cujos habitantes tinham vertido o seu sangue pela causa do Sul, acabaram por ficar no Norte, isto é, continuaram à mercê do regime criminoso instalado em Cartum! O mesmo se passou com o estado do Nilo Azul, que também ficou a norte da nova fronteira.

Não contente com a guerra que já tinha no sul do país, Omar al-Bashir "entreteve-se" a criar uma nova guerra, desta feita numa região do oeste do Sudão chamada Darfur. No Darfur, a guerra não opôs muçulmanos a cristãos e animistas, como no Sul, mas sim muçulmanos a outros muçulmanos. Enfim, al-Bashir comportou-se como um autêntico criminoso de guerra, em relação a quem o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de captura, sob a acusação de crimes contra a humanidade. Ele teve a "honra" de ser o primeiro chefe de estado em exercício a ser objeto de uma tal acusação e de um tal mandado de captura emitido pelo TPI. Mas o mandado de captura nunca foi cumprido até hoje.

Nos últimos anos, a situação económica do Sudão deteriorou-se, provocando o descontentamento da população. Ainda por cima, Omar al-Bashir, que já estava no poder há trinta anos e tinha prometido que não se recandidataria às "eleições" presidenciais, faltou à sua promessa e voltou a apresentar-se como candidato. Uma tal situação provocou grandes manifestações de protesto em Cartum em dezembro de 2018, contra o ditador e a favor de um regime democrático. A repressão a estas manifestações levou à morte de 40 pessoas, pelo menos, e à detenção de mais de 800. Em 11 de abril de 2019, Omar al-Bashir foi derrubado e preso. Os militares que então tomaram o poder decretaram o estado de emergência por três meses, mas continuaram a verificar-se manifestações a favor da instauração de um poder civil e democrático no Sudão. A repressão a estas manifestações, desta vez por parte do novo poder militar, resultou em muitas dezenas de mortos e muitas centenas de feridos, só na cidade de Cartum. Quando ao que se passa no resto do Sudão, nada se sabe.

Neste preciso momento, os militares estão no poder no Sudão, mantêm Omar al-Bashir preso e acusado de corrupção, mas reprimem selvaticamente as manifestações a favor da democracia. A situação é altamente volátil e tudo pode acontecer.

Comentários: 2

Blogger Clara escreveu...


Tenho um turbilhão de coisas na mente que querem sair cá para fora... mas estou chocada demais para o conseguir fazer.

Com todos estes testemunhos históricos tão terríveis, nem sei como é que a raça humana ainda consegue subsistir.

Beijinhos "engasgados"

27 junho, 2019 20:31  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amiga Clara, tudo quanto posso acrescentar neste momento em relação à situação no Sudão, é que foi assinado há poucos dias, na Etiópia, um acordo entre os militares sudaneses e a oposição, com vista a uma transição pacífica para um regime civil e democrático. A BBC, que costuma ser uma boa fonte de informação sobre o que se passa no Sudão, nada acrescenta a este respeito.

Um abraço

29 junho, 2019 01:58  

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