Dá-me o meu meio-tostão
Meio-tostão do reinado de D. Luís (Foto: Miguel Costa)
“
Um compadre perseguia outro por uma dívida; todas as vezes que lhe passava pela porta dizia:”
— Dá-me o meu meio-tostão.
O devedor, vexado, disse para a mulher que se ia fingir morto, e que ela o carpisse muito, para ver se quando o compadre passasse lhe perdoava pela sua alma o meio-tostão. Assim fez; a mulher pranteou e depenou-se, mas o compadre veio ao acompanhamento do enterro, e quando o corpo se depositou na igreja deixou-se ficar escondido debaixo da essa. De noite os ladrões entraram na igreja, e como viram a luz das tochas alumiando o morto, entenderam que ali era lugar seguro para repartirem o dinheiro e fazerem os quinhões do que tinham roubado. Quando estavam nisto, desavieram-se, porque todos queriam umas certas joias que o capitão dos ladrões reservava para si. Faziam muita bulha, mas o que se fingia morto na essa, e o compadre que estava escondido, passaram sustos medonhos e não se mexiam. Por fim disse o capitão dos ladrões:
— Eu cá não faço questão deste quinhão; mas quem o quiser há de ir espetar esta faca no morto que está ali naquela essa.
Dizia um: «Vou eu»! Outro também queria ir; mas o que se fingia defunto, sem saber como se havia de ver livre da situação desesperada, senta-se no caixão, e diz e com terror:
Acudam-me aqui os defuntos
E venham já todos juntos.
Os ladrões fugiram todos espavoridos e deixaram o dinheiro ao pé da essa; o compadre que se fingia morto desceu para baixo, e começou a ajuntar o dinheiro espalhado pelo chão. Quando estava nisto sai-lhe debaixo da essa o credor, que nem à borda da cova o largava, e começa a repetir-lhe sem parar:
— Dá-me o meu meio-tostão! Dá-me o meu meio-tostão.
E não se tirava disto. Os ladrões por fim envergonharam-se da sua covardia, e mandaram um mais valente à igreja ver o que por lá havia, e se podiam ir buscar o seu dinheiro. O ladrão veio sorrateiro, escondeu-se detrás de uma porta a escutar, e ouvia só:
— Dá-me o meu meio-tostão!
Desatou a fugir, e foi dizer aos companheiros:
— Está tudo perdido; andam lá tantos defuntos, que não cabe meio-tostão a cada um. Os ladrões conformaram-se com esta desgraça, e o compadre assim é que pagou a sua dívida e ficou rico.
Conto popular recolhido no Porto.
Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga
Comentários: 4
Fosse esse meio tostão
furado ao meio...
Mesmo furado, este meio-tostão vale mais do que aquele senhor que mudou a sede da sua empresa para a Holanda e fez uma grande "promoção" num 1.º de Maio que lhe rendeu rios de dinheiro, e que, agora que morreu, todos dizem na televisão que foi um grande patriota e defensor dos trabalhadores. Refiro-me, obviamente, a Alexandre Soares dos Santos.
Muito interessante esse conto northenho !
Caro Ricardo Santos, o livro de Teófilo Braga está cheio de contos muito interessantes, sejam eles do norte, do sul, do leste ou do oeste. E também tem contos politicamente incorretos, mas que têm um valor sociológico e histórico considerável, pois refletem a mentalidade dominante em épocas passadas. Um abraço
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