Ida à Psiquiatria
(Foto de autor desconhecido)
Isto é que era o Hospital Militar de Luanda? Não conheci isto, porque o serviço de Psiquiatria não ficava aqui. Ficava na Samba, na zona sul da cidade, e era uma coisa capaz de fazer inveja aos campos de concentração nazis. Era mesmo, não estou a exagerar. Aquilo era um recinto composto por alguns pavilhões de paredes sujíssimas e completamente cercado por muros que eram altíssimos e encimados de arame farpado, para que os "malucos" que lá estavam internados não pudessem fugir. Lá dentro, não se via nada a toda a volta a não ser muros, aos quais os doentes se encostavam, de olhar perdido e encharcados de drogas. A única ocasião em que era possível vislumbrar alguma coisa do mundo exterior, era quando se abria o portão e se via uma nesga do largo que ficava em frente.
Quando lá entrei pela primeira vez, um pequeno grupo de doentes aproximou-se de mim com o ar mais inofensivo do mundo, desejosos de ter contacto com alguém que não fosse de lá, mesmo que esse contacto só durasse alguns instantes. Um deles perguntou-me, com voz entaramelada, se eu ia lá para a consulta externa e se aquela era a minha primeira vez. Eu respondi que sim, que era a primeira vez e que ia para a consulta externa. Um outro, então, recomendou-me, também com voz entaramelada:
— Oh, pá! Tu nem queiras saber o que é isto aqui dentro. Isto é o inferno. Se os gajos quiserem internar-te, tu recusa. Recusa sempre. Até ao fim. Tanto quanto puderes. Não queiras ficar cá dentro por nada deste mundo.
Um outro doente esclareceu:
— O pior disto aqui, até nem são as instalações, que são o que tu estás a ver. O pior mesmo são os choques elétricos que os gajos aplicam à cabeça da gente. É a pior tortura que se pode sofrer. Acredita. É pior do que partir os dois braços e as duas pernas, mais uma dúzia de costelas e ainda rachar a cabeça, tudo ao mesmo tempo. É uma dor tão grande, tão grande!… É uma tortura indescritível. Não deixes que te internem.
Por fim fui chamado para a consulta. O psiquiatra, depois de me ter feito algumas perguntas para avaliar o meu estado, concluiu:
— O que você tem não é grave. É apenas um esgotamento, que não justifica um internamento. Vai fazer tratamento em regime ambulatório, que deverá durar um mês. Depois voltará para o mato, mas vai continuar a tomar os medicamentos que eu lhe receitar. Entretanto, virá cá uma vez por semana, para que eu possa avaliar a evolução da sua situação e corrigir a medicação em conformidade.
Receitou-me um antidepressivo, um ansiolítico e um soporífero e mandou-me embora, recomendando-me que voltasse dali a uma semana. Fiquei colocado no Depósito de Adidos de Angola, voltando ao “campo de concentração” da Samba uma vez por semana. Ao fim de um mês, regressei à minha companhia ainda em início de recuperação psíquica, mas em vez de ficar na sede da companhia, no Zádi, fui colocado no destacamento de Banza Sosso, onde dois execráveis agentes da PIDE/DGS que lá se encontravam quase me puseram maluco de uma vez por todas. Não tive eletrochoques na Psiquiatria, mas tive que aturar pides em Banza Sosso, que foi quase a mesma coisa. Só quando me mudei para o destacamento de Malele é que melhorei, e muito.
Estou completamente convencido de que, se hoje não sofro de stress pós-traumático de guerra, devo-o à minha ida à consulta de Psiquiatria antes de terminar o serviço militar obrigatório, porque fui tratado a tempo e horas, ainda "a quente".
Banza Sosso, o único posto fronteiriço que estava aberto em toda a fronteira norte de Angola. Era reduzidíssimo o movimento neste posto. Além de um ou outro turista europeu ocasional que estivesse viajando através de África, praticamente só passavam por aqui camiões carregados de peixe congelado, vindo da Baía Farta e de Moçâmedes, para abastecimento da cidade de Kinshasa. Na imagem, veem-se em primeiro plano quatro casas. Na casa mais à esquerda ficavam as instalações aduaneiras propriamente ditas, onde eram atendidas as pessoas que atravessavam a fronteira, para controle de passaportes, vistos, carga, etc. Na segunda casa a contar da esquerda estava instalada a PIDE/DGS. As duas edificações mais à direita pertenciam à Polícia de Segurança Pública de Angola (PSPA), que desempenhava as funções de Guarda Fiscal. O conjunto de edificações que se vê em último plano, à esquerda, fazia parte do destacamento militar, onde permaneci durante cerca de três meses em condições de grande sofrimento psíquico. Este sofrimento foi causado pelos dois facínoras da PIDE/DGS que estavam colocados no posto fronteiriço, os quais tentaram por todos os meios tirar partido do estado de ansiedade em que ainda me encontrava para conseguirem vantagens ilegítimas. Só não sucumbi à sua permanente pressão psicológica, porque os meus maravilhosos furriéis fizeram tudo para me aliviar das preocupações do comando do destacamento, resolvendo os problemas à medida que iam surgindo, antes mesmo que eu tivesse conhecimento deles (Foto de autor desconhecido)
Comentários: 6
Quando vi o título do seu post, na minha lista de blogues, pensei que estava relacionada com a covid e tudo o que se passa agora à volta disso e dos confinamentos. Depois leio este relato e o que se passa hoje, em termos psicológicos, quase nos parece insignificante.
E afinal nem todas as pessoas, internadas nesse hospital, estavam assim tão mal, pois se conseguiam ter esse discurso tão claro!
Devia ser terrível um internamento num local desses.
Desejo-lhe um bom domingo:))
Fernando antes de comentar posso dar uma opinião que seria aumentares um pouco a letra dos teus artigos, tornavam-se mais fáceis de ler ! Isto é uma mera opinião/sugestão !
Embora estivesse mobilizado para Angola, já o foi após 25 de Abril e Angola na altura já estava independente. Esta é história de uma realidade bem diferente. Obrigado por no-la dares a conhecer.
Que histórias poderão contar as paredes do Hospital Júlio de Matos aqui em Lisboa, onde muitos anti-salazaristas eram internardos, só por serem contra o regime e possivelmente sujeitos a tratamentos deprimentes.
Escreves
«Estou completamente convencido de que, se hoje não sofro de stress pós-traumático de guerra, devo-o à minha ida à consulta de Psiquiatria antes de terminar o serviço militar obrigatório, porque fui tratado a tempo e horas, ainda "a quente"»
Eis um saldo positivo que, agradado, registo.
Mas que "aquilo" não foi fácil, não foi... Não passei pela experiência que narras, mas junto a tua à minha...
Amiga Isabel,
Nós temos a ideia de que os "malucos" vivem num mundo de fantasia, mas nem sempre isto é verdade. Mesmo que seja só durante alguns instantes, os "malucos" também têm momentos de lucidez. Deve ser terrível para eles verificarem a trágica situação em que se encontram. O que mais me emociona no contacto que tive com os doentes internados, foi a sua preocupação em evitar que eu caísse na armadilha em que eles mesmos estavam enredados. Eles poderiam ter-se alegrado perante a eventualidade de terem mais um companheiro de infortúnio, mas não. Não só não se alegraram, como me alertaram para o perigo que corria. Aqueles "malucos" foram mais humanos do que alguns indivíduos que se julgam ter o juízo todo.
Amigo Ricardo,
Já desde há muito tempo que me tenho dado conta do tamanho cada vez mais reduzido das letras do meu blog, em resultado do aumento cada vez maior da resolução dos ecrãs dos computadores. O tamanho das letras tem sido determinado pelo próprio Blogger, sem que houvesse qualquer intervenção da minha parte. Agora que lançaste o aviso, enchi-me de coragem e fui pesquisar o "tema" do blog em HTML, no sentido de tentar encontrar as linhas de código onde o tamanho das letras estivesse definido, com vista a aumentá-lo. Parece-me que encontrei e julgo que as letras já estão um pouco maiores. Espero não ter estragado mais nada e aguardo a tua opinião sobre o resultado, se fizeres o favor. Achas que o blog já está mais legível?
Quanto ao Hospital Júlio de Matos, lembro-me de ter visto em 1975 um filme verdadeiramente chocante sobre as condições em que os doentes foram encontrados nesse hospital logo a seguir ao 25 de Abril. O filme chamava-se "Júlio de Matos... Hospital?" O Youtube não tem o filme completo (eu pelo menos não o encontrei), mas há uma espécie de trailer, que por si só já é terrivelmente eloquente. Ele está em https://www.youtube.com/watch?v=WhYXxO8Mgxk. Os doentes que encontrei no Serviço de Psiquiatria Militar, em Luanda, não eram nada parecidos com os deficientes profundos que se veem no filme, nem pouco mais ou menos. Os deficientes profundos não iam para a tropa. Ficavam isentos, como é evidente.
Amigo Rogério,
O que se passa comigo a respeito da ausência de stress pós-traumático parece milagre. Eu estive debaixo de fogo várias vezes, vi pessoas a morrer e, contudo, NUNCA sonhei com a guerra, nem com mortos e feridos. Nunca, nunca, nunca. Nem uma única vez. Durmo profunda e tranquilamente, sem pesadelos nem sobressaltos. Se eu esta noite sonhar com a guerra, será a primeiríssima vez. O tratamento de que fui objeto em Luanda deve ter acionado uma espécie de mecanismo mental, que bloqueia todas as recordações chocantes durante o sono. Custa a acreditar, não custa?
Fernando ficou bem melhor a alteração do tamanho da letra no Blogue. Obrigado
Quanto ao link sobre o Hospital Júlio de Matos, não o conhecia e fiquei impressionado com o que vi. Muito Obrigado
Ricardo, eu é que agradeço. Ficou mais legível assim.
Foi muito mais fácil do que eu imaginava. Abri o código HTML do Tema do meu blog e fui à procura da palavra "font". Quase no princípio da página, encontrei logo as seguintes linhas consecutivas:
font-size/* */:/**/small;
font-size: /**/small;
Mudei a palavra "small" para "100%" em ambas as linhas e o blog apareceu-me logo com as letras bem grandes. Grandes demais, até. Fui reduzindo o tamanho das letras até ficar pelos 91%. As duas linhas ficaram assim:
font-size/* */:/**/91%;
font-size: /**/91%;
E pronto. É com este tamanho que o blog se apresenta agora. Se for preciso voltar a alterar o tamanho das letras, já sei onde devo mexer.
Um grande abraço
Fernando Ribeiro
P.S. - Descobri também que o editor HTML do novo Blogger é uma grande porcaria, mas isso agora já não interessa mais.
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