Vítimas "indignas"
(Foto de autor desconhecido)
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Apesar de ter vivido em Portugal nos últimos 32 anos, nasci e cresci em Nova Iorque, por isso, nos dias que se seguiram aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, recebi cerca de cinquenta e-mails de amigos e conhecidos de todo o mundo a perguntar se os meus amigos de infância e familiares estavam bem e em segurança. Nas mensagens, a grande maioria deles expressou a sua solidariedade comigo e com outros nova-iorquinos. No entanto, alguns escreveram que, embora não fossem a favor do terrorismo, podiam facilmente compreender que os muçulmanos se opusessem violentamente às recentes guerras travadas pelos Estados Unidos no Iraque – bem como ao apoio dos Estados Unidos a Israel – e estivessem ansiosos por se vingar dos americanos. Dois destes meus amigos não exprimiram qualquer empatia pelas vítimas do ataque e explicaram que os Estados Unidos “estavam a pedir isso” – sendo “isso” um ataque em solo americano.”
Apesar de eu defender há décadas que a política externa dos Estados Unidos no Médio Oriente era, em grande parte, criminosa, aquelas mensagens pareceram-me incrivelmente insensíveis e inadequadas – e, dado o estado de preocupação e de choque em que me encontrava, pareceram-me também bastante crueis. No caso de um deles, aproveitei para lhe perguntar se ele diria a um amigo cujo filho acabara de morrer com uma overdose de drogas que o jovem estava “a pedir isso”? Ou se, pelo contrário, não expressaria a sua dor e preocupação? Acrescentei que há um momento para exprimir a compreensão e a solidariedade e outro momento – mais tarde – para tentar fornecer algum contexto e oferecer explicações. Disse-lhe também que nesse momento atribuir a culpa a quem quer que seja, e não aos terroristas, era completamente inútil porque – numa altura em que os nova-iorquinos procuravam familiares desaparecidos e enterravam os seus mortos – isso só servia para despertar sentimentos de ressentimento, em mim como em outros americanos. Sugeri que daí a alguns meses, se ele quisesse, poderíamos tomar um café juntos e conversar sobre como a política externa dos EUA tinha contribuído para o aumento de ativistas muçulmanos que acreditavam que o assassinato de 3.000 homens, mulheres e crianças era justificável e poderia promover a sua causa.
Nunca me respondeu. Nunca mais falei com ele.
E assim, uma das lições que os ataques aos Estados Unidos em 2001 me ensinaram é que há pessoas que se mostram incapazes de empatia se as vítimas são de países cujas políticas essas pessoas não aprovam ou cujos líderes se comportam de maneiras que consideram censuráveis. Para eles, existem “vítimas dignas” e “vítimas indignas”. No caso do 11 de setembro, os 3.000 nova-iorquinos e outros que morreram nos ataques terroristas às Torres Gémeas eram, segundo essas pessoas, “indignos” por causa da política externa do governo dos EUA.
Menciono isso agora porque alguns comentadores e políticos decidiram que os homens, mulheres e crianças ucranianos assassinados em Bucha, Mariupol e outras cidades e vilas de toda a Ucrânia também são “vítimas indignas”. Porquê? Porque o presidente Zelensky e a liderança do país tiveram a audácia de desejar aproximar-se do resto da Europa e – talvez brevemente depois – buscar a adesão à NATO. Esse foi um erro imperdoável, dizem eles, e suficiente para explicar a invasão de Putin e a sua brutalidade implacável. De facto, muitas dessas pessoas acreditam que o ditador russo pode muito bem ser afinal a verdadeira vítima deste conflito. Por exemplo, a deputada trabalhista do Parlamento Britânico Dianne Abbott disse sobre o conflito durante a segunda semana de fevereiro: “Vemos que os Estados Unidos decidiram que precisam de enviar as suas forças militares e outros tropas da NATO para as fronteiras da Rússia. Isso por si só deveria mostrar-nos que as alegações de que a Rússia é o agressor devem ser tratadas com ceticismo”.
Em Portugal, o Partido Comunista recusou-se a denunciar a invasão da Rússia quando no final de fevereiro foi votada no Parlamento uma moção nesse sentido. O seu porta-voz, João Oliveira, ecoando os sentimentos de Abbott, disse que os Estados Unidos eram responsáveis pela guerra e “estavam prontos a sacrificar todos os ucranianos e europeus para promovê-la”.
Nas últimas semanas, Oliveira, Abbott e muitos outros políticos e comentaristas em toda a Europa fizeram o possível para transformar Putin em um peão reativo manipulado pela OTAN, pelos Estados Unidos, pelo presidente ucraniano Zelensky e pela Comunidade Europeia. Todos eles de alguma forma conseguem ignorar o facto de que toda a carreira ditatorial de Putin tem sido baseada numa sede insaciável de dominação e poder – e muitas vezes caraterizada por atos de extrema crueldade.
Não, neste momento, enquanto estão a ser cometidos crimes de guerra na Ucrânia – enquanto há pais que escrevem os nomes e os endereços dos filhos na sua própria pele para o caso de eles ficarem órfãos – eu não posso aceitar que os ucranianos sejam “vítimas indignas” ou que eles estavam “a pedir isso”. Putin tinha alternativas à invasão e é responsável por cada morte causada pelos ataques do exército russo – assim como é responsável pela prisão de milhares de russos corajosos que manifestaram a sua oposição a esta guerra imoral. Haverá muito tempo para oferecer teorias sobre o que a Ucrânia e o Ocidente podiam ter feito para evitar este conflito quando a guerra terminar e os mortos estiverem enterrados. Mas este não é o momento. Este é o momento da empatia e da solidariedade – de ajudar ativamente os ucranianos enquanto lutam pela sua própria sobrevivência.
Richard Zimler, escritor norte-americano. Tradução de António Costa Santos. O original, em inglês, foi publicado em Tikkun
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