A triste história do zero poeta
Numa certa conta havia
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.
Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: «Oh!»
(Nos livros e nas seletas
o que mais o comovia
eram os «Ohs!» que os poetas
metiam nas poesias!)
Um «Oh!» lírico e profundo,
um só «Oh!» lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!
E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glórias, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança;
além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que o tio
lhe pedira para guardar;
e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo…
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!
A alma! Como queria
gritá-la num «Oh!» sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...
Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética.
E se indignasse e etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!
Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer «Oh!»…
Manuel António Pina (1943–2012)
Comentários: 3
Deliciei-me com este poema do Manuel António Pina!
Conheço o poeta e alguma da sua obra, mas desconhecia esta pequena delícia.
Obrigada e um abraço, Fernando!
Uma homenagem a que me associo. Saudoso poeta.
Muito obrigado pelos seus comentários, que são sempre bem-vindos.
Eu tencionava evocar Manuel António Pina no décimo aniversário da sua morte, mas outras tarefas se interpuseram e só pude fazê-lo no dia seguinte. Não importa; qualquer dia é bom para homenagear e recordar Manuel António Pina.
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