A arte de um santeiro
Não se dizem escultores, nem chamam arte às estátuas que produzem. São os santeiros ou imaginários, assim chamados porque são eles que fazem as imagens dos santos que povoam os altares das igrejas, capelas, santuários e oratórios. Não frequentaram qualquer curso de Belas-Artes nem estão a par das correntes artísticas no domínio da escultura, antes foram aprendizes em oficinas de mestres de fama reconhecida, até que eles mesmos se tornaram mestres também. Apesar de tudo isto, mesmo com poucos ou nenhuns estudos, alguns deles, pelo menos, tornaram-se verdadeiros artistas. Merecem, por isso, todo o nosso respeito.
Em Portugal, os principais centros de produção de estatuária sacra situam-se a norte: na Maia e na vizinha localidade de São Mamede de Coronado, que pertence ao concelho da Trofa, assim como em Braga e em Vila Nova de Gaia. Por tradição, os santeiros transmitem frequentemente a sua arte de pais para filhos e para netos, constituindo assim verdadeiras dinastias, como é o caso, no concelho da Maia, da família Sá e da família Maia, e em São Mamede de Coronado daquela que é, talvez, a mais respeitada de todas as dinastias de santeiros, a da família Tedim.
Suponhamos que uma determinada confraria decidiu encomendar a um santeiro uma imagem de Santo António, para colocar no altar da sua capela. Suponhamos, também, que o santeiro lhes propôs a feitura de uma imagem que representasse Santo António de mãos levantadas para o céu, em vez de ter o Menino Jesus ao colo. «Afinal», diria o santeiro, «o Santo António não andou a vida toda com o Menino ao colo de um lado para o outro». Qual acham que seria a reação dos irmãos da confraria? Sem dúvida nenhuma que seria uma reação de total rejeição. «Nem pensar», diriam os irmãos, «o Santo António tem que ser representado com o Menino ao colo, caso contrário não será o Santo António, mas outro santo qualquer».
Nestas condições, as representações dos santos nas imagens têm forçosamente que obedecer a um conjunto de estereótipos, que permitam o reconhecimento imediato do santo ou da santa sem necessidade de ler qualquer legenda. O Santo António terá que ser representado com o Menino Jesus ao colo, o São Sebastião terá que ser representado amarrado a um tronco e crivado de setas, e por aí adiante. Não há como fugir a isto. Ou o santeiro faz as imagens tal como os potenciais clientes pretendem, ou estes cancelam a encomenda e vão bater a outra porta. Por isso, não sejamos demasiado exigentes com os santeiros. Mesmo que quisessem, eles não poderiam fazer de outra maneira. É o seu próprio ganha‑pão que está em causa.
Um dos maiores santeiros portugueses dos últimos cem anos, senão mesmo o maior de todos, foi o maiato Amálio Maia, que só tinha a quarta classe da Escola Primária. É claro que Amálio Maia fez muitas imagens convencionais, de acordo com o que lhe era encomendado, sem que pudesse dar largas à sua criatividade, mas, por vezes, esta criatividade manifestava-se em figuras secundárias, moldadas à margem das figuras principais. Vendo estas figuras secundárias, sentia-se que podia haver ali um talento que estava reprimido pelas convenções.
Um dia surgiu a oportunidade de Amálio Maia dar largas às suas qualidades de Artista com A maiúsculo, com a encomenda de uma estátua que representasse a Sãozinha, a jovem de Alenquer que morreu com fama de santidade. Então, sim, como não existia um estereótipo da Sãozinha a que se visse obrigado, Amálio Maia pôde finalmente pôr toda a sua alma de artista na feitura daquela que terá sido a sua obra-prima: uma escultura da Sãozinha.
Sérgio O. Sá, que pertence a uma família de santeiros, embora não exerça a profissão, descreveu assim a criação da estátua da Sãozinha por Amálio Maia:
Cerca de nove anos depois da morte da "Florinha de Abrigada", como lhe chamavam, os seus progenitores decidiram mandar esculpir um retrato de corpo inteiro, em pedra de Ançã, em memória de sua malograda filha a quem o destino deixou viver apenas dezassete anos. Para o efeito, escolheram a oficina Maias Irmãos, confiantes no talento do seu mestre, e passaram por lá. Levaram fotografias, vestes e calçado que Sãozinha tinha usado. Dialogaram, acertaram orçamento e deixaram a encomenda.Com os elementos e sugestões deixados, Amálio Maia partiu para a elaboração do respectivo modelo, em barro, com 0,80 m de altura. Modelo que, depois de aprovado pelos encomendadores, passou para as mãos dos colaboradores que, sobre o bloco de pedra, trataram de fazer emergir as formas que, no modelo, já estavam bem definidas.
Acompanhando, atento, o nascimento da estátua, cuja altura correspondia à do modelo — 0,80 m — o mestre aguardava, com paciência e alguma ansiedade à mistura, o momento de se entregar a ela, de passar ao tratamento do rosto, dos cabelos, das mãos, proceder ao aperfeiçoamento de um ou outro detalhe e determinar a sua conclusão.
Essa formosa estátua, produzida em 1949, encontra-se na Casa da Sãozinha, em Abrigada — Alenquer.
Sérgio O. Sá (Sérgio de Oliveira e Sá), Amálio Maia — Um santeiro maiato de nome nacional, Edição de Autor, Maia, 2020
Comentários: 2
Sem dúvida, um Artista com A maiúsculo, Amálio Maia!
Abraço!
Obrigado pelo comentário, Maria João. É verdade que o talento não se aprende nas escolas, mas precisa de um ambiente favorável para poder desabrochar. Foi o que parece ter acontecido com Amálio Maia.
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