01 março 2024

A vida

Na manhã da existência, a luz inunda
Alegremente a terra que pisamos…
Cantam as aves matinais nos ramos
E a abóbada do céu é mais profunda.

Quando o dia vai alto, já lutamos
Como um batel que a tempestade afunda;
E das fúrias do mar que nos circunda,
Do que éramos, então, pouco salvamos!

Dilui-se a luz da tarde melancólica;
O Sol desmaia, e numa paz bucólica
A sombra da montanha alastra e cresce…

E nós, saudosos da manhã que fomos,
Entristecemos a pensar que somos
A tarde de nós mesmos que escurece!…

João Saraiva (1866–1948)


(Foto de autor desconhecido)

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Que belíssimo soneto de um poeta que não me recordo de alguma vez ter lido...

Obrigada, Fernando!

02 março, 2024 13:15  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

O autor deste soneto foi o meu bisavô João Baptista Pinto Saraiva, que foi pai do meu avô materno. No seu tempo, ele foi bastante conhecido e aplaudido, sobretudo por causa dos versos satíricos que ele escrevia e que eram publicados em jornais de Lisboa. Eram versos que gozavam com a classe política da época, quase sempre sem ofender os visados. Estes versos agora não nos dizem nada, porque as personagens que ele satirizava caíram no esquecimento, tal como ele também caiu, aliás.

O meu bisavô entrou para a política no tempo da Monarquia, quando desempenhou o cargo de governandor civil de Vila Real. A seguir, foi eleito deputado pelo círculo do Porto, na lista do Partido Regenerador. Era deputado quando se deu a implantação da República em 5 de outubro de 1910, mas não ficou desempregado. Apesar de ser monárquico, continuou em São Bento, pois foi admitido como funcionário do Parlamento. A tarefa que ele passou a desempenhar, e que foi a sua até à reforma, foi passar a escrito as sessões parlamentares. Naquele tempo não havia gravadores, alguém devia passar os discursos e as interpelações para o papel, e o meu bisavô, certamente, devia ter conhecimentos de estenografia.

Por via das funções que desempenhava, o meu bisavô conhecia os deputados todos pessoalmente, sabia das suas qualidades e dos seus defeitos e estava a par das jogadas de bastidores entre partidos e dirigentes partidários. Como tinha jeito para a poesia e possuía sentido de humor, passou a publicar pequenos poemas satíricos de sentido político, em alguns jornais de Lisboa, sob o peudónimo de "Rivol". Mas toda a gente sabia que era ele.

Quando a Primeira República foi derrubada e substituída pelo Estado Novo, um antigo deputado republicano, chamado Vasco Borges, passou-se de armas e bagagens para o novo regime e foi "eleito" para a Assembleia salazarista na lista do partido único, a União Nacional. O caso deu muito que falar, de tal modo que alguém pôs um anúncio no jornal dizendo: "CASACAS VIRAM-SE" e por baixo o número de telefone do deputado... O meu bisavô também não lhe perdoou e dedicou-lhe os seguintes versos:

Na sala do Parlamento,
O da União Nacional,
Alguém lê em gesto lento,
Descompassado e banal,
Os eleitos de São Bento.
Eis que uma figura vem,
Ouve-se um nome: o de Vasco,
Os ecos repetem «asco»
E repetem muito bem.

04 março, 2024 03:06  

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