21 setembro 2015

Guerra

Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama…
Os olhos que já não pestanejam com a poeira…
As bocas de recados perdidos…
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes…

Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas… — e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
— tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

Cecília Meireles (1901–1964), poetisa brasileira


Aleppo, Síria, 3 de outubro de 2012 (Foto: Manu Brabo)

Comentários: 3

Blogger flor escreveu...

o europeu, confortável na sua casa, não quer verdadeiramente saber.

21 setembro, 2015 09:25  
Blogger Chama a Mamãe! escreveu...

Triste. Nunca senti essa dor. Sou egoísta, sim! Tenho horror à menor possibilidade de a sentir. Mas consigo, na minha mesquinhez profunda, imaginar milésima proporção do que este pai - e tantas mães - sentiram, estão a sentir. Perdas dolorosas, numa guerra tão idiota e desumana...quanto tem sido o Homem.

21 setembro, 2015 17:19  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara "flor", obrigado pela sua visita. O europeu não quer saber, nem mesmo quando lhe batem à porta, desesperadas, as vítimas das guerras que ele mesmo ajuda a alimentar.

Cara "Chama a Mamãe!", todas as guerra são idiotas e desumanas. São fruto da ambição desmedida de poder e de riqueza. Obrigado pelo seu comentário, também.

22 setembro, 2015 03:21  

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