Grito
De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.
De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor eléctrica
do mais desvairado
coração.
De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.
De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.
De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.
De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.
De ti que levaste
a volupta da ambição
a trepar erecta
contra as leis do firmamento.
De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansassse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluido lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.
De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.
José Fanha
Placa dourada enviada para o espaço em 1972, a bordo da sonda Pioneer 10
Comentários: 5
Há tanto
tanto tempo
que nada lia do Fanha
Nem sei
por que bandas anda
Nem sei...
Um poema que nos toca profundamente, este "Grito"...
Abraço!
Excelente poema de José Fanha !
A placa que foi para o espaço não conhecia !
Fernando obrigado
Eu também nada sei de José Fanha. Vi este "Grito" na internet e resolvi republicá-lo, para não ser só o "Eu sou português aqui". É verdade que "Eu sou português aqui" é um excelente poema, mas o José Fanha também escreveu outros. Este "Grito" merece igualmente ser divulgado.
A placa enviada a bordo da sonda Pioneer 10 e outra igual a bordo da Pioneer 11 foram uma ideia do grande cientista e divulgador já falecido Carl Sagan. É uma mensagem de paz dirigida a quaisquer extraterrestres que eventualmente as venham a encontrar, daqui a muitos milhões, biliões ou triliões de anos. As sondas aí vão, a caminho do espaço profundo e de alguma forma de vida inteligente que possa tropeçar nelas, seja ela qual for. Nessa ocasião, talvez já nem a Terra e nem o próprio Sol existirão mais.
Enviar um comentário