No tempo da ditadura
ESTADO VELHO
Ah! Não há dúvida
Vocês existem, vocês persistem
Vocês existem com grémios e tribunais
Medidas de segurança e capitais
Plenários mercenários festivais
Grades torturas verbenas
Cativeiros de longas penas
Com vista para o mar
Para matar
Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço
Vocês existem bordados a ponto de cruz
Fazendo a guerra sugando o povo
Sorvendo a luz com Estoris, cocktails, recepções
Canastas e rallies
Whisky, cocktails, cherries
Trapeiras, esconsos, saguões
Discursos, salmão, lagostas
Pão duro, desespero e crostas
Sorrisos de hospedeiras
E assassínios de ceifeiras
Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço
Vocês existem, baionetas e chá com bolos
Cooperativas, clubes de mães
Concursos de gatos e cães
Cães de luxo para lamber
Cães polícias - polícias cães
Para morder
Barracas de lata para viver
Salários de fome para sofrer
Trapos, suor e lodo
Amáveis conversas de casaca
E sobre as nossas cabeças
A matraca
Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço
Ah! Não há dúvida
Vocês continuam a existir
Até ao raio que vos há-de partir
José Carlos Ary dos Santos
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras dos avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que não o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
sonhos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espete os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
Natália Correia
Comentários: 3
um Ary de intervenção, para lá do autor das letras das cantigas e dos fados... e sempre tão aguçado e poético... para além da actualidade que não se pode pôr em causa...
Inominável, não era o "Estado Velho" de Ary dos Santos que eu tencionava publicar aqui, mas sim a "Queixa das Almas Jovens Censuradas" de Natália Correia. No entanto, este último poema é bastante conhecido, dado ter sido cantado por José Mário Branco. Por causa disso, acabei por publicar só o poema do Ary.
Agora resolvi publicar também o poema da Natália. Porque não? A "Queixa das Almas Jovens Censuradas" é um lindíssimo poema, que descreve a formatação mental que o anterior regime pretendia inculcar nos jovens.
Assim, parece-me que este post ficou muito melhor, embora bastante longo.
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