A meia hora de sol
(Imagem de autor desconhecido) |
Eram casados, mas na verdade era como se o não fossem, pois quatro anos volvidos sobre o registo legal, continuavam "amantes" quer na paixão com que se entredevoravam quer na disponibilidade que entendiam dever preservar. Escolhiam-se dia a dia um ao outro. Não tinham horário para o amor. E, como a vida de Mateus estava sempre ameaçada, muitos dos instantes em que se uniam tinham para eles um gosto atormentado e exaltante de primeira vez e de nunca mais. Mas eram alegres. Iam jantar fora com frequência e até passavam fins de semana muito íntimos, quase clandestinos, em pequenos hotéis retirados, de atmosfera civilizada e sorridente, governados por estrangeiros.
Na manhã em que o vieram buscar — dois homens à porta e outros dois na rua — ele cerrou os dentes com força, recusando-se à emoção em altura tal, e só lhe disse:
— Espera por mim, Júlia!
Mas beijou-a, primeiro na boca e depois nas mãos, com devoção, como a desfazer-se em água de alma, que nem ele jamais se apercebera de que lhe queria também assim.
No isolamento da cela reinventava-a, rememorava dia a dia, minuto a minuto, os quatro anos percorridos lado a lado; lamentava o tempo que não lhe dava por esta ou por aquela razão; tinha-a, com toda a gama dos seus olhares, queixumes, suspiros, gritos e êxtases, em todos os alaridos raivosos da sua continência forçada. De noite, ele que briosamente velava, em face dos estranhos e de si próprio, pela sequidão dos seus olhos e pela nudez dos seus lábios, acordava debulhado em lágrimas, assistindo à agonia de ausência que ela, sozinha em casa, conheceria.
Depois foram as visitas — de cada vez meia hora de sol, mesmo que o sol exterior não luzisse no firmamento. Um vidro a separá-los, as palmas das mãos esposando-se, uma de cada lado dessa delgada, mas intransponível fronteira que os dividia. E quase nada conseguiam dizer. Falavam sobretudo pelos olhos, pelo tremer da boca, pelo pasmo atroz do final na ocasião de se separarem. A tarde que se seguia era de todas a mais dolorosa, mas ainda quente do calor de vida que ela trouxera. E sucedia-se o deserto de uma nova, longa, tórrida semana, contando os dias que faltavam para a luz breve de outra visita. Durante meses, e na perspectiva de anos iguais. (...)
As visitas tornavam-se, por vezes, amargas, extenuantes. Júlia adivinhava-lhe nas sombras e nos vincos do rosto a escureza da suspeita e, ao mesmo tempo, uma adoração descabelada (porque tudo ele ia, com efeito, obsessivamente concentrando nela) adoração, de resto, também odienta, a raiar por essa mesma forma de amor possessivo e dependente que dantes ele considerava — com o seu sorriso mais racional — uma forma de alienação. (...)
— É melhor que nunca mais voltes. Não, não venhas. Só nos ferimos um ao outro. Saio daqui, por dentro, a escorrer sangue. E tu vais-te embora ainda em pior estado.
— Mas, Mateus, meu querido...
E ele voltou-lhe as costas (só, aliás, para que ela não o visse chorar). O guarda veio, abriu a porta, do lado dela, com um pesado ruído de chaves ferrugentas. Mateus soube, pelo som leve, mas lento, dos passos, que Júlia partira.
E nunca mais, em manhãs de sol, a sombra dos varões da janela se tornou em flores na parte caiada da cela, no dia que fora o da visita.
Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), in Contos da Solidão, obra escrita na prisão de Caxias (trecho reproduzido do sítio http://boticelli.no.sapo.pt/)
Comentários: 2
Muito bonito, obrigado por me dar a conhecer...
Caro antonio-enrique silva, folgo por saber que gostou.
Foi preciso que Urbano Tavares Rodrigues morresse para que nos lembrássemos dele. Ele estava muito esquecido, injustamente, talvez por ser de um partido "errado". E no entanto, ele também contribuiu para a instauração da democracia em Portugal. Há muitas maneiras de fazer censura, mesmo a um escritor com a craveira de Urbano Tavares Rodrigues.
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