Cancioneiro do S. João portuense
Pormenor de uma cascata de S. João (Foto de autor desconhecido, encontrada em Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos Nossos Dias) |
Como todas as manifestações sociais, um acontecimento com a grandeza cívica das festas mais populares do universo portuense teria as suas tradições poéticas e musicais. Delas, destaca-se o conjunto das canções popularizadas através de mais de um século de despiques, «rusgas», e «ranchos» que, cantando mais do que dançando (a «rusga» sanjoaneira caracteriza-se por percorrer itinerários mais ou menos longos), originaram um cancioneiro próprio da cidade, evocativo dos seus lugares, pessoas e eventos.
As barqueiras do Douro cantavam, com intenções sarcásticas e eróticas:
O S. João prometeu,
prometeu e há-de dar,
ramalhos para a capela,
raparigas para os armar.
No altar de S. João,
nasceu uma cerejeira:
ditosa será aquela
que colher a primeira.
Os bairros e locais de festa são recordados desta maneira:
S. João foi à Lapa,
da Lapa foi ao Bonfim,
e viu tudo embandeirado
com bandeiras de cetim.
Ó meu S. João do Porto,
quando chegas está tudo morto
pra nas fogueiras saltar!
Ai, meu S. João do Bolhão e Fontaínhas,
das cascatas enfeitadinhas
e dos balões pelo ar!…
Um dos rituais sanjoaneiros era descrito na quadra seguinte, associado às cebolas procuradas neste dia como bruxedo:
De onde vindes, S. João,
que vindes tão molhadinho?
— Venho de entre aquelas hortas,
de regar o cebolinho.
Os símbolos vegetais dos ritos são também motivo de canções:
Não há S. João sem cravos,
alfazema e rosmaninho;
nem coração que se preze,
sem moçoila no caminho.
A crença nas virtudes casamenteiras do santo é assim expressa:
O S. João, no Porto,
faz casamentos a esmo.
Em Lisboa, Santo António,
por pirraça, faz o mesmo!
Se fordes ao S. João,
trazei-me um S. Joãozinho.
Se não puderdes cum grande,
trazei-me um mais pequenino.
Ó meu S. João do Porto,
ó meu santo pequenino!
Quero-vos para padrinho
do meu primeiro menino.
O poeta António Aleixo não deixou de cantar a feição amorosa, bem portuense, do culto sanjoaneiro:
São no Porto as Fontaínhas,
onde as raparigas vão,
como bandos de andorinhas,
na noite de S. João.
Na revista popular «O Sonho do Zé», apresentada nas «Janeiras» de 1931 pelo grupo de cantadores «Os graciosos», apareciam os três santos populares cantando ao desafio:
Santo António:
Estou deveras descontente
Com o que se passa na Terra.
Vou já para o céu de repente,
Só desgraça a Terra encerra.
Julguei que vinha gozar
As delícias dum peixão,
Mas só cá vim encontrar
Miséria e podridão.
Não quero mais
Tempo perder,
Com mulheres tais
Não quero entreter,
As vossas bilhas
Quebradas… estão,
Por elas — ó filhas
Não dou um tostão.
S. Pedro:
Todos me chamam careca,
mas eu sorrio-me com isso,
Muitas damas para aí
Já também rapam o toutiço.
Se não fosse recear
Cometer um crime grave,
Gostava eu de lhes rapar,
Com a ajuda desta chave.
S. João:
Ó raparigas formosas,
Acendei vossas fogueiras,
Correi para mim pressurosas,
Sorridentes e fagueiras.
Dai ao vosso S. João
Todo o vosso amor,
Que ele em compensação
Dá-vos um menino primor.
Meus amores, quem me dera.
Gozar convosco um bocado;
Nunca mais santo eu era,
Que cometeria um pecado.
Coro:
Somos três santinhos
Muito foliões,
Queridos dos povinhos,
Vimos aos peixões,
Sentir sensações,
Gozar aos bocadinhos.
Num dos arraiais dos subúrbios, que se manteve com certa autonomia (embora decrescendo de fulgor nos últimos anos, voltou, impante, com as suas luzes do Passeio Alegre a quebrarem a cerração fozeira), no S. João da Foz, uma canção de raparigas dizia:
Ó meu S. João Baptista,
quem vos deu as calças largas?
— Foram as sanjoaneiras
co dinheiro das pescadas.
O cancioneiro sanjoanino está vivo. Nas cascatas de 1987 poetou-se farta e tripeirissimamente. Assim, as cascatas do Largo da Bouça ostentavam quadras como estas:
Meu querido S. João,
meu santo abençoado:
agradeço-te humildemente
este festivo feriado.
Atenção às marteladas,
ó raparigas solteiras;
nesta noite é tudo festa,
e depois vê-se as asneiras.
E na cascata da Rua de Álvaro Castelões, entre outros versos, lia-se:
S. Joãozinho, meu santo,
és um amigo a valer,
faço a cascata em teu nome,
fi-la este ano, anda cá ver.
E na cascata do Carvalhido:
São João, meu amor,
dá-me um disco voador.
São João, meu amigo,
anda passear comigo.
São João, meu amigo,
dá-me um balão,
pra ir ter contigo
e te dar um beijão.
E fechamos a amostra do cancioneiro dedicado ao santo-mais-popular, com esta quadra simpática e expressiva do afecto que o envolve:
S. João adormeceu,
de cansado, no caminho,
e ficou fazendo guarda,
a seus pés, o cordeirinho.
Hélder Pacheco, Tradições Populares do Porto, Edição revista e atualizada, Editorial Presença, Lisboa, 1991
O meu barbeiro é poeta popular e todos os anos participa nos concursos de quadras de S. João, que são organizados pelo Jornal de Notícias. Até agora ainda não ganhou qualquer prémio, mas não desiste. O seu entusiasmo não esmorece nem um bocadinho. Todos os anos envia as suas quadras para o jornal, cheio de esperança renovada. «Será que vai ser desta vez que vou ganhar algum prémio?», perguntou-me ele com um brilho nos olhos. «No ano passado já tive uma menção honrosa!»
Eu não sei se este ano ele ganhou alguma coisa, mas desconfio que ainda não foi desta. É que, no concurso de quadras de S. João do Jornal de Notícias, aparecem quadras de elevado nível literário. Não têm semelhança com algumas das quadras de pé quebrado aqui citadas por Hélder Pacheco.
As quadras vencedoras do 86º Concurso de Quadras de S. João do Jornal de Notícias, referente a este ano de 2014 e distiguidas por um júri constituído por Germano Silva, Isabel Pereira Leite e Maria Luísa Malato, foram as seguintes:
1º PRÉMIO
Do barro fomos tirados
e somos, desde essa data,
bonecos articulados
em monumental cascata.
Tlim
2º PRÉMIO
A saudade é o que resta
de uma fogueira apagada.
É como vir de uma festa
trazendo o cheiro e mais nada.
Saudosa
3º PRÉMIO
S. João já foi a votos
e ganhou com maioria.
O lema dos seus devotos
é reinar até ser dia.
Craveiro
4º PRÉMIO
Como um balão bem aceso
não quero baraço ou grade.
Quem viveu num fogo-preso
quer morrer em liberdade!
Liberal
5º PRÉMIO
O São João é do Porto,
deste Porto hospitaleiro,
uma fonte de conforto
onde bebe o mundo inteiro.
Rodela
6º PRÉMIO
Desde a minha tenra idade
bebi em fontes sem fim;
hoje resta-me a saudade
da sede que havia em mim.
Augusto Fernando
7º PRÉMIO
Sinto que ao pôr na cascata
o meu olhar de menino,
mesmo de fato e gravata,
serei sempre pequenino.
Olhar
8º PRÉMIO
Não busques trevos da sorte
em jardins que desconheces
porque um viver sem ter norte
dá-te a sorte que mereces.
Leocádia
9º PRÉMIO
O mais lindo par de dança
pode bem ser, São João,
a mãe que embala a criança
bem juntinho ao coração.
Joana Margarida
10º PRÉMIO
Tantos há que vão correndo
a mostrar o que não são;
lembram os balões ardendo
que em cinzas caem no chão...
Chão
11º PRÉMIO
Eu não sei porque me pedes
que d'outros amores te conte...
Não fala de outras sedes
ao dar de beber a fonte!...
Gui-gui
12º PRÉMIO
Na noite de São João
ninguém consegue ser pobre!
Porque mesmo sem tostão
baila sempre como o nobre...
Arisca
Estas quadras e as vencedoras de todos os concursos anteriores, desde o ano 1929, podem ser lidas aqui: http://fotos.afasoft.net/porto/saojoao.htm.
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