O passarinho e o burro
Um garoto mostrava um rouxinol cativo...
Um pobre rouxinol, mais morto do que vivo,
A arquejar-lhe nas mãos, preso por um cordel!
Vendo o garoto a rir (porque a Infancia é cruel
Para as aves do céu), um filósofo austero
Mas bondoso, exclamou: «Criança, és como Nero!
A Tirania beija a bôca da Inocência
E faz dela a Maldade, a Fúria — a Inconsciência!
Essa ave, que prendeste, era a imagem alada
Da Liberdade a voar na abóbada azulada!
Era livre e cantava… O peito que respira
Livremente, criança, é um peito e uma lira!
Vejo um cordel infame e uma mão criminosa…
Essa ave que nasceu para cantar, gloriosa,
Nos álamos, à tarde, à beira dos riachos,
Quando o poente extingue os seus rubros fogachos,
Coitada! — vae morrer às mãos d'um assassino…
Nero era assim, tal como tu, em pequenino!
Deixa voar essa ave ao seu destino! Vês
Aquela árvore ao longe? É para ali talvez,
Que ela — livre afinal — ha-de voar, cantando…»
E o filósofo viu o pequeno chorando!
De repente, soltando o cordel que o prendia,
O rapazito mais alegre do que o dia
Soltou no espaço livre o rouxinol…
No entanto,
Tinha-se feito, em volta, um grande grupo… E ao espanto
Sucedeu-se depois um tocante sussurro…
Ora estavam no grupo um saloio e um burro.
Tinha ouvido o saloio o discurso eloquente
Do sábio, e comovido, exclamou: «Francamente!
A Tirania é um crime… Este homem tem razão!
Este burro, que é meu, acaso é livre? Não!
O seu destino qual será? Mistério immenso,
Insondável Mistério em que nem mesmo penso!
Ser escravo? — jamais! Este albardão que o oprime,
Da parte dele é oprobrio? É pois da minha, um crime!
Liberta-lo, é dever… Filósofo divino!
O dever é soltar o burro ao seu destino…»
E, tirando o albardão ao pobre do jumento,
Disse-lhe: « — És livre, — vae! — como o vento!…»
O burro, ao vêr-se livre, ergueu logo a cabeça…
— «Ao meu destino — sim!…»
Depois, trotando á pressa,
Com pasmo do saloio e aos coices de alegria:
— «O meu destino é este…» E entrou na Academia!
João Saraiva (1866-1948)
Ilustração: Maurício de Sousa |
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