Três poemas de Ana Hatherly (1929 – 2015)
ESTA GENTE / ESSA GENTE
O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente
Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente
Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente
Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente
O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente
Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente
NENHUMA!
A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente
PRÍNCIPE
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me
Ana Hatherly, pseudónimo literário de Ana Maria de Lourdes Rocha Alves, poetisa, romancista, ensaísta, artista plástica, etc. Faleceu há poucos dias com 86 anos de idade
Um poema visual de Ana Hatherly |
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