08 novembro 2020

O bolo refolhado


Isto não é bolo refolhado, porque não existe um tal bolo. É bolo folhado alentejano, cuja receita está nesta página (Foto de autor desconhecido)

        Era uma mulher casada com um homem muito ruim, que lhe batia todos os dias por qualquer coisa. Uma vez, ao levantar-se para o trabalho, de madrugada, disse ele para a mulher:
        — À noite, quando vier, quero para a ceia bolo refolhado. Olha lá, toma cuidado no que digo.
        A mulher não sabia o que era bolo refolhado, e foi ter com uma vizinha, para ver se ela lhe ensinava. A vizinha, que tinha muita pena da vida que ela levava, disse:
        — Deixe estar, que eu cá lhe arranjo isso; com certeza que o seu homem se enganou; há de ser bolo folhado. E levou-lhe à tardinha o bolo.
        Quando veio o homem do trabalho, pediu a ceia, e como não achou o bolo refolhado, berrou, ralhou, deu muitas pancadas na mulher; ao outro dia a mesma coisa. A mulher, coitada, foi ter com a vizinha, e ela disse-lhe:
        — Arranje-lhe vocemecê uma galinha guisada, que pode ser isso o que ele talvez queira.
        Volta o homem à noite, e mais pancadaria na mulher, por não lhe ter feito para a ceia o bolo refolhado, como mandara. Ao ir para o trabalho, outra vez a mesma recomendação. A desgraçada mulher não sabia como acabar aquele fadário, e foi ter com a vizinha a chorar.
        — Deixe estar, vizinha, tudo se arranja! Venha cá ter comigo à tardinha, vestida com as calças e o jaquetão do seu homem.
        A pobre mulher foi. Assim que chegou a casa da vizinha, também a achou vestida com as calças e casaco do marido dela; e partiram ambas com os seus varapaus para o sítio por onde o homem ruim havia de vir do trabalho. Puseram-se cada uma de um e outro lado do caminho. Quando o homem vinha a passar, diz uma:
        — Bate-lhe, S. Pedro!
        — Porquê, S. Paulo?
        — Porque pede à mulher o bolo refolhado.
        Moeram ao som desta cantiga o homem com pancadas, e depois de bem moído fugiram. O homem lá se arrastou para casa como pôde, e assim que viu a mulher pediu-lhe perdão de tê-la maltratado tanto tempo, e contou como lhe tinham aparecido no caminho S. Pedro e S. Paulo, que o desancaram em castigo de pedir o bolo refolhado, que era uma coisa que ele não sabia o que era.

Conto popular recolhido em Lagos, Algarve. Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843-1924)

Comentários: 3

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Afinal o homem, lá no fundo
nem era mau de todo
pois até acreditava em
santos...

O Teófilo
era um cómico

08 novembro, 2020 11:10  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Que era mauzinho, o homem, era, mas o medinho, às vezes, é mais forte que a maldade...

Abraço!

08 novembro, 2020 11:36  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Uma lição que se pode tirar desta história é que a resignação não é solução, mas para vencer a força bruta é preciso usar a esperteza.

10 novembro, 2020 00:57  

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