05 dezembro 2022

Pré-história de guerra


1.
a pomba foi morta pelo general

calculou    o sítio exacto
o lugar único     onde a morte esperava

no relatório omitiu a cor branca da vítima
e aquela leve pluma de ternura
visível no seu olhar     depois de morta

parecia mais pena     do que saudade ou terror
mais um enorme peso de braços caídos
do que o gelo transido do pânico

o general descreveu com precisão
a trajectória magnífica do tiro
o seu rigor     a rapidez fatal

com palavras antigas    sincopadas
ao ritmo dos tambores de mil batalhas

2.
quando pouco tempo depois lhe disseram
que o neto    o filho    a sua velha mãe
a mulher cujo sabor guardava dia a dia
a casa com jardim e duas árvores
a rua suave     a cidade onde nascera
eram agora uma nuvem espessa de cinza
onde a custo emergia o esqueleto de uma árvore sozinha

o general suspendeu o relatório
e teve um suor frio vindo da raiz da alma

mas quando lhe vieram dizer pouco depois
que era inútil mandar o relatório
porque o lugar que o ia receber não existia

o general chorou como um menino perdido

e foi então que o sol se perdeu numa nuvem de poeira
e um doce sabor a morte    azul e profundo
entrou pelo general até aos ossos

3.
a mão do general ficou ligeiramente tombada
sobre a folha do relatório vitorioso

ocultou um pouco a trajectória da bala
a palavra pomba parecia agora levemente manchada

e junto à porta o olhar fixo do jovem ajudante
era um vidro de espanto gravado no general

tudo à volta estava finalmente tranquilo
a paz fulminantemente conquistada

Rui Namorado


(Foto de autor desconhecido)

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

O poema é belíssimo e o grande derrotado é o vitorioso general. Esperemos, tão só, que algumas pombas sobrevivam a essa guerra cujo fim foi "fulminantemente conquistado".

Abraço!

05 dezembro, 2022 11:49  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

É de recear que, se a guerra desencadeada pelo vitorioso general for nuclear, então poderá não haver pombas sobreviventes, nem pessoas. Só baratas.

Um abraço.

07 dezembro, 2022 02:06  

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