23 setembro 2015

Princípio do outono

No outono, as folhas dos liquidâmbares do Parque de Serralves, aqui na cidade do Porto, adquirem cores extraordinárias (Foto: Johnny Mass)


Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo.

O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver; e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim de não sei onde.


Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz — tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que tenha, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono…

Fernando Pessoa (1888–1935), sob o heterónimo Bernardo Soares, in Livro do Desassossego

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