04 dezembro 2025

Passeando o cão


Excerto do filme Shall We Dance, de Mark Sandrich, com Fred Astaire e Ginger Rogers nos principais papéis

Promenade (Walking The Dog), do compositor norte-americano George Gershwin (1898–1937), pelo clarinetista Sebastian Manz, o pianista Martin Klett, o contrabaixista Lars Olaf Schaper e o Quarteto de Cordas Dinamarquês

01 dezembro 2025

d'Assumpção


Génesis I, 1958, óleo sobre tela de Manuel d'Assumpção (1926–1969), Câmara Municipal de Matosinhos
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Génesis II, 1960, óleo sobre tela de Manuel d'Assumpção (1926–1969), Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Homenagem a Tchaikovsky, 1963, óleo sobre tela de Manuel d'Assumpção (1926–1969), Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Manuel Trindade d'Assumpção foi um notável pintor abstrato português, que procurou refletir na sua obra um misticismo muito próprio, assente numa certa ideia de panteísmo. Por isso, os seus quadros não são meras representações abstratas sem significado, só porque lhe apeteceu pintá-los de uma determinada maneira. Eles representam uma busca interior por algo que o transcendia. Convém termos isto em mente quando nos defrontarmos com a sua obra, que contém muito mais do que apenas formas e cores abstratas e aparentemente sem sentido.

De ascendência transmontana, Manuel d'Assumpção nasceu em Lisboa em 1926. Aos 8 anos de idade foi viver para Portalegre, onde o seu pai, Luís d'Assumpção, possuía um estúdio de fotografia profissional. A iniciação na pintura do pequeno Manuel deu-se junto do pai, que tinha o curso superior de Belas-Artes, e do pintor modernista Miguel Barrias, que era então professor em Portalegre. No ano de 1947, Manuel d'Assumpção mudou-se para Paris, onde foi aluno de Fernand Léger.

Foi também em Paris que Manuel d'Assumpção travou conhecimento com o poeta António Maria Lisboa, com quem fez uma inabalável amizade e com quem partilhava a sua inquietação espiritual. Em 1953, porém, António Maria Lisboa morreu de tuberculose, com apenas 25 anos de idade, e Manuel d'Assumpção ficou profundamente abalado pelo acontecimento, tanto que nunca mais se recompôs. O espírito ansioso de Manuel d'Assunção acabou por mergulhar num vazio desesperado e sem saída, até que em 1969 o pintor se suicidou em Lisboa, num prédio de uma rua da Baixa Pombalina que tinha precisamente o seu nome, a Rua da Assunção.

29 novembro 2025

Una furtiva lagrima


Una furtiva lagrima, ária da ópera O Elixir do Amor, do compositor italiano Gaetano Donizetti (1797–1848), pelo tenor sueco Jussi Björling (1911–1960)

26 novembro 2025

Às onze da manhã de mil novecentos e sessenta e dois


Às onze da manhã de mil novecentos e sessenta e dois
quebrou-se o meu relógio entre Quipedro e Nambuangongo.
E desde então o tempo é um ditongo
entre não haver ontem e não haver depois
no meu relógio entre Quipedro e Nambuangongo.

Não sei se riam se choravam se gritavam
eu não sei que palavras se diziam.
Estão ali estão ali. E disparavam.
E de súbito um berro. E de súbito um estrondo.
E não sei que diziam: se choravam se riam.
Estão ali estão ali. E disparavam.
Às onze da manhã entre Quipedro e Nambuangongo.
E nunca mais houve ontem nem depois.
São onze da manhã de mil novecentos e sessenta e dois
no meu relógio entre Quipedro e Nambuangongo.


Manuel Alegre, in Nambuangongo, Meu Amor


Militares do 4º Grupo de Combate da Companhia de Artilharia 2783, na picada entre Quipedro e Nambuangongo, no noroeste de Angola (Foto de Filipe Manuel Costa Martins)
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21 novembro 2025

Dois frescos de Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo que não existem


A Batalha de Anghiari, parte central de um cartão desaparecido, para um fresco inacabado e a seguir destruído de Leonardo da Vinci (1452–1519), copiada por Pieter Paul Rubens (1577–1640). Museu do Louvre, Paris, França
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A Batalha de Cascina, parte central de um cartão desaparecido de Miguel Ângelo (1475–1564), para um fresco que não chegou a realizar-se, copiada pelo seu discípulo Bastiano da Sangallo (1481–1551). Holkham Hall, Holkham, Norfolk, Inglaterra
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Em 1503, um político chamado Piero Soderini, que presidia à República de Florença, encomendou a Leonardo da Vinci e a Miguel Ângelo dois frescos, que deveriam ser pintados em paredes opostas de um salão do Palazzo Vecchio da cidade de Florença, salão este que atualmente se chama Salone del Cinquecento. Estes frescos deveriam celebrar duas batalhas, nas quais as tropas florentinas alcançaram notáveis vitórias. Leonardo da Vinci deveria pintar a batalha de Anghiari, em que as tropas de Florença venceram as de Milão, e Miguel Ângelo deveria pintar a batalha de Cascina, em que as tropas florentinas venceram as de Pisa. Aqueles eram tempos em que as cidades-estado italianas viviam em quase permanente confrontação, o que não impedia que nelas se registasse um extraordinário desenvolvimento das artes e das ciências, que ficou para a História com o nome de Renascimento.

A abordagem que Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo fizeram ao tema das batalhas não podia ser mais contrastante. Enquanto Leonardo decidiu pintar uma batalha feroz e tumultuosa, carregada de uma violência extrema, Miguel Ângelo concebeu uma cena que seria quase bucólica, se não fosse o sobressalto retratado, em que os florentinos tomavam banho no rio Arno quando foram surpreendidos pela chegada das tropas inimigas.

Deveria ter sido muito interessante ver o contraste entre os dois frescos, frente a frente numa sala, se eles tivessem visto a luz do dia. Mas isso não aconteceu, porque nem Leonardo da Vinci nem Miguel Ângelo completaram a sua tarefa. Deixaram, porém, ilustrações do que pretendiam realizar, ilustrações estas que foram copiadas por admiradores seus. É graças a tais cópias que hoje podemos fazer uma ideia do que os dois génios renascentistas tencionavam pintar.

Sem entrar em pormenores sobre as razões que levaram Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo a abandonar os seus trabalhos, diga-se que, na década de 1560, o pintor Giorgio Vasari foi por sua vez encarregado da pintura e decoração do referido Salone del Cinquecento, tarefa que ele executou até ao fim e cujo resultado se pode admirar nos dias de hoje; todo o salão (paredes e teto) está agora coberto por magníficos frescos de Vasari.


Frescos de Giorgio Vasari (1511–1574), que foram pintados nas paredes do Salone del Cinquecento do Palazzo Vecchio de Florença, em substituição dos malogrados frescos de Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci (Composição de imagens de Ron Reznik)
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14 novembro 2025

Sons

A guitarra
é som antepassado

Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.

Chorei fado.

Que importa hoje
se o recuso:

o ngoma é o som adivinhado

José Luandino Vieira


ngoma — nome que é dado ao tambor africano em muitas línguas bantus

Tocadores de ngoma do Angola Ngoma Dance Ensemble

12 novembro 2025

Maiden Voyage


Maiden Voyage, um tema de jazz de Herbie Hancock, por Freddie Hubbard no trompete, George Coleman no saxofone tenor, Herbie Hancock no piano, Ron Carter no contrabaixo e Tony Williams na bateria. Gravado em 1965

09 novembro 2025

Se eu podesse desamar

Se eu podesse desamar
a quem me sempre desamou
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
          se eu pudesse coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Mais sol nom poss'eu enganar
meu coraçom que m'enganou,
per quanto mi fez desejar
a quem me nunca desejou.
E por esto nom dórmio eu,
          porque nom poss'eu coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Mais rog'a Deus que desampar
a quem m'assi desamparou,
ou que podess'eu destorvar
a quem me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
          se eu podesse coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Vel que ousass'en preguntar
a quem me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunca em mi cuidou;
e por esto lazeiro eu:
          porque nom posso coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Pero da Ponte (séc. XIII), segrel galego


GLOSSÁRIO
coita — dor, mágoa, sofrimento
sol nom — nem mesmo
vel — pelo menos
ousass'en preguntar — ousasse perguntar sobre isso
lazeiro — em sofrimento



Se eu pudesse desamar, por Pedro Barroso (1950-2020); música de Pedro Barroso para uma cantiga de amor de Pero da Ponte

06 novembro 2025

Te Deum de Pedro Macedo Camacho


Te Deum, do compositor madeirense Pedro Macedo Camacho (nascido em 1976), pela Orquestra Clássica da Madeira e o Coro de Câmara da Madeira dirigidos por Francisco Loreto

04 novembro 2025

Apolo e Dafne


Apolo e Dafne, escultura de mármore em tamanho natural, executada entre 1622 e 1625 pelo escultor napolitano Gian Lorenzo Bernini (1598–1680). Galeria Borghese, Roma, Itália
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Apolo e Dafne é o nome de uma notável escultura barroca de Bernini, que representa uma cena da mitologia greco‑romana, que o poeta romano Ovídio contou no seu livro "Metamorfoses".

O deus do Amor, Cupido, desentendeu-se com o deus Apolo (também chamado Febo pelos romanos), por causa da soberba deste. Querendo castigar Apolo, Cupido atingiu-o com uma seta de ponta dourada e, em consequência, Apolo ficou loucamente apaixonado pela bela ninfa Dafne. Porém, Cupido atirou também em Dafne, mas desta vez atingiu-a com uma seta com ponta de chumbo, o que a levou a rejeitar todo o amor, viesse de quem viesse.

Ardendo de paixão, Apolo perseguiu Dafne, que fugia dele, mas Apolo foi mais rápido e conseguiu alcançá-la. Dafne implorou então ao seu pai, que era o rio Peneu, que a salvasse dos ímpetos de Apolo. Peneu anuiu e logo Dafne se metamorfoseou num loureiro. Apolo abraçou-a, mas já só sentiu o coração de Dafne bater dentro do tronco de uma árvore.

Em homenagem à sua perdida ninfa, Apolo colocou na cabeça uma coroa feita com ramos do loureiro em que ela se tinha transformado e instituiu o uso de uma coroa semelhante para glorificar as personagens ilustres: uma coroa de louros.

Nesta escultura de Bernini, das mãos de Dafne já começam a nascer ramos e folhas de louro, os seus pés vão-se convertendo em raízes e o seu corpo começa a ser revestido por uma casca de árvore.

Os versos de Ovídio que narram este episódio mitológico são os seguintes:

Dafne peneia foi primeiro amor de Febo,
nascido não do azar, mas da ira de Cupido.
Délio, soberbo após ter vencido a serpente,
vira-o dobrar o arco com a corda tensa:
“Moço lascivo, por que portas armas fortes?”
– disse – “isto convém aos meus ombros, pois posso,
certeiro, ferir feras, como um inimigo,
e com muitas flechadas matei Píton hórrida,
cujo ventre pestífero um monte ocupava.
Contenta-te em, com teu facho, excitar não sei
que amores, nem queiras tomar os meus louvores.”
Diz o filho de Vénus: “O teu arco, Febo,
tudo atinge, e a ti eu; como os animais valem
menos que um deus, tua glória é menor que a minha”.
Disse e, fendendo o ar com as céleres asas,
pousou na umbrosa fortaleza do Parnaso
e da aljava tirou dois dardos de diverso
efeito; um afugenta, o outro atrai amor.
Este é dourado e brilha na ponta afiada;
aquele, obtuso, sob o cano contém chumbo.
Com este alveja a ninfa peneia, com outro
atravessa a medula e os ossos de Apolo.
Este ama súbito; do amante aquela foge,
se alegrando em caçar feras nas profundezas
das selvas; ela, émula da casta Febe;
uma fita envolvia os cabelos revoltos.
Muitos a cortejavam; ela os repelia,
buscando os bosques ínvios, livre de marido,
indiferente a Himeneu, a Amor, e a núpcias.
Seu pai sempre dizia: “A mim deves, ó filha,
genro; a mim deves netos, filha”, repetia.
Ela, odiando, qual crime, as tochas do esposo,
inunda o belo rosto de casto rubor,
e prende os tenros braços ao colo do pai:
“Como Diana, pai caríssimo, permite-me
fruir de virgindade perpétua”, pediu.
Ele, então, assentiu; mas o que queres ser
à beleza repugna e teu corpo repele.
Febo ama e ao ver Dafne deseja unir-se
a ela; e o seu próprio oráculo o ilude.
Tal como a leve palha que arde sem a espiga,
ou a sebe queimada por tocha que acaso
alguém aproximou ou lá deixou de dia,
assim se inflama o deus, assim em todo o peito
ardendo-se e nutrindo um estéril amor.
Vendo os cabelos dela revoltos, nos ombros,
diz: “que tal penteá-los?” Vê os olhos dela
brilhantes como astros, e os lábios que ver
não é bastante; louva-lhe os dedos, as mãos,
os braços e antebraços nus pela metade;
melhor julgando o que se oculta. Mais ligeira
que a brisa, ela foge daquele que a chama:
“Ó filha de Peneu, pára, não sou hostil;
ninfa, pára. Assim, ovelha foge ao lobo,
corça ao leão, à águia trepidantes pombas,
cada qual ao rival; por amor te persigo.
Ai de mim, se caíres e espinhos ferirem-te
as pernas e eu te cause imerecidas dores.
Áspero é por onde vais; mais devagar
corre, não fujas, devagar eu mesmo irei.
Pergunte a quem te apraz; eu não habito em montes,
não sou pastor, não sou um rude guardador
de rebanhos e reses. Não sabes de quem
foges, por isso, insana, foges. Sou senhor
de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara.
Júpiter é meu pai; o futuro, o passado
e o presente desvelo. Ajusto o verso às cordas.
Certeira é minha flecha, mas uma mais certa
encheu meu peito ainda vago de feridas.
Medicina inventei, chamam-me salutar
em todo o orbe e tenho poder sobre as ervas.
Ai de mim, o amor não se cura com as ervas,
e estas artes a todos úteis não me valem”.
Mais diria, se a filha de Peneu, fugindo,
não lhe cortasse a fala, em louca correria,
assim mesmo admirou-a; um vento contrário
expunha-lhe a nudez, agitando-lhe as vestes,
e a brisa para trás impele os seus cabelos;
mais bela é fugindo. Mas o jovem deus
renuncia à ternura e, tomado de amor,
segue as pegadas dela, com passos ligeiros.
Qual galgo que uma lebre em campo aberto avista,
com patas quer prendê-la e ela se safar;
ele, a ponto de alçá-la, espera tê-la em breve,
e com focinho alerta a fareja de perto;
ela temendo-se apresada, escapa aos dentes
dele e àquela boca que se lhe escancara;
tal a esperança impele o deus, e o medo a virgem.
Mas o perseguidor, com as asas do Amor,
é mais esperto e não se cansa e acossa as costas
da fugitiva e assopra-lhe o cabelo e a nuca.
Ela, esgotada pelo esforço, empalidece,
com o labor da fuga e implora a Peneu:
“Se os rios tem poder divino, pai, socorre-me!
[Ó Terra, traga ou fere o que me traz feridas,]
muda minha aparência, aprazível demais!”
Mal finda a prece, invade-lhe um torpor os membros,
seus seios tenros são por fina casca envoltos,
dos cachos crescem folhas e ramos dos braços;
pés tão velozes fixam-se em lentas raízes,
em seu rosto coberto, um brilho apenas resta.
Entanto, Febo segue amando; e pondo a destra
no tronco, sente o peito tremer sob a casca
e, os ramos abraçando, qual membros, recobre-o
de beijos; mas o tronco se esquiva aos seus beijos.
Diz-lhe o deus: “Já que não podes ser minha esposa,
serás a minha árvore; sempre a terei
nos cabelos, na cítara e aljava, ó loureiro;
entre os chefes do Lácio ouvirás os alegres
cantos e as triunfais pompas no Capitólio.
Serás fiel guardiã do palácio de Augusto,
e às portas estarás protegendo o carvalho;
como jamais corto os meus cachos juvenis,
com perpétua folhagem, serás sempre honrada”.
Peã calou-se; e, inclinando a copa,
feito fronte, o loureiro, com seus ramos, anuiu.

Ovídio (43 A.C ‑ 17 D.C.), Metamorfoses, Livro I. Tradução do latim para português de Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho

28 outubro 2025

A machadinha



Um camponês tinha uma filha, e casou-a com um rapaz da sua terra. No dia da boda estando à mesa, os noivos, os pais e as mães deles, e muitos convidados, disse o camponês para a mulher: «Oh Maria, vai à adega buscar mais vinho, pois quero fartar os nossos convidados.» Foi a mulher à adega, e ia-se passando muito tempo sem que ela voltasse. Então o camponês levantou-se da mesa e foi ver se tinha sucedido alguma cousa à mulher. Chegado à adega, viu a mulher parada a olhar para uma machadinha que estava pendurada no teto, e perguntou-lhe: «Oh mulher! que estás tu aí a fazer?» Responde-lhe ela: «Olha homem; estava a lembrar-me que quando a nossa filha tiver pequenos, se eles para aqui vierem brincar, que lhes pode cair aquela machadinha na cabeça e matá‑los!» «Dizes bem mulher; ai se tal sucedia!» E ficou também a olhar para a machadinha. Vendo a noiva que o pai e a mãe não vinham foi ter com eles à adega, e perguntou-lhes o que estavam fazendo ali. Então eles responderam: «Olha, filha, estávamo‑nos lembrando que em tu tendo meninos, se eles vierem brincar para aqui, que lhes pode cair aquela machadinha na cabeça e matá-los.» «É verdade, senhora mãe, que pode isso acontecer.» E lá ficou também a olhar para a machadinha. Pouco a pouco todos os convidados que estavam à mesa, foram para a adega olhar para a machadinha.

Restava só o noivo, que foi por último, mas ao ver a doidice daquela gente, fugiu, em busca duma terra onde não houvesse gente tão doida. Ao chegar a uma terra, viu muita gente a fugir, outros subindo para cima das árvores, e de muros, e outros fechando as portas e as janelas, finalmente havia o terror e o medo por toda a parte; parecia o acabamento do mundo. O rapaz perguntou então o que era a causa de tantos medos como iam naquela terra; e responderam-lhe: que andava lá um bicho que comia gente, e que ninguém se atrevia a matá‑lo. O rapaz ao ver o bicho soltou uma gargalhada, pois a causa do terror daquela gente não era mais de que um peru; e ofereceu-se para o matar, sob a condição de lhe darem muito dinheiro. Morto o peru recebeu o rapaz grandes somas de dinheiro e partiu para outra terra. Ali andavam muitas mulheres, e crianças com joeiras ao sol. Ele então perguntou o que andavam fazendo, e responderam‑lhe: que andavam a apanhar o sol para o levarem para casa, pois não entrava lá nem de verão nem de inverno. O rapaz respondeu-lhes que elas não eram capazes de apanhar o sol, mas que se lhe pagassem bem, que ele era capaz de lho pôr dentro das casas. As mulheres deram todas muito dinheiro ao rapaz e ele tirou-lhes algumas telhas dos telhados, e logo elas viram o sol dentro das suas casas. Partiu o rapaz para outra terra, já muito admirado do que tinha visto, quando se lhe depara uma mulher que estava enfeitando uma porca com muitos cordões de ouro, fitas e flores; e perguntou-lhe: «Para onde quereis mandar esse animal, que estais enfeitando?» Ao que a mulher respondeu: «Saiba vossemecê que eu sou viúva, e que o meu homem fazia hoje anos, e por isso quero ver se encontro um portador para o paraíso, para lhe mandar esta porca, e esta bolsa de dinheiro.» Respondeu o rapaz: «Nunca vossemecê falou mais a tempo, pois para o paraíso é que eu vou.» A mulher entregou-lhe a porca e o dinheiro. O rapaz já não cabia em si de contente com tanto dinheiro que levava, e convencido que no mundo já não havia gente de juízo, resolvia-se a voltar a casa da sua noiva. No caminho, porém, deteve-se por causa de muitos gritos, de ai, quem me acode! quem me acode! que ouviu e tendo-se aproximado do sítio de onde partiam os gritos viu muitos homens deitados uns sobre os outros, e perguntou-lhes: «O que estão ai a gritar? por que não se levantam?» Eles responderam: «Estamos aqui há três dias sem nos podermos levantar, pois não sabemos quais são as pernas de cada um.» Respondeu-lhe o rapaz, que ia já fazer com que eles se levantassem, mas que lhe haviam de dar muito dinheiro. Eles logo disseram que todos lhe haviam de pagar muito bem. O rapaz pegou então num cajado e começou a bater nas pernas dos homens, e eles puseram-se a gritar: «Ai, ai, as minhas pernas!» e começaram todos a levantar-se. Depois deram muito dinheiro ao rapaz, e ele lá voltou muito rico para casa da sua noiva, e mandou tirar a machadinha da adega; e viveu sempre muito feliz.



Conto popular recolhido por Adolfo Coelho (1847-1919)

25 outubro 2025

Cantar sobre as águas


Auf dem Wasser zu singen, um lied do compositor austríaco Franz Schubert (1797–1828) sobre um poema do alemão Friedrich Leopold zu Stolberg-Stolberg (1750–1819), pelo barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau (1925–2012) e o pianista britânico Gerald Moore (1899–1987)

23 outubro 2025

Luís de Meneses


Retrato da Viscondessa de Meneses, 1862, óleo sobre tela de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Retrato da Filha, Elisa Wilfrida, c. 1878, óleo sobre tela de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Museu Nacional Soares dos Reis, Porto
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O trovador da aldeia, de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa
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Retrato de Antero de Quental, de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa

O Tambor, 1866, de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Coleção particular
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Luís de Miranda Pereira de Meneses nasceu no Porto em 1820. Era filho primogénito de um juiz, a quem a rainha D. Maria II atribuiu o título de Visconde de Meneses em duas vidas.

Apoiante da causa constitucional e defensor da rainha, tal como seu pai, Luís de Meneses viu ser-lhe renovado o título de Visconde de Meneses em verificação da segunda vida, por D. Fernando II, quando este exerceu o cargo de regente do reino durante a menoridade de D. Pedro V. Luís de Meneses foi, portanto, o 2.º e último Visconde de Meneses.

Desde muito cedo, Luís de Meneses revelou uma destacada vocação artística. Foi viver para Lisboa em 1834 e o seu talento não escapou à atenção de D. Fernando II. Incentivado por este e financiado por seu pai, Luís partiu para Itália, tendo estudado em Veneza e em Roma. Após concluir os seus estudos, viajou por vários países europeus e regressou a Portugal em 1850.

Luís de Meneses foi um dos primeiros pintores do Romantismo em Portugal e especializou-se na arte do retrato. A sua pintura mais famosa representa a sua própria esposa, Carlota Guimarães, que era uma senhora de grande beleza. Luís de Meneses faleceu em 1878.

19 outubro 2025

Valsa Sobre las Olas, de Juventino Rosas


Valsa Sobre las Olas, do compositor indígena mexicano Juventino Rosas (1868–1894), por uma orquestra não identificada

16 outubro 2025

Vaidade Terrena e Salvação Divina


Frente

Verso
Vaidade Terrena e Salvação Divina, seis quadros a óleo sobre madeira de carvalho, presentemente dispostos como tríptico (frente e verso), do pintor alemão radicado em Bruges (Flandres) Hans Memling (c.1430-1494). Museu de Belas-Artes, Estrasburgo, França
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Estamos em presença de seis painéis pintados a óleo por Hans Memling, que terão feito parte de um tríptico ou de um políptico. Os painéis foram separados uns dos outros antes de 1890 e agora não se sabe ao certo qual era a sua disposição original. Não se sabe sequer se teria havido mais painéis além destes, que também fariam parte do mesmo políptico e entretanto se perderam. A disposição aqui representada é a que está patente no Museu de Belas-Artes de Estrasburgo, mas poderia muito bem ter sido outra.

Na frente do tríptico e à esquerda, está uma representação da Morte. Rodeando a figura simbólica, estão as seguintes palavras: Ecce finis hominis comparatus sum luto et assimilatus sum faville et cineri (Eis que o fim do homem é comparável com o lodo e eu sou semelhante a pó e cinza).

Ao centro, uma representação da Vaidade.

À direita, uma representação simbólica do Inferno, acompanhada do texto In inferno, nulla est redemptio (No inferno não há qualquer redenção).

No verso do tríptico e à esquerda, está um brasão de armas acompanhado do lema Nul bien sans peine (Não há bem sem sofrimento).

Ao centro está Cristo, Salvador do Mundo.

À direita, encontra-se o painel Memento Mori (Recordação dos Mortos), com a representação de uma caveira; em baixo, podem ler-se as palavras Scio enim quod redemptor meus vivit et in novissimo diedeterra surrecturus sum et rursum circūdabor pelle mea et incarne mea videbo deū salvaorem meum Job XIX° cap° (Pois eu sei que o meu Redentor vive, e que no último dia me levantarei sobre a terra, e serei revestido da minha pele e da minha carne, e verei a Deus, meu Salvador. Job, cap. 19).

09 outubro 2025

Divertimento N.º 1 de Mozart


Divertimento para Orquestra de Cordas N.º 1 em Ré Maior, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791), K. 136 (isto é, n.º 136 do catálogo Köchel das obras de Mozart), escrito quando o compositor tinha 16 anos de idade. Interpretação pelo violinista finlandês Pekka Kuusisto e a Orquestra de Câmara Norueguesa

06 outubro 2025

Gaivota

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O'Neill (1924-1986)


Amália Rodrigues canta Gaivota, música de Alain Oulman para um poema de Alexandre O'Neill

04 outubro 2025

Subpoesia

Subsaarianos somos
sujeitos subentendidos
subespécies do submundo

subalimentados somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos

do subdólar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente

José Luís Mendonça, poeta angolano



Algures em Angola (Foto: Adalberto Gourgel)

02 outubro 2025

Bailado Les Sylphides de Chopin


Les Sylphides, um bailado baseado em música de Frédéric Chopin (1810–1849), orquestrada por Alexander Glazunov (1865–1936), e com coreografia de Michel Fokine (1880–1942), interpretado pelas bailarinas americanas Marianna Tcherkassky, Cynthia Harvey e Cheryl Yeager, o bailarino Mikhail Baryshnikov (letão naturalizado americano), e o corpo de bailado do American Ballet Theater

O compositor polaco Frédéric Chopin nunca escreveu música para bailado, e menos ainda para um bailado chamdo Les Sylphides, mas a verdade é que existe um tal bailado, cuja música é corretamente atribuída a Frédéric Chopin.

Toda a música de Chopin foi escrita para piano, a solo ou acompanhado, e muita dela foi inspirada nas danças tradicionais do país natal do compositor, a Polónia. Um outro compositor, o russo Alexander Glazunov, decidiu pegar em algumas das peças musicais de Chopin, transcreveu-as para orquestra e fez delas um bailado, a que deu o nome de Les Sylphides. A coreografia do bailado ficou a cargo de Michel Fokine, também russo.

Ao contrário de muitos outros bailados, Les Sylphides não conta qualquer história. É um bailado sem enredo, que vale pela bela música de Chopin, pelos movimentos harmoniosos da coreografia de Fokine e pela graciosidade dos bailarinos. Les Sylphides é um dos exemplos mais perfeitos do chamado ballet clássico.

29 setembro 2025

Porque no mundo mengou a verdade

Porque no mundo mengou a verdade,
punhei um dia de a ir buscar,
e, u por ela fui [a] preguntar,
disserom todos: — Alhur la buscade,
ca de tal guisa se foi a perder
que nom podemos en novas haver,
nem já nom anda na irmaindade.

Nos moesteiros dos frades negrados
a demandei, e disserom-m'assi:
Nom busquedes vós a verdad'aqui,
ca muitos anos havemos passados
que nom morou nosco, per bõa fé,
[nem sabemos u ela agora x'é,]
e d'al havemos maiores coidados.

E em Cistel, u verdade soía
sempre morar, disserom-me que nom
morava i havia gram sazom,
nem frade d'i já a nom conhocia,
nem o abade outrossi, no estar,
sol nom queria que foss'i pousar,
e anda já fora d[a] abadia.

Em Santiago, seend'albergado
em mia pousada, chegarom romeus.
Preguntei-os e disserom: — Par Deus,
muito levade'lo caminh'errado!
Ca, se verdade quiserdes achar,
outro caminho convém a buscar,
ca nom sabem aqui dela mandado.

Airas Nunes, trovador galego do séc. XIII

NOTA
[nem sabemos u ela agora x'é,] — verso que falta nos manuscritos que chegaram até aos nossos dias, reconstituído pelo prof. Rodrigues Lapa


GLOSSÁRIO
mengou — minguou
punhei — esforcei-me
u — onde
alhur — alhures, noutro lugar
ca — pois
guisa — maneira
en novas — notícias sobre esse assunto
frades negrados — frades vestidos de negro, da ordem beneditina
nosco — connosco
al — outras coisas
Cistel — Cister (ordem religiosa)
soía — era frequente
i — aí
gram sazom — muito tempo
sol nom — nem mesmo
romeus — romeiros
ca nom sabem aqui dela mandado — porque aqui nada sabem dela



O mundo mengou a verdade, sirventês (género poético medieval) do trovador galego Airas Nunes (séc. XIII), musicado por Xosé Quintas-Canella e interpretado pelo agrupamento DOA, da Galiza