08 dezembro 2011

O sol nasce a Oriente

(de um quadro de Malangatana)

Povo, de ti canto o movimento
teu nome, canção feita de fronteiras
lua nova, javite ou lança
tua hora, quissange em trança

Do longo longe do tempo
arde minha flecha, meu lamento
minha bandeira de outro vento
aurora urdida nos lábios de Zumbi

De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores
a fala sábia das aves
o dialeto novo do silêncio
e as pedras, as palavras do medo
os olhos falantes da mata
quando a onça posta a sua arte
nos fita, guardada em sua mágoa.

De ti amo a denúncia felina
das tuas mãos quebradas ao presente
a dança prometida do sol
nascer um dia a Oriente
David Mestre (1948-1997), poeta angolano


Comentários: 4

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

"De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores"

Muito belo. (e chega-nos tão poucos poemas desse lado)

08 dezembro, 2011 16:41  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro Rogério Pereira,

Muito obrigado pela sua visita. O poema é muito belo, sem dúvida.

Eu estive uma vez pessoalmente com David Mestre, há muitos anos já. Tivemos uma longa conversa, que durou várias horas, juntamente com mais duas ou três pessoas. A impressão que ele me deixou foi a de que ele era um homem dotado de um enorme idealismo e de uma extraordinária generosidade. Por exemplo, David Mestre combateu pela sua pátria contra as tropas sul-africanas invasoras. De tal modo o fez que um jornal de Lisboa chegou a publicar uma notícia sobre a sua suposta morte no sul de Angola. David Mestre (que tinha nascido em Loures, mas fora para Angola com menos de um ano de idade) respondeu à "notícia" com o seguinte poema:

Portugal Colonial

Nada te devo
nem o sítio
onde nasci

nem a morte
que depois comi
nem a vida

repartida
pelos cães
nem a notícia

curta
a dizer-te que morri

nada te devo
Portugal
colonial

cicatriz
doutra pele
apertada



Encontrei ainda no blogue Ma-schamba o seguinte poema, que o grande José Craveirinha escreveu e lhe dedicou:

Delito

(Ao David Mestre)

O delito
imperdoável dos genuínos poetas
é não serem amordaçáveis

Porque
mesmo depois do seu homicídio
o defeito deles é terem na poesia
a bater os pulsos em cada verso
a verdadeira pátria insilenciável
em vez da vida.

09 dezembro, 2011 01:50  
Blogger Celina Dutra escreveu...

Belíssimo poema! Ricas explicações com mais lindos poemas. Obrigada!
Girassóis nos seus dias. beijos.

09 dezembro, 2011 23:52  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado por mais esta sua visita, cara Celina.

O poema de José Craveirinha pode dar a impressão de que foi escrito após a morte de David Mestre e que este teria sido assassinado. Tal não é verdade. O poema foi escrito quando David Mestre ainda estava vivo. A sua morte deveu-se a um acidente vascular cerebral, se não me engano.

11 dezembro, 2011 02:30  

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